Espiando o poder: análise diária da grande imprensa
Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo
Por Luis Edmundo Araujo – colunista do Cafezinho
Presidente empossado, não eleito nem votado, Michel Temer tem a força. Prova disso é o placar elástico, goleada de 366 a 111 votos na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 241, a PEC do Teto nos gastos públicos, mola mestra da faceta econômica do golpe. Com a base aliada no Congresso “mais forte que a de Lula”, segundo a manchete do Estado de São Paulo, “Temer tenta acelerar projetos”, entre os quais, de acordo com a notícia de maior destaque na capa da Folha, está o endurecimento das “regras para soltar presos”. Temer tem a força e precisa mostrá-la, porque a própria Folha, na página A 15, exibe as contradições do golpe a revelar que nem tudo são essas maravilhas todas. “Lava Jato e nova política do BNDES preocupam bancos”, diz o título da matéria que relata, basicamente, o receio de estrangeiros em investir num país em que prende-se às pencas sem provas, a bel prazer de um juiz de primeira instância. E se avisa na manchete que os “bancos já suspendem consignado a aposentado”, o Globo abre ao lado, bem grande, a foto aí de cima, da Basílica de Nossa Senhora da Aparecida, com destaque para o “apelo” do cardeal local para que “Temer proteja o povo, ‘especialmente os mais pobres'”. Rezemos, pois.
Logo abaixo da imagem principal, do dia da padroeira nacional, o jornal carioca lembra na capa do dia também da criança, na foto de Jorge William com algumas delas à frente da ministra Cármen Lúcia, em visita ao Supremo Tribunal Federal (STF). Presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra sorri no encontro em que foram distribuídos lanches e brinquedos a “crianças e adolescentes que vivem em abrigos do Distrito Federal”, diz o texto da primeira página, sem uma palavra sequer sobre o caso que, lá dentro, curiosamente, vem acima de outra foto de Cármen Lúcia com as crianças. Na véspera do Dia da Criança, o CNJ decidiu rever decisão anterior de aposentar compulsoriamente a juíza do Pará que manteve uma menina de 15 anos presa por 26 dias em uma cela com cerca de 30 homens.
A juíza Clarice Maria de Andrade, que mandou enviar a jovem para a carceragem 100% masculina da delegacia de Abaetetuba (PA), teve, na verdade, sua punição reduzida pelo CNJ presidido, agora, por Cármen Lúcia. Clarice recebeu a “pena de disponibilidade” pelo caso ocorrido há 9 anos. Por dois anos, ficará sem trabahar mas, mesmo em tempos de teto nos gastos públicos, continuará a receber seu salário. A punição, com a qual muita gente sonha em vida, está prevista na Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Passado o período sabático de dois anos, em que poderá, talvez, arejar a cabeça, desanuviar com viagens pelo mundo afora às custas de todos nós, a juíza poderá voltar a vir a ser convocada normalmente, para decidir o destino, quem sabe, de outras meninas de 15 anos.
A Folha de São Paulo é o único dos três jornais a dar a história na primeira página. Limita-se a dizer que “juíza é afastada por ter mantido garota em cela masculina no PA”, e só lá dentro informa, no subtítulo, que o afastamento, na verdade, é uma redução da punição anterior. Ao contrário do Globo, o jornal separa em duas páginas o caso da matéria com Cármen Lúcia e as crianças no STF, sem foto da ministra. E na capa não relaciona a prisão da menina em cela masculina com a manchete a vislumbrar mais tempo nas prisões, menos liberdade. O governo quer que o “regime prisional só mude após cumpridos 50% da pena”, diz o subtítulo, também sem qualquer relação, pelo menos explícita, com a consequência direta na economia, já perceptível, dessa escalada na repressão, priorizando a prisão.
“Fundos à procura de R$ 60 bilhões para investimentos não conseguiram garantir R$ 10 bilhões até agora”, diz o subtítulo da matéria da Folha, na editoria mercado, sobre a dificuldade de se atrair estrangeiros dispostos a participar da próxima rodada de leilões de concessões de serviços públicos. No texto, “escritórios de advocacia que assessoram investidores” relatam as dificuldades expostas com o exemplo dado na própria matéria, de instituição “que administra US$ 100 bilhões em projetos de infraestrutura no mundo” e “desistiu de fazer captações para um fundo criado especialmente para os novos leilões no Brasil”. Ainda no texto da matéria, sob o “medo” em negrito do entretítulo, “banqueiros e gestores” dizem que “muitos interessados em projetos no Brasil sentem-se mais seguros investindo em países como Peru e Colômbia, por considerar as regras e o clima político mais estáveis”.
Nada, no entanto, que tire o otimismo da Folha exposto no editorial, sob o título de “mudança no pré-sal”. O jornal celebra o fim da “exigência descabida” de que a Petrobras seja a única operadora dos campos de exploração e prevê “novo fôlego à indústria local”, a combinar, naturalmente com os estrangeiros. Para agora, no momento, o que chega com certeza é o arrocho exposto na suspensão dos empréstimos a juros menores para aposentados da manchete do Globo, que no subtítulo avisa que “instituições reduzem financiamento a quem recebe auxílio por invalidez”. Ao lado o cardeal Dom Raymundo Damasceno, no texto-legenda da maior foto da capa, reza pela proteção de Temer aos mais pobres. A Folha não citou o apelo do cardeal nem nas páginas de dentro, mas também deu sua maior foto da primeira página, de Márcio Garcez, para o dia de Nossa Senhora de Aparecida, de um ângulo bem diferente da imagem do jornal carioca. Na capa do diário paulista, uma infinidade de guardas-chuvas se espreme até o horizonte, a proteger os fiéis em procissão da chuva que cai dos céus.