Cíntia Braga, Especial para O Cafezinho
Dois filmes da produção brasileira recente, Made in Brazil (2013) e Made in China (2014), muito diferentes apesar dos nomes, fazem entrever o abismo entre o cinema-indústria, calculado para agradar a classe média, e a arte do cinema, que passa longe das salas de exibição.
Um recente episódio de violência, que deixou três mortos na última segunda-feira (03) no Morro Pavão-Pavãozinho, trouxe a recordação da tragédia do dançarino Douglas Rafael da Silva, morto por espancamento no mesmo local em abril de 2104. DG, como era conhecido, trabalhava no programa dominical “Esquenta”, apresentado por Regina Casé. Ele foi protagonista do curta “Made in Brazil”, com um personagem chamado pelo mesmo nome, DG.
A morte do ator e dançarino repercutiu em todo o país quando sua mãe, Maria de Fátima Silva, denunciou o cenário sensacionalista montado pela produção do programa para explorar sua dor e controlar sua ira contra os assassinos do filho. Segundo o relato da mãe, Regina Casé seria uma “cretina e mentirosa” e seu único interesse era garantir a audiência de seu circo de horrores e acatar as ordens da emissora de não permitir a acusação dos agentes do Estado pela morte de DG.
No ano anterior (2013), DG protagonizou o curta-metragem “Made in Brazil”, do diretor Wanderson Chan, em que interpreta um rapaz da favela, que sonha em se tornar um ídolo do futebol. Ao voltar de uma partida na praia da Copacabana, que fica a não mais que algumas centenas de metros da favela do Pavão-Pavãozinho, ele é abordado por policiais e morto em uma viela. Despretensiosamente profético, o filme confirma o prognóstico de risco que se aplica à grande maioria de jovens moradores de favela. Não é preciso ser um vidente para antecipar o futuro desse segmento social.
O mais impressionante é que o filme não teve a repercussão merecida, mesmo após a morte de DG.
Um dos espetáculos montados no palco do “Programa Esquenta” tematizou a violência urbana. O palco cercado de globais chorando copiosamente, envolvia a família de DG e takes com imagens do rapaz davam o tom da apelação, exaltando a dor e simulando preocupação com os mais pobres. Um verdadeiro show em prol da manutenção do mais do mesmo.
Tudo isso sem culpabilizar os verdadeiros responsáveis, como se a causa de morte de DG e de outros milhares de jovens executados não fosse responsabilidade do Estado de Exceção, materializado na instituição das UPP’s (Unidades de Polícia Pacificadora), criada para projetar uma nova imagem da cidade maravilhosa.
“Made In Brazil”, em seus 6 minutos e 40 segundos de projeção, insere o espectador na subjetiva do personagem interpretado por DG. Revela uma relação do menino favelado com a cidade, assim como DG que sonhou ser uma artista. Ambos os meninos, tanto do roteiro, quanto da vida real, sonharam em ser parte de uma realidade fabricada para poucos. Vislumbraram a fama. Idealizaram estar no centro do palco, com todos os refletores e câmeras voltados para si.
A cidade que quase deixou de ser maravilhosa, graças à eficiência das UPP’s, alimenta as expectativas de milhares de Douglas da Silva, para ao final espetacularizar suas mortes e expor seus familiares, rendendo vitrine para os demagogos e lucrativa audiência dominical.
Ao contrário do tímido “Made in Brazil”, o longa-metragem “Made in China”, dirigido por Estevão Ciavatta e protagonizado por nada mais, nada menos que Regina Casé (casada com o diretor), obteve alta repercussão, sendo exibido em diversas salas de cinema do país.Ao estilo Zorra Total, caracterizado pela ridicularização do pobre, que se aplica também aos filmes “Um suburbano sortudo” e “Até que a sorte nos separe”; “Made in China” é outra ficção que se relaciona com a vida real. Entretanto, diferente do curta do diretor independente Wanderson Chan, a superprodução da Globo Filmes vem atestar a denúncia de Maria de Fátima Silva, de que Regina Casé não se importa com os pobres favelados, mas sim, em como estes podem lhe garantir pontos no Ibope.
“Made in China” retrata de forma cômica a invasão de mercadorias chinesas no tradicional mercado da Rua da Alfândega (Centro do Rio de Janeiro). Francis (personagem de Regina Casé) é uma vendedora que investiga o contrabando chinês. Suas peripécias deveriam mostrar o cotidiano dos comerciários explorados, mas ilustram o trabalhador amigo do patrão, que por sua vez aparece como vítima dos perigosos contrabandistas. O mito da democracia racial se confirma como democracia social, na qual explorados e exploradores convivem harmoniosamente, tal como nas novelas de Manoel Carlos, em que a empregada é tratada como se fosse da família.
É assim, portanto, que se enxerga a produção fílmica contemporânea. De um lado a batalha dos realizadores independentes, com parcos recursos, mas larga margem de criatividade e ousadia. Afinal, o conflito central de Made in Brazil é o assassinato do personagem de DG por policiais fardados.
Do outro lado, o amontoado de subprodutos dos estúdios Globo, dotados de estética novelesca, valendo-se da boa receptividade da fama de seu time de atores e reproduzindo o conteúdo melodramático que adestra o público a interpretação do real, segundo os esquemas maniqueístas. “Made in China” representa a hegemonia do cinema-indústria e seus conflitos artificiosos, sinalizando que o cinema também vem sendo golpeado. Um cinema sem ação que serve para mascarar o secular projeto de opressão dos ricos contra os pobres.