Gilmar quer ser o Bonaparte de um Brasil ancorado em dinamite social
Ele ataca Moro e o Ministério Público que ameaçam seus amigos, mas seu alvo prioritário é sepultar a democracia social personificada em Lula
por Saul Leblon, na Carta Maior
Gilmar Mendes dispensa apresentações.
Mas seria injusto deixa-lo ao relento das simplificações subentendidas, ao risco de subestima-lo como uma simples toga a serviço do ódio a Lula e ao PT.
Gilmar é mais que a caricatura que personifica.
Mais que o antipetismo recoberto do manto escuro que no Brasil, nele sobretudo, deixou de simbolizar o Estado de Direito.
Gilmar é a personificação da última instância do interesse patronal.
Nele ecoa aquilo que a elite e o mercado –urbi et orbi– gostariam que fosse o Estado, a Justiça, a Constituição, a Economia, a Política, o Sindicato, a Polícia, a Mídia e o Congresso nessa turbulenta era da desordem neoliberal.
Ou seja, um mosaico passivo, subordinado a um ‘ permanente estado de exceção’.
A definição do filósofo italiano, Giorgio Agamben, caracteriza um tempo em que capitalismo & crise tornaram-se uma entidade unívoca. E a adaptação às necessidades da sua sobrevivência, a regra no manejo do arsenal jurídico.
Gilmar é a voz desse desejo sibilado, enquanto as mãos dedilham cifrões imaginários.
Sua convicção antipopular o conduz à elevada condição de referência do bonapartismo togado com que sonham as classes patronais.
Nos últimos dias e horas ele vem detalhando a sua concepção de país submetido a uma supremacia asfixiante do dinheiro sobre o destino da sociedade e a sorte do desenvolvimento.
Nesta 2ª feira, na Folha, rechaçou dividir o posto de Bonaparte do condomínio do dinheiro com Moro e o Ministério Público de Janot
‘Lava Jato tem sido um grande instrumento de combate à corrupção. Ela colocou as entranhas do sistema político e econômico-financeiro à mostra, tornando imperativas uma série de reformas.Agora, daí a dizer que nós temos que canonizar todas as práticas ou decisões do juiz Moro e dos procuradores vai uma longa distância’.
E rechaçou o decálogo anticorrupção que amplia os poderes do MP e da Janot:
‘Isso se tornou estratégia de grupos corporativos fortes para ter apoio da população.É uma esperteza midiática. Não tem nada a ver com a realidade. Os juízes todos estão agora engajados no combate à corrupção? São 18 mil Sergios Moros? Sabe?No fundo estão aproveitando-se oportunisticamente da Lava Jato’
A luta de facções, como se vê, instalou-se nas entranhas do golpe
E Gilmar sabe que se ceder o manto de pretenso bonaparte do golpe, ele próprio e seus amigos tucanos poderão sucumbir.
A presença de Gilmar em reuniões com FHC, Temer e mesmo com o ex-ministro de Dilma, José Eduardo Cardozo, alinha-se nessa ofensiva para deter um esgarçamento do tecido golpista.
Mas, sem ilusões.
O alvo prioritário de Gilmar continua a ser o desmonte do projeto de democracia social que Lula e o PT simbolizam no país.
Isso ele deixou claro em quatro momentos sucessivos na semana passada.
O personagem que acumula o posto de ministro mais influente da Suprema Corte, presidente do Superior Tribunal Eleitoral, porta-voz togado do conservadorismo, última instância do patronato e articulador permanente do golpe consumado em 31 de agosto, elencou assim suas prioridades ao atacar, pela ordem:
– o Ministério Público que, no seu entender estaria usando a Lei de Ficha Limpa para coagir políticos, em ações de improbidade “incentivadas pelo lulopetismo”, disse; o que pode, acusou, ‘ tornar gente do melhor quilate inelegível, como Serra, como Malan”, seus ex-colegas de governo FHC, enquanto “ladravazes estão soltos” (18/10);
– no dia seguinte (19/10) divulgou-se que Gilmar Mendes revogara entendimento jurisprudencial da Justiça do Trabalho que estende cláusulas de acordo coletivo vigente, em caso de impasse nas negociações para renová-lo. Conquistas precedentes funcionam como uma barreira formal ao arrocho em momentos de destruição maciça do pleno emprego, como acontece agora no Brasil. Gilmar sabe disso. Sabe que para produzir o efeito no custo da hora trabalho, demissões épicas não podem ser mitigadas pela vigência de direitos e garantias legais que protejam as famílias assalariadas. Em sua decisão, ele alega que a ‘norma vigente só protege o trabalhador’. Explícito assim. Com a mesma transparência, defende que a CLT seja flexibilizada prevalencendo de agora em diante o negociado sobre o legislado. Algo como exigir a rendição incondicional dos sobreviventes na guerra aberta do capital contra o trabalho.
– dois dia depois (21/10) em palestra promovida pela Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abidib) e pela Câmara Americana Comércio (Amcham), Gilmar Mendes voltaria ao ataque. “Esse tribunal (o TST) é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”, ironizou, fazendo rir a plateia patronal. “[Eles têm] uma concepção de má vontade com o capital”, continuou, radicalizando o confronto. Os problemas, no seu entender, podem estar relacionados à própria composição do TST. “Talvez um certo aparelhamento da própria Justiça do Trabalho e do próprio TST por segmentos desse modelo sindical que se desenvolveu”, concluiu deixando as marcas agressivas de um ataque mais abrangente do que parece . No Supremo, ele tem elogiado iniciativas do colega Teori Zavaski nesse direção. Na direção de desmontar a soberania da CLT na prática, em benfício do negociado sobre o legislado, para lubrificar projetos patronais congelados no Congresso, ressuscitados pelo golpe de 31 de agosto.
– Na mesma sexta-feira (21/10), na sequência de sua fala na Câmara Americana, Mendes disparou contra o programa Bolsa Família, uma forma, noi seu entender, de fraudar a vigilância do TSE na ‘compra de sufrágios’. “Com o Bolsa Família, generalizado, querem um modelo de fidelização que pode levar à eternização no poder. A compra de voto agora é institucionalizada”, fuzilou contra um dos alvos do desmonte intrínseco à PEC 241.
A saraivada contra as leis e a ordem constitucional, nas últimas horas, não deve ser minimizada.
Não é apenas um sinal de coerência de quem traz carimbado na testa um epíteto: onde quer que haja o interesse do capital revogue-se o do trabalho.
Vai além disso a sulforosa maratona dos dias que correm.
Seu ativismo reflete a crise em que se meteu a elite e o capitalismo brasileiros.
Ao mergulhar o país na ilegitimidade de um golpe contra o povo, a ordem dominante perdeu a fonte original do poder que mediava inclusive as suas fricções.
A falta de limites de Gilmar Mendes que empurra o Estado de Direito para o Estado de Exceção é parte dessa dissolução explosiva de fronteiras.
Para onde nos leva o Brasil manejado pela conveniência jurídica do juiz do capital. E quando explodir,o que sobrará; melhor: quem negociará o caminho de volta?
De onde virá o novo poder mediador se os partidos estão destruídos, o eleitor comprou a propaganda da rejeição à política e a ordem constitucional, já rasgada, estrebucha sob a pressão de toga desagregadora?
Quais os limites, se os há; e quem irá fiscalizá-los?
Quem diz, por exemplo, até onde pode ir em nome da ‘aplicação vigorosa da lei’, o imã do califado de Curitiba?
O que fazer com o passado da nação?
Esse que Gilmar pretende varrer, mas cujos atores perambulam ainda vivos pelo presente?
Onde fica o povo no Brasil de Gilmar Mendes? E a Carta de 1988, a pobreza, a desigualdade, o desejo de emancipação, as organizações sociais, a CLT, os partidos, a liberdade de imprensa que o juiz Moro já tutela, as lideranças sociais, Lula…
Quem prender?
Quando prender, por que prender, o que extrair de quem prender –como extrair confissões e delações ?
Como disciplinar os auto-ungidos guardiões da doutrina da fé do MP, que sentenciam o que deva ser a moralidade pública, ao mesmo tempo em que estilizam o juízo final em powerpoints bizarros?
Como saciar milicianos do Estado Midiático, que agora cobram o paraíso dos livres mercados na terra em transe desmontada pelo golpismo?
Como serão dirimidas as divergências entre facções no Brasil para o qual nos empurra Gilmar Mendes?
O enfrentamento entre a Polícia Federal e a Polícia dos Senadores é um bala de morango perto disso que respira nas entranhas do golpe de 31 de agosto.
Sinais de um estilhaçamento do poder e das instituições cavalgam da língua de Gilmar para o hímen complacente dos noticiosos que agora a tudo abonam.
A inquietação da toga boquirrota expressa os intestinos enfezados desse frankstein parido a golpes, sabotagens, ganância, conspiração, ódio de classe, entreguismo e arbítrio
É ostensivo o esforço para engata-lo o à única fonte de poder capaz, no seu entender, de impedir o estouro das partes: o fundamentalismo de Mercado.
Ou o ‘Deus dinheiro’, como diz Agamben.
Mas dentro do próprio dinheiro há conflitos e guerras que só podem ser refreados pela mediação originária da urna.
Uma Líbia institucional, retalhada por milícias em confronto, ergue-se como um fantasma no horizonte do golpe.
Nesse Termidor precoce, cada cabeça que tomba repete ao algoz o mesmo vaticínio proferido por Danton a caminho da guilhotina: ‘Tu me seguirás, Robespierre’
Ou não será isso que Cunha, o álibi de Moro para Lula, disse a Temer?
O fato incontornável é que a sustentabilidade financeira do Estado desenhada pelo golpe é incompatível com a sua sustentabilidade democrática.
Não podem os golpistas submeter sua agenda a uma constituinte, nem mesmo leva-la à urna plebiscitária.
A escória parlamentar que a referenda não representa a assembleia da nação.
Expostas à argumentação amplamente franqueada à crítica, medidas acenadas agora como fundamentais à regeneração da confiança dos mercados no país dificilmente seriam legitimadas pela sociedade.
A PEC 241 mais se assemelha a uma intimação à eutanásia do que a um projeto de nação.
Mais a um resgate tardio da bandeira desbotada de Thatcher –‘there is no alternative’— do que a um convite à participação.
Não convence, mas não apenas porque as evidências engolfam as famílias assalariadas em uma lógica oposta, que Gilmar quer salgar com a desproteção ao trabalho quando ela é mais necessária.
É pior ainda.
O desmonte social brasileiro avança na direção oposta ao que o bom senso e a sobrevivência nacional recomendariam diante da desordem financeira global.
A recessão construída, antes, pela sabotagem –o que não diminui a contribuição dos erros cometidos pelos governos petistas; e agora, com a PEC do arrocho, aprofunda a vulnerabilidade brasileira em relação a uma deriva global marcada pela sombra da estagnação secular.
A retórica da ‘contração expansiva’ supõe a existência de um ciclo de investimento global receptivo a uma sociedade descarnada de vontade própria e pronta para o abate.
Esse mundo não figura no acervo do capitalismo realmente existente.
A exemplo do que ocorre com as empresas aqui –corroídas pelo descasamento entre o fluxo de caixa e custos de dívidas e investimentos de um fim de ciclo expansivo– a realidade global vive gargalos sistêmicos ao investimento.
As expectativas golpistas de uma precificação de apoio externo, na forma de um boom antecipado de investimentos não passam de propaganda midiática.
O que se delineia é o oposto.
Ao recuar as defesas da ação anticíclica do Estado, da proteção ao emprego e ao poder de compra real do salário, bem como esgarçar a rede de resistência à miséria e à fome, a economia brasileira engatou as suas fraquezas à prostração global.
Estados endividados, baixo investimento público e privado, massas colossais de capital fictício, crescimento débil e comércio mundial anêmico compõem a realidade dessa fonte seca.
Acrescente-se à longa estiagem a demanda espremida por elevadas taxas de desocupação, explosão do emprego precário, salários aviltados e endividamento paralisante das famílias.
A dívida global mais que duplicou nos últimos 15 anos, segundo o FMI.
A capacidade de geração de caixa das empresas, a demanda e o comércio mundial regrediram no mesmo período.
O panorama nas economias emergentes não é menos desolador.
As dívidas corporativas cresceram também em todos os países em desenvolvimento desde 2008.
Passaram de uma média de 75% do PIB para 110% agora.
No Brasil, segundo cálculos do economista Felipe Rezende, que tem alertado para o erro de diagnóstico do golpe –ao focar o gargalo da economia na esfera fiscal, quando as empresas estão em situação bem mais grave– a geração de caixa das companhias abertas (com ações negociadas em Bolsa) não paga nem as despesas financeiras,
A ilusão dos que aplaudem o anti-trabalhismo de Gilmar Mendes, como se a busca da mais-valia bruta fosse recuperar o pulso econômico de um mercado sem mercado, mostra-se portanto ideologicamente coerente com ele.
Mas descabida para o desenvolvimento brasileiro.
Não há como se repetir uma nova era Thatcher (1979 a 1990) feita de compressão salarial, repressão sindical e ‘des-emancipação social’ pelo simples fato de que o Estado do Bem Estar social já foi lixiviado lá fora e aqui nunca existiu.
A beberagem que se quer enfiar goela abaixo da população brasileira, ademais da dimensão predadora, revela-se anacrônica e incompetente para reverter a dinâmica de crescimento da dívida pública e privada.
A dívida federal cresce hoje impulsionada pelo peso mortal de taxas de juros reais de 6% ao ano, responsáveis por 80% da composição déficit fiscal, sendo ínfima a pressão exercida por novas despesas (leia a entrevista sempre brilhante de Luiz Gonzaga Belluzzo, nesta edição:http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/Belluzzo-O-Brasil-esta-caindo-para-a-serie-C-do-campeonato-mundial-/7/37039)
Sem crescimento, com receita tributária em marcha ré (queda de 10% em agosto e de 7% em setembro) ,o Brasil está sendo reduzido a uma montanha desordenada de ruínas.
O horizonte fantasmagórico assusta.
E a escalada de Gilmar Mendes adiciona um sustenido de horror ao túnel escuro da torpeza econômica.
O conjunto não resistiria ao contraditório de uma agenda alternativa, crível e serena, de maior justiça tributária e retomada do investimento público, que falasse à angústia crescente em todos os extratos da sociedade.
Uma agenda assim, capaz de aglutinar no seu entorno uma frente ampla de interesses sociais, carregaria o trunfo de oferecer à população aquilo que a estreiteza estratégica do golpe e o conflito desestabilizador de suas facções, sequer postula.
Ou seja, uma repactuação da sociedade com ela mesma através de uma ampla negociação de um novo pacto pelo desenvolvimento brasileiro.
É nesse ponto que a matraca togada entra em modo crepuscular e se recompõe a superlativa relevância de um líder com a projeção nacional e internacional e a capacidade de diálogo comprovada.
Luís Inácio Lula da Silva.
Prendê-lo, por certo, já foi uma ambição de maior consenso dentro do golpe.
Embora seja o objeto de desejo conservador impedi-lo de figurar na cédula de 2018, hoje, mais que ontem e, por certo, menos que amanhã, um espectro ronda as cabeças menos entorpecidas da elite brasileira.
Se o crescimento, como parece ser o caso, não for entregue no curto prazo; se a luta fratricida se radicalizar; se, como soa cada vez mais provável, a rua rugir o seu inconformismo com a dinamite social que Gilmar quer acender …
Se isso acontecer com Lula preso, quem vai negociar o caminho de volta aos trilhos da democracia social e do desenvolvimento?
Dória Jr? Aécio? O ‘chanceler’ Serra? Moro? Dallagnol? Ou o procurador ‘Boquinha’?
Na crise que se cultiva, quem ainda pode falar ao Brasil e ser ouvido pela elite e a rua?
Quem?