(Foto: Divulgação STF).
Arpeggio – Coluna diária do editor
Por Miguel do Rosário
Ela avisou que não gosta de ser chamada de “presidenta”, alegando amor à língua portuguesa.
Mas eu receio que não seja um amor correspondido. Se o feminino de presidente existe há décadas em nosso idioma, não creio que a última flor do lácio esteja feliz em assistir uma autoridade tão importante tentar lhe roubar um dos filhos.
Então eu chamo Carmen Lúcia de presidento, porque embora não possua provas cabais da existência da palavra, tenho absoluta convicção de que a literatura – e alguns séculos de liberdade poética – me permitem fazê-lo.
Vejo no blog do Camarotti, um dos porta-vozes oficiosos do governo Temer (e, constato agora, não apenas do governo Temer, mas da “coalizão” de golpistas que assumiu o poder no país, Globo incluída), uma notícia maravilhosa: “Cármen Lúcia articula ‘coalizão’ para conter crise na segurança pública”.
O primeiro parágrafo da notícia é uma obra-prima da literatura policial. Norte-americana, é claro:
Preocupada com a crescente onda de violência pelo país, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, quer estabelecer uma “coalizão” entre STF, Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Forças Armadas, Ministério da Justiça, Polícia Federal, Polícia Rodoviária, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a fim de montar um plano emergencial para a segurança pública, informa a repórter Delis Ortiz, da TV Globo.
O ex-presidente George Bush, se por acaso lhe caísse em mãos uma notícia como essa, deveria imediatamente pensar: “What a fuckin’ amazing good idea! I dont believe my guys never thought somethin’ like that!”
O inglês é meu, inventado às pressas, e peço perdão aos bons conhecedores do idioma de Bob Dylan. Eu quis dizer o seguinte, em bom português: “Que ideia maravilhosa! Não acredito que nenhum dos meus caras jamais pensou nisso!”
Sim, porque é uma ideia que poderia fazer corar de timidez os formuladores do “Patriot Act”, a “lei patriótica” assinada por Bush enquanto os escombros do 11 de setembro ainda fumegavam.
Talvez Montesquieu não gostasse muito dessa “pausa democrática” na teoria da separação de poderes, mas se o combate à corrupção exige, como vem pregando um palestrante-juiz (nessa ordem), uma “excepcionalidade relativa” das leis penais, porque não estender o conceito à segurança pública?
Um desses obsoletos, derrotados e ressentidos defensores dos direitos humanos, que vivem por aí gritando “golpista” e “fora Temer”, poderia argumentar que segurança pública é um conceito complexo, que envolve aprimoramento das políticas sociais, humanização das prisões, uma polícia menos violenta e menos corrupta, políticos e juízes que garantissem a soberania do voto, um governo que adotasse políticas públicas em prol do emprego e incentivasse mais a pluralidade de ideias, para que não apenas as demandas dos ricos tivessem voz.
Felizmente, a turma dos direitos humanos foi apeada do poder e, com ajuda da Lava Jato e da mídia, sofreu um baque nas urnas.
Agora é a hora da turma da segurança pública dar as cartas.
O impeachment veio para isso mesmo, para que tenhamos uma “coalização de segurança” pública com a participação (?) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), esta entidade que demonstrou, nos últimos tempos, um grande apreço à democracia, ao voto e ao devido processo legal.
Há um detalhe da notícia que não pode ser esquecido. O STF não soltou nenhuma nota oficial sobre a tal ideia de “coalização da segurança pública”. Não foi concedida nenhuma coletiva. A história foi divulgada exclusivamente pela “TV Globo” e, em seguida, pelo blog de Camarotti. De tudo isso, porém, a fonte dessa informação é o que faz mais sentido. Até porque, quando a notícia cita os órgãos que fariam parte da “coalizão”, a principal ausência é justamente a… Globo. Mas é uma ausência por pura modéstia. Claro que a Globo terá um papel central na coalizão, e o fato de ter sido a primeira a noticiar, e com exclusividade, uma inovação tão importante na doutrina mundial da segurança pública e da democracia, é a maior prova de seu protagonismo.
Além do mais, não podemos esquecer que Carmen Lúcia foi a “personalidade do ano” da Globo em 2015. Lucia jamais esquecerá de retribuir tão merecido prêmio à sua brilhante carreira.
Devemos, aliás, agradecer todos os dias a Deus por ter iluminado Lula e Dilma e os terem feito indicar nomes tão brilhantes para o Supremo Tribunal Federal, tais como Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Ayres Brito, Teori Zavascki, Luis Roberto Barroso, Carmen Lucia, Rosa Weber, Dias Toffoli, Edson Fachin, além do falecido excelentíssimo Carlos Alberto Menezes Direito.
Todos esses indicados pelo PT se revelaram combatentes excepcionais dessa última trincheira democrática que é o STF.
Carmen Lucia, também ontem, fez uma emocionada defesa da PEC 241. Segundo apurou o site Justificando, a presidente do STF adiantou que a PEC é “necessária”, assim como “os sacrifícios” do jurisdicionado brasileiro.
Não sei o que me conforta mais, se é constatar a valente generosidade do nosso Judiciário, cuja principal representante se alia ao Executivo para conduzir o povo pelo bom caminho dos “sacrifícios”, ou se é ver o cidadão brasileiro ser chamado de “jurisdicionado”.
Eu fico lembrando, com lágrima nos olhos, os “sacrifícios” terríveis que os nossos nobres juízes tem feito para reduzir os gastos da máquina estatal.
O fato da PEC 241 ser uma medida polêmica, criticada por importantes economistas, e estar ainda sendo debatida na seara política, não é um incômodo para premiada Carmen Lucia. Esse é o tipo de postura que “Faz Diferença“!
Enquanto isso, Gilmar Mendes toma uma decisão, divulgada ontem à noite, sobre a qual deveríamos pensar muito. A notícia é, novamente, da Globo:
Processos trabalhistas com base em acordos vencidos são suspensos
Ministro do Supremo entendeu que norma protege somente o trabalhador.
Regra garante ao empregado direitos de acordos coletivos já vencidos.Mariana Oliveira
Da TV Globo, em BrasíliaO ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar (decisão provisória) para suspender todos os processos em andamento na Justiça do Trabalho que têm por base uma regra que garante ao trabalhador direitos de acordos coletivos já vencidos.
Por essa regra, esses direitos vigoram até que nova negociação seja firmada pelo sindicato ou grupo da categoria.
Para o ministro, porém, a norma protege somente o trabalhador, ignorando que um acordo coletivo deve considerar, segundo ele, os dois lados da relação – empregado e empregador.
Confesso que fiquei levemente confuso pela sintaxe da notícia, em especial com um dos subtítulos, que fala que “a regra garante ao empregado direitos de acordos coletivos já vencidos”. Sim, porque o certo, se o objetivo fosse evitar ambiguidades, seria dizer que “a regra garantia”. Ou seja, usar o verbo no passado. Mas depois de tantos anos analisando a semiótica da grande mídia brasileira, eu devo ter me tornado paranoico, vendo manipulação em toda parte.
Gilmar Mendes, que recentemente participou de reunião entre velhos amigos no Palácio do Planalto, com Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, não economizou adjetivos para se referir às decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST):
Para o ministro Gilmar Mendes, a Justiça Trabalhista vinha aplicando a súmula “sem base legal ou constitucional que a suporte”.
(…)
Mendes disse na decisão que o entendimento do TST de manter válidos acordos já vencidos é “proeza digna de figurar no livro do Guinness, tamanho o grau de ineditismo da decisão que a Justiça Trabalhista pretendeu criar”.
Ainda bem que os meninos irresponsáveis do TST tem um superior como Gilmar Mendes, um verdadeiro pai, que anula suas decisões ineptas.
Alguém precisa pensar nos patrões, que são a verdadeira classe dos oprimidos em nosso país. Tão oprimidos que, como prova o desemprego chegando a mais de 12 milhões de brasileiros, vem experimentando o sofrimento inaudito de não poderem mais ser chamados de “empregadores”.
***
Antes de concluir a coluna, porém, há mais uma notícia envolvendo o STF que eu gostaria de comentar. Eu entrei no site da instituição à procura de notícias sobre a tal “coalizão pela segurança pública” que, infelizmente, não encontrei, o que me obrigou a dar o link da TV Globo. Mas encontrei uma outra notícia que me parece digna dos tempos atuais.
A notícia, datada do último dia 13, e que ainda aparece com destaque na página, é a seguinte:
Indeferida liminar que pedia revogação da prisão de José Dirceu
É uma notícia assaz emblemática e que me interessou muito. Eu a examinei com atenção, cliquei no link com a íntegra da decisão, e a li também.
O digníssimo Teori negou sumariamente a tentativa de Dirceu de sair da prisão, sem porém explicar muito, apenas repetindo os argumentos já apresentados por Sergio Moro, os quais se fundamentam, como de praxe, na existência de “corrupção sistêmica”.
Há, portanto, vários elementos probatórios que apontam para um quadro de corrupção sistêmica (…)
O fato de que os principais ladrões da Petrobrás estarem soltos, ou em confortável regime domiciliar, após confirmarem em delação o que os procuradores sempre souberam, que o PT é uma organização criminosa, e que, felizmente, está prestes a ser eliminado da política brasileira, não tem nada a ver.
Dirceu é um petista e, como tal, infinitamente perigoso. Como bem explicou um dos delegados da Lava Jato, no relatório que pediu sua prisão em regime fechado, “Dirceu possui grande poder de articulação política e de influência, inclusive através dos meios de comunicação de massa”…
A menção à “corrupção sistêmica” para justificar a prisão de alguém é uma estratégia brilhante. Como responder a isso?
Com esse argumento, pode-se prender qualquer cidadão. Se a corrupção é sistêmica, ela é como o oxigênio, está em toda parte, então sempre haverá elementos para justificar uma prisão. Desde que esta seja a vontade do juiz, claro.
Piercamilo Davigo, o “cérebro jurídico da operação Mãos Limpas”, constantemente citado por Sergio Moro, não dizia que “não existem inocentes; existem apenas culpados não descobertos”?
***
Há três filmes / séries no Netflix que eu aconselho aos ministros do STF, e aos leitores do blog, e sobre as quais pretendo escrever muito, em minhas próximas colunas. Making a Murderer, uma série-documental sobre um caso escabroso da justiça norte-americana, em que várias autoridades, polícia, promotor e juízes protagonizam todo o tipo de “excepcionalidades relativas” para condenar um inocente; Amanda Knox, um documentário sobre um caso clamoroso, em que judiciário, promotoria e mídia se juntaram para promover um linchamento de uma americana, acusada de assassinar uma colega de quarto, em Perugia, Itália (após ficar presa por vários anos, depois de uma investigação de um promotor que “adorava Sherlock Holmes”, ela é inocentada pela corte suprema da Itália; se fosse no Brasil, não sei se teria a mesma sorte); e a 13ª Emenda, sobre políticas públicas adotadas pelo Estado americano que levaram ao encarceramento em massa de pobres e negros, criando uma população carcerária de 2,3 milhões de pessoas, a maior taxa de encarceramento do planeta.