Um dos fenômenos mais interessantes das manifestações anti-golpe no Brasil é a responsabilização da grande mídia no geral, e da Rede Globo em particular, pelos eventos políticos assistidos no Brasil.
Esta percepção já está tão naturalizada que nem se comenta mais sobre isso.
Apesar de muitos artigos sobre o envolvimento e a influência da mídia nos acontecimentos políticos recentes, o que não se discute são os motivos por esta responsabilização da mídia por parte significativa da população.
Além dos fatos atuais, é importante também ter em conta o envolvimento da mídia no golpe de 1964 e, mais especificamente, o papel da Rede Globo na manutenção da ditadura militar por mais de 20 anos.
Portanto, é oportuno que o jornalista brasileiro radicado em Londres, Victor Fraga, esteja pretendendo fazer uma sequela do documentário britânico Beyond Citizen Kane (Muito Além do Cidadão Kane, em português), de 1993, que foi ao ar no ‘Channel 4’ do Reino Unido e relata a história, a evolução e o poder da Rede Globo.
O novo projeto deve incorporar passagens do documentário original e eventos da atualidade brasileira. Victor já tem o aval de John Ellis, que produziu o documentário em parceria com o falecido Simon Hartog, diretor e produtor de filmes britânico
Para tornar este sonho em realidade, Victor está buscando financiamento através de crowdfunding e promoveu uma mostra completa do documentário no Cinema de Regents Street em Setembro, uma das primeiras salas cinematográficas do mundo, que viu mostras dos irmãos Lumière, recentemente reaberta em Londres.
Abaixo segue uma entrevista com John Ellis, produtor de televisão e professor de estudos da mídia, Universidade de Royal Holloway.
Julia Felmanas: Qual é a visão que se tem do Brasil no Reino Unido?
John Ellis: O Brasil nunca teve muita cobertura na mídia britânica, quando aparecia tinha a ver com a pobreza, divisão social, a criminalidade ou a destruição do meio ambiente. Com Lula, houve mais exposição, o social ganhou mais espaço, a questão do combate à pobreza, cooperações sul-sul. É um pouco diferente agora. Quando fizemos “Beyond Citizen Kane” ninguém conhecia a palavra ‘favela’, agora não é preciso traduzir. E ‘favela’, no inglês, não tem necessariamente uma conotação negativa, ela é associada com a auto-organização, com a resistência e a capacidade das pessoas de sobreviver com seus próprios recursos.
JF: De onde veio o interesse de fazer um documentário sobre a Rede Globo?
JE: Na verdade, este sempre foi um projeto de Simon Hartog. Ele sempre se interessou pelo cinema internacional e era conhecido como um ‘diretor radical’ na Grã-Bretanha. Ele já tinha feito um documentário sobre Samora Machel em Moçambique e falava português. Também conhecia o Cinema Novo brasileiro. O que primeiro lhe atraiu foram os filmes de pornochanchada produzidos no Brasil durante a ditadura militar, como forma de crítica contra a ditadura. Mas o poder da Rede Globo chamou a atenção.
JF: Porque o Channel 4 se interessou em apoiar um projeto sobre a Rede Globo, uma empresa de televisão de um país que nunca suscitou muito interesse no Reino Unido?
JE: O interesse do Channel 4 era de documentar e criticar a mídia e, principalmente, o poder da mídia. Este canal de televisão já nasceu como um projeto alternativo. Sua proposta sempre foi desafiar a visão tradicional em um canal que não visava um público muito grande. O documentário apareceu na TV as 10:30 da noite, foi visto por um público pequeno, mas teve boa repercussão. E o documentário continua a ser utilizado nos cursos de mídia e televisão. O bom de trabalhar para um canal assim, é que os seus advogados demandavam padrões rigorosos, para que os produtores não fossem processados mais tarde. Depois da morte de Hartog, eu tive que continuar adequando o documentário para poder nos enquadrar dentro destes padrões.
A outra coisa que chamou muito nossa atenção foi a qualidade da imagens da Globo, com qualidade igual ou até melhor do que se via na época em outras partes do mundo. E é claro, isto também pesou em dar credibilidade à empresa e suas produções.
A Globo formou sua marca, sua identidade. Quando estive recentemente no Brasil, depois de muitos anos, percebi que a Rede Globo continuava igualzinha.
JF: Não é assim no Reino Unido. A marca e a programação da BBC, por exemplo, mudou e sempre muda muito.
JE: Eu acho que quando há muita instabilidade, como é o caso das vidas de parte da população brasileira, as pessoas pedem a estabilidade, a marca imutável da Globo traz isso, e a Globo é também muito bem-sucedida como empresa de entretenimento, porque o poder da Globo está, não só na sua produção jornalística, mas também no entretenimento. Então para que mudar, se está dando certo, quando não há grande concorrência?
JF: Como você vê o fato de que no Brasil a esquerda, quando entrou no poder, não teve coragem de desafiar a mídia, de fazer a democratização necessária?
JE: Este é um problema mundial, não só brasileiro. Os desafios são dois, há a questão da comunicação e há os problemas sociais. Então os governos progressistas se confrontam com o problema do que fazer primeiro, e invariavelmente se opta por fazer mudanças na sociedade antes de lidar com a mídia, que é um problema mais complexo e envolve o estado de ânimo da sociedade. Mas depois fica muito tarde para tratar dessa questão.
JF: Como você vê o fato da grande mídia brasileira ignorar uma parcela pequena, mas significativa, da população? Às vezes nem ignora, simplesmente demoniza. Sabemos que isso está acontecendo porque com a polarização da política houve também o crescimento de blogs alternativos, como também um crescente número de indivíduos que evitam receber notícias através destes meios por causa da sua atuação política. Não seria isso um tiro no pé? Uma estratégia de marketing equivocada, perder todo um mercado?
JE: Enquanto este número é baixo o suficiente, não há problemas, o problema vem do fato de que isso não é estático, este número tende a crescer, se de 20%, digamos, ele passa aos 33%, temos uma massa crítica. Aí seria má estratégia ignorar essa população.
JF: Como que a Rede Globo conseguiu ter tanto poder?
JE: A estratégia da Rede Globo é bem-sucedida justamente pela capacidade de seu entretenimento. Não é possível ter um peso cultural, segurar as pessoas culturalmente (cultural hold), somente através da pauta jornalística. Por exemplo, se vamos falar de corrupção. Como é que a corrupção é retratada, ou apresentada? Não é somente através do jornalismo, mas das novelas, da paisagem cultural retratada. São as novelas que expressam a moralidade e a ética. Nas novelas britânicas isso já não é possível, porque diferentemente das novelas brasileiras que duram alguns meses, as britânicas duram décadas. A mais velha começou em 1960, tem mais de 50 anos, e para poder sobreviver por tanto tempo as histórias têm que ser mais complexas. Não há espaço para um moralismo branco-e-preto.
JF: Finalmente, como você viu a participação da BBC no debate do Brexit?
JE: Aqui, tivemos um problema de ordem diferente. A BBC, por lei, precisa dar espaço igual para todos os pontos de vista durante uma campanha política. O problema foi que a BBC encarou esta regra de maneira muito simples, como se fosse uma questão de sim ou não. Decidiu que estaria cumprindo com a lei se desse o mesmo ‘direito de manifestação’ a ambos os lados. Assim, a BBC simplesmente transmitiu as afirmações sem checar os fatos, o que levou a distorções à favor do Brexit.
Para mais informações sobre o projeto de Victor ou quer participar do crowdfunding, contate victor@dirtymovies.org , www.dmovies.org