por Rob Hunter, no Jacobin | Tradução: Coletivo Vila Vudu
“Ao se autoatrelarem aos Supremos Tribunais, os liberais reciclavam o ceticismo dos impérios, que jamais levaram a sério a soberania do povo e a política de massas.”
“O único ‘consenso razoável’ que um Tribunal Superior pode produzir é inerentemente antidemocrático.”
“(…) Os progressistas devem abandonar os esforços para obter avanços progressistas pela via de alguma lei Constitucional. Não é tarde – nunca é tarde – para todos nos unirmos na busca de uma política na qual a interferência judicial na vida democrática não seja apenas desnecessária: uma política na qual ela seja impensável.”
Os juízes da Suprema Corte [dos EUA] não largam facilmente o serviço vitalício. Ruth Bader Ginsburg provocou uma onda de protestos de comentaristas liberais progressistas recentemente, quando descartou sugestões para que se aposentasse antes do fim do 2º mandato do presidente Obama. Em 1972, William Douglas rasgou o pedido de demissão quando a reeleição de Richard Nixon afastou o fantasma de um substituto hostil. Mas talvez nenhum outro juiz tenha mostrado tanta determinação para permanecer no cargo quanto William Howard Taft. Em 1929, duas semanas depois da Sexta-feira Negra, o ex-presidente convertido em juiz do Supremo Tribunal declarou: “Tenho de permanecer nessa corte, para impedir que os bolcheviques tomem o controle.”
Douglas e Taft sabiam muito bem, ambos, das consequências de deixar o Supremo Tribunal. Juízes contemporâneos mostram-se menos inclinados a reconhecer o aspecto militante de seu ofício. Apesar de descrever a atual formação do Supremo Tribunal como “ativista”, Ginsburg parece não se incomodar com a ideia de ser substituído por juiz conservador. Nisso acompanha a mitologia prevalecente sobre o Supremo Tribunal. Como o colega de Ginsburg, John Roberts, disse na sabatina antes de ser nomeado, em 2005, juízes com poder para revisão judicial – o poder, de fato, para interferir na e modificar a constitucionalidade da legislação – devem lutar para ser “árbitros” imparciais.
Os liberais protestaram, acusando Roberts de argumentar de má fé, mas, de fato, partilham a mesma visão. Na imaginação política liberal e de setores da esquerda, o Supremo Tribunal é instituição que deve fazer valer princípios, não práticas políticas. Como reconheceu uma vez o filósofo Richard Rorty, liberais “voltam-se na direção do Judiciário como a única instituição política diante da qual nós ainda sentimos algo semelhante a um respeito misturado ao medo. Essa emoção (…) tem a ver com respeito pela capacidade de homens e mulheres decentes, para se sentar, destrinçar assuntos e questões, argumentar a favor e contra e chegar a um consenso razoável.”
Dado que sempre desdenham o conflito político, os liberais tendem a buscar consensos mediante a conversação. E sempre preferem que tais conversações tenham lugar num estrato estreito de elites e agentes do poder.
O único “consenso razoável” que um Tribunal Superior pode produzir é inerentemente antidemocrático.
O entusiasmo dos liberais para conseguir mudanças políticas por ação do Supremo Tribunal, não pelo confronto ou pela luta, ilustra até que ponto (alto!) a política dita progressista esvaziou-se de qualquer conteúdo e objetivo.
Em 1789 – mesmo ano em que os revolucionários franceses estavam tomando a Bastilha – as elites ricas e proprietárias de terras dos recém constituídos Estados Unidos já cuidavam de consolidar o próprio poder. A Revolução Francesa buscou abolir a aristocracia. Mas nos EUA, uma nova aristocracia de proprietários de terras, comerciantes e mercadores de escravos – os autores da Constituição, que entrara em vigor em marços daquele ano – cuidavam de impedir que jamais acontecesse coisa semelhante à Revolução Francesa, em solo norte-americano. Estavam incomodados com levantes populares; demandas de perdão de dívidas, em massa; e governos estaduais que pareciam perigosamente interessados em subordinar os interesses de credores e das elites mercantis aos dos agricultores e dos trabalhadores.
Pela Constituição, aqueles agentes iniciais estavam determinados a pôr em ação um sistema de instituições capazes de resistir contra todas e quaisquer pressões democráticas e manifestações tácitas de soberania popular.
Embora os primeiros ‘constitucionalistas’ norte-americanos frequentemente invocassem a ideia de soberania popular, não a tomaram de modo a fazer dela um tema coletivo; de fato, só cuidaram de impedir que ela aflorasse. A Convenção Constituinte de 1787 de modo algum pode ser classificada como assembleia constituinte como havia na França. Foi convocada sob estado de exceção, não em estado de fermentação revolucionária. Seus delegados empenharam-se, não para dar expressão constitucional à soberania popular, mas para criar um governo nacional cuja capacidade de responder adequadamente a políticas democráticas era limitada.
Para os que passaram o dia na Convenção, soberania popular consistia de pouco mais que apresentar a Constituição aos governadores para que a ratificassem – nenhum deles cogitava de qualquer forma de profundíssima democracia participativa.
A Constituição diz que o poder dela viria do povo, mas estabelece um sistema de instituições caracteristicamente antidemocráticas. Diferente das instituições políticas da França Republicana, as instituições estabelecidas pela Constituição dos EUA são dominadas por elites, descentralizadas e marcadas por poucas oportunidades para a participação popular direta. Essas são as instituições que o Supremo Tribunal defende quando revisa a constitucionalidade das leis. Desse modo, o Supremo Tribunal participa na política norte-americana sobretudo quando se aplica no esforço para fazer fracassar o exercício do poder democrático das massas.
Antes da Guerra Civil, o Supremo Tribunal praticamente jamais invalidava leis do Congresso, por questões constitucionais. O único episódio importante nesse sentido foi a decisão do presidente do Supremo Tribunal Roger Taney, no caso Dred Scott v. Sandford. Taney escreveu que o Congresso não tinha poderes para proibir a extensão da escravidão para os territórios, e acrescentou, para sua eterna infâmia, que as proteções constitucionais aplicavam-se exclusivamente aos brancos. Dred Scott oferece a antevisão do uso mais óbvio e mais frequente do exame da constitucionalidade das leis: proteger os limites da Constituição contra as incursões e avanços da política democrática.
A sentença Dred Scott não foi cancelada por alguma outra decisão do Supremo Tribunal, mas, sim, porque os estados secessionistas foram derrotados em guerra. A revolução burguesa nos EUA – a mobilização e morte de centenas de milhares de soldados, além do surgimento de um governo federal com prerrogativas e poderes realmente nacionais – foi o que pôs fim à escravidão, não alguma deliberação e decisão de nove velhos vestindo saiotes.
A vitória do governo federal na Guerra Civil nos EUA foi cristalizada nas Emendas 13ª, 14ª e 15ª, que estabeleceram o primado de uma concepção nacional de cidadania, sobre a colcha de retalhos de direitos semifeudais de cidadania da república de antes da guerra.
Mas nem a tinta em que foi escrita a 14ª Emenda havia secado, e o próprio Supremo Tribunal já tratava de apagar a cláusula dos Privilégios e Imunidades, que davam poder ao governo federal para proteger cidadãos contra abusos pelo governos estaduais. (Exemplos contemporâneos desses abusos são “reforma” da previdência social, ataques aos sindicatos e cortes de todos os tipos contra a educação pública.) Nos Slaughterhouse Cases[literalmente “Casos do Matadouro”], cinco juízes reescreveram a cláusula dos Privilégios ou Imunidades, de modo a impedir que fosse aplicada à política no estado – um alerta de que o judiciário federal só pode servir como reduto de resistência conservadora contra o projeto de construir um Estado nacional, centralizado e igualitário.
Nas décadas que se seguiram, a Corte só aprofundou seu papel de baluarte conservador contra qualquer tentativa para expandir o alcance e a autoridade das instituições públicas. Muitos historiadores do Supremo Tribunal lembram o caso Lochner v. New York como um marco, na era da reação judicial. Mas a decisão – na qual o Supremo Tribunal derrubou uma lei que criava um limite máximo de horas de trabalho – não foi considerada de grande importância pelos contemporâneos. Era raramente citada em casos subsequentes, e acabou por ser ultrapassada sem reconhecimento ou fanfarra. Mais importante que o que o caso exposto emLochner eram os pressupostos ideológicos que animavam a decisão: um medo genuíno de que instituições democráticas se pusessem a meter o nariz no castelo oculto da produção, e uma convicção de que não se pode admitir que a política pública reconheça o conflito de classes.
Escrevendo para o Tribunal, o juiz Rufus Wheeler Peckham esbravejava que reconhecer a legalidade de leis que limitassem as horas de trabalho a serem exigida do trabalhador seria abrir uma caixa de Pandora da mais insidiosa intervenção do Estado na economia. Essas preocupações inspiraram muitas das sentenças dos juízes durante esse período. Nenhuma decisão tomada individualmente foi a pedra angular da muralha que o Supremo Tribunal começava a erigir contra políticas progressistas e, portanto, nenhuma decisão considerada individualmente poderia derrubá-lo.
O Supremo Tribunal manteve esse viés ideológico ao longo dos anos 1920s e 1930s, quando os juízes tinham presidentes conservadores como Taft reforçados por uma leva de reformas do Judiciário federal, que deu ao Supremo maior poder discricionário sobre as próprias súmulas e maiores poderes de supervisão sobre os tribunais inferiores. A Corte tornou-se importante ponto de veto conservador, durante os confrontos entre trabalho e capital antes do New Deal. Em casos como Adkins v. Children’s Hospital (sobre uma lei de salário mínimo federal), o poder do Judiciário para modificar o teor de uma lei, na direção de obstruir a criação de política social nacional ficou vividamente demonstrado. Os juízes conservadores estavam bem conscientes da volatilidade crescente das relações entre trabalho e administradores das fábricas, e da desigualdade econômica crescente. E estavam determinados a impedir quaisquer esforços democráticos que visassem a remediar as patologias do capitalismo.
Mas mesmo precedentes como Adkins logo foram, ou derrubados ou abandonados. Nos anos 1930s, os juízes conservadores no Supremo Tribunal cederam a pressões políticas da coalizão do New Deal – como quando Franklin Roosevelt ameaçou desconstituir todo o Supremo Tribunal, como único meio para ultrapassar a intransigência de juízes conservadores – e de resistir contra a expansão dos poderes federais para intervir na economia.
A experiência dos anos 1930s deveria ter ensinado duas lições aos liberais progressistas: primeira, que a habilidade do Supremo Tribunal para modelar a política nacional aparece, principalmente, sob a modalidade de o Supremo derrubar legislação popular. A segunda, um Supremo Tribunal obstrucionista – como uma oposição obstrucionista – pode ser derrotado mediante ação bem organizada e concertada de líderes políticos, sindicatos e organizações partidárias, e ativistas de movimentos de rua.
O Supremo Tribunal pode desempenhar papel progressista e construtivo, se garantir apoio jurisprudencial a projetos específicos. Que esse apoio esteja sempre acessível e seja sempre farto para projetos conservadores, não é acaso. A Constituição descreve uma política descentralizada, fragmentada pelo federalismo e impenetrável a pressões populares. É, portanto, plataforma de lançamento retórico ideal para os esforços dos conservadores que queiram fazer retroceder quaisquer avanços de governos distributivos. E o Supremo Tribunal é veículo ideal para tais esforços. Como explicou o especialista e professor de Direito Larry Kramer, a antipatia contra a democracia entre conservadores e também entre liberais, na segunda metade do século 20 promoveu a noção de “supremacia do Judiciário”, sob a qual o Supremo Tribunal é visto naturalmente como intérprete autorizado da Constituição.
O resultado líquido desdobra-se em dois: o Supremo Tribunal agora já consegue quase sempre fazer valer as suas próprias construções do sentido da Constituição, e muitos agentes ativos na política (de modo especial os liberais) só conseguem pensar em decisões fundacionais sobre a ordem política norte-americana, se as veem em temos judiciais.
Com a assistência de governos republicanos amistosos, os recentes Supremos Tribunais Rehnquist (1986-2005)e Roberts (2005-atual) muito fizeram a favor de pulverizar e fazer sumir todos os fundamentos jurídicos do fragmentado estado de bem-estar que havia sido erguido no século 20.
Supremo Tribunais conservadores passaram a rejeitar o entendimento – que fora alcançado durante o New Deal – de que o Congresso teria capacidade para regular a atividade econômica no plano dos estados, pondo abaixo a Lei das Áreas sem Armas em Áreas de Escolas e parte da Lei contra Violência contra Mulheres (aqui se abriu uma exceção: o Supremo Tribunal preserva a capacidade do Congresso para trabalhar a favor de políticas conservadoras, como usar a lei federal para desmontar esforços no plano dos estados para liberalizar o uso de drogas.) Durante a Era Rehnquist, o Supremo Tribunal frequentemente interveio no processo político, declarando limites severos ao poder público e disputando com o governo eleito a competência para administrar a economia. Na Era Roberts, os juízes do Supremo Tribunal deram continuidade ao trabalho do Tribunal Rehnquist: mantiveram o desmembramento das capacidades dos governos centrais (eleitos) para monitorar e intervir no mercado, além da fragmentação quase feudal do poder político no plano dos estados.
Mas é importante observar que o Supremo Tribunal Roberts é só braço auxiliar da governança neoliberal. Suas decisões devem ser vistas como ratificações de fatos políticos consumados, não como movimentos independentes. Simplesmente substituir juízes conservadores por juízes liberais é nada, em termos práticos. Fato é que a ratificação judicial dos conservadores ajudou a lançar os alicerces de lei de uma política menos inclusiva, e a impedir contramovimentos também legalistas – únicos movimentos que os liberais ainda estão dispostos a considerar possíveis.
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Assim sendo, por que o Supremo Tribunal ainda tem tantos defensores liberais e até de alguns setores da esquerda? A resposta pode ser encontrada nas décadas de despolitizamento, na segunda metade do século 20.
Jamais favoráveis à agitação, à organização da sociedade e aos confrontos (diferentes nisso dos conservadores, que são muito bem versados nessas táticas), liberais e alguns setores da esquerda puseram-se a imaginar – como tantos fazem ainda hoje – que as idas e vindas do antagonismo político poderiam ser superadas por ação de Sua Majestade, a Lei Constitucional. Inflaram o peito com uma imagem do papel do Supremo Tribunal como defensor de direitos e liberdades individuais. A principal pedra fundamental dessa visão é um punhado de decisões exaradas do Supremo Tribunal sob a presidência do juiz Earl Warren. Mas a experiência do Tribunal Warren foi anômala e não se repetirá – não pelo menos, com certeza, enquanto não acontecer mudança profunda na política dos EUA.
Só no ambiente político mais amplo da hegemonia dos liberais de centro, em meados do século 20 – sublinhado materialmente pelos anos do boom do pós-guerra e o equilíbrio, então ainda não completamente destruído, entre o trabalho organizado, o capital e o estado nacional em expansão –, foi que os juízes liberais afinal se sentiram no lugar certo, com poder suficiente para, temporariamente, obter modestos ganhos progressistas. Os feitos progressistas do Supremo Tribunal, que só foram possíveis sob aquelas condições do compacto de pós-guerra definiram as expectativas liberais sobre o quanto o Supremo Tribunal seria capaz de fazer, que se mantiveram mesmo quando, como hoje, aquele compacto já desapareceu completamente.
Apesar de suas realizações, os liberais de centro do Tribunal Warren não conseguiram lançar os alicerces legais para um realinhamento da Constituição, porque resultados realmente progressistas só poderiam ser obtidos se se derrubassem até as pilastras de base da lei constitucional. As decisões de Warren e seus aliados quebraram a continuidade legal – a relíquia feudal mais bem amada dos juristas conservadores.
O resultado em Brown v. Board foi alcançado não por raciocínio doutrinal ortodoxo, mas pela consciência que os juízes partilhavam, de que a dessegregação das escolas era moralmente necessária (uma política que nunca foi plenamente implementada e permanece como ideal distante ainda hoje). A opinião majoritária em Griswold v. Connecticut – pedra de toque da moderna jurisprudência sobre privacidade – repousava sobre raciocínio textualmente espúrio. (Não tendo encontrado nenhum direito explícito a qualquer privacidade na “Bill of Rights”, o juiz Douglas cozinhou um, extraído das “penumbras” e “emanações” dos direitos individuais lá listados.) E o Supremo Tribunal explicitamente criou novas políticas para comandar interações entre civis e polícia, em casos que se converteram em marcos históricos, como Mapp v. Ohio e Miranda v. Arizona. Sem querer esperar pelos movimentos legislativos de reforma política, o Supremo Tribunal se autoarrogou a missão de produzir políticas, ele mesmo.
Os ganhos obtidos pelo Tribunal Warren foram modestos, mas reais. Mas não podiam durar – como vários outros produtos do compacto do pós-guerra – precisamente porque foram resultado de deliberações feitas dentro da elite, não de mobilização de massas. Muitos casos que viraram ‘referência’ só muito frouxamente tinham algo a ver com movimentos populares. Poucas das decisões do Tribunal Warren podem ser descritas como conquistas de longas lutas de grupos organizados. Quando foram contestadas por Supremos Tribunais posteriores, aquelas decisões, de modo geral, não encontraram grandes grupos de eleitores que se mobilizassem para defendê-las. Juristas conservadores armados com a doutrina politicamente potente (embora filosoficamente pueril) do “originalismo” sentiram-se suficientemente fortes para declarar que aquelas decisões não tinham base constitucional.
O originalismo – bem resumidamente – é a doutrina segundo a qual a visão e as preferências de políticos e juízes mortos há muito tempo devem sobrepor-se às dos vivos – ainda conserva considerável prestígio, porque é simples e é compatível com o conservadorismo. Liberais de centro e de esquerda criticam o originalismo por ser arbitrário e regressista, por mais que, eles mesmos, sirvam-se de argumentos também arbitrários e regressistas para defender decisões liberais do Supremo Tribunal contra o que os conservadores chamam de “ativismo judicial”. Melhor seria falar de “juristocracia”[ing. juristocracy], termo usado pelo cientista político Ran Hirschl para descrever o uso de Supremos Tribunais para diminuir ou destruir a qualidade das democracias constitucionais. Contudo, o ativismo de Supremos Tribunais conservadores recentes é simplesmente o resultado de consistente estratégia juristocrática, e de juízes superiores conservadores extraírem máximo proveito do papel institucional do Supremo Tribunal. Usar uma instituição inerentemente conservadora para defender uma Constituição inerentemente conservadora é ação bem direta. Tentar encher aquela instituição com liberais de esquerda, que tentarão interpretar ‘liberalmente’ aquele documento é muito mais difícil.
Depois do auge do Tribunal Warren, presidentes Republicanos e seus governos – aqui se destacam Ronald Reagan e seu Advogado Geral Edwin Meese – trataram de cuidadosamente reformatar o Judiciário Federal, para que servisse como uma barricada contra novas expansões do poder federal. Com raras derrapadas – por exemplo, quando Robert Bork não foi aprovado em sabatina de admissão, principalmente porque pecou por excesso de sinceridade – essa estratégia foi bem-sucedida e criou Superior Tribunal dominado por conservadores que reagiriam com fúria contra as interpretações expansionistas do poder do Congresso ratificaram judicialmente as instituições do New Deal e da Great Society.
Da perspectiva liberal de esquerda, a juristocracia é uma aberração, não a norma. Na literatura de campanha, em artigos de revistas e editoriais de jornais, a colcha de retalhos do estado progressista condenado a uma existência precária no último século é frequentemente defendida em termos jurisprudenciais. Aja agora, ou os Republicanos desfarão Roe v. Wade! Meu oponente quer apagar Brown v. Board! Precisamos reparar o dano causado por aqueles juízes conservadores ativistas em Citizens United! Juízes Republicanos são uma ameaça a nossos direitos constitucionais!
Essa perspectiva obscurece a importância da luta política concertada, organizada, e destaca, sem necessidade, o linguajar e a casuística legalista. O crescente uso contemporâneo do linguajar ‘jurídico’ também entre os liberais de esquerda – relacionado que é à preservação de precedentes ainda sobreviventes e à continuidade das instituições, não à sua recriação política – é mais uma ilustração do fundo do poço a que chegou o despolitizamento das sociedades. Liberais judiciais de centro abandonaram a política de massas, só para ver a hegemonia de juízes também liberais como eles ser detonada pelos sucessos eleitorais dos conservadores, e a resultante recomposição conservadora do Supremo Tribunal. A evidência de que rejeitaram a democracia nas ruas os deixam em situação de ter de ansiar por ver no Supremo Tribunal algo que muito se assemelha à monarquia.
Os prêmios obtidos mediante o liberalismo de direita judicial jamais foram garantidos e agora parecem mais frágeis do que nunca: direito de optar pelo aborto, mais frágil que papel ao vento; a mais porosa concepção de privacidade; e as mais frágeis proteções que se poderia imaginar, contra uma resma de serviços de segurança cada vez mais militarizados. Esforços organizados de massa – que exigiriam que os liberais de esquerda superassem a relutância para encontrar aliados na Esquerda – poderiam ter levado a obter os mesmos resultados, mas duradouros e que poderiam ser mantidos, desde que as instituições políticas fossem pressionadas para cumprir a lei, revisar procedimentos administrativos e até, claro, modificar a Constituição na direção de mais democracia para todos, não, como se vê, na direção de objetivos que só interessam e mobilizam os conservadores.
Mas a maioria dos liberais de esquerda (dos demais, nem se fala) concebe grupos marginalizados e minorias não como aliados ou camaradas, mas como pontos isolados que não se conectam e que só um Supremo Tribunal muito distanciado poderia proteger. Não existe solidariedade na gramática política liberal com ‘tendência’ ‘judicial’. Em vez disso, há algo que mais parece um erro filosófico: simplesmente é impossível, não pode ser – ou é o que os liberais pensam –, é impossível que minorias engajem-se produtivamente com instituições das maiorias; que grupos marginalizados consigam bater acima da própria altura deles, desde que organizados, em coalizões construídas para essa finalidade; ou que a intersetorialidade da opressão em mundo do capitalismo tardio pode gerar novas compreensões de riscos partilhados e interesses comuns.
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Os defensores originais da revisão judicial (Supremos Tribunais com competência para modificar leis e até rejeitá-las completamente) foram conservadores que absolutamente não confiavam na democracia.
Hoje, a importância de confiar no Supremo Tribunal para que aja como freio, na política democrática, é como artigo de fé, aceito sem discussão na filosofia política liberal. Fazer a caça a políticas progressistas mediante litigância e apelos é elo central para as estratégias de incontáveis instituições políticas liberais.
Candidatos à presidência dos EUA prometem nomear juízes que defenderão decisões como Roe v. Wade e rejeitarão decisões como [comitês nacionais para arrecadar dinheiro para campanhas eleitorais, sem qualquer limites] Citizens United, mas não prometem liderar movimentos para expandir e garantir acesso significativo a recursos para aborto seguro, para reduzir a usurpação de prerrogativas democráticas, pelos plutocratas e corporações personalizadas.
O liberalismo tecnocrático eclipsou o panorama de democracia aprofundada e de liberdade social significativa que ainda se viam, mesmo de relance, durante episódios como os movimentos para a Reconstrução e pelos direitos civis do século 20.
A lei Constitucional não é veículo para políticas emancipatórias. O Supremo Tribunal é ferramenta para preservar arranjos de poder institucionais existentes; e os progressistas bem fariam se lembrassem o que foram e são aqueles arranjos e por que foram adotados.
A concepção de liberdade humana imaginada pela Constituição dos EUA e pelo Supremo Tribunal é despolitizada. É exposta de forma resumida reduzida no texto Constitucional, nunca manifesto na prática política. Os juízes do Supremo Tribunal não considerarão nem agora nem nunca, valores como solidariedade e liberdade para a sociedade, precisamente porque esses valores não aparecem manifestos – sequer são pressupostos – na Constituição; por isso não são ‘legíveis’ na Constituição. Sejam quais forem os ganhos a serem auferidos ao discutir sobre o significado de um documento nacional partilhado, do século 18, são mais do que superados pela hostilidade que aquele documento Constitucional manifesta contra todos os bens partilhados.
E a experiência do Tribunal Warren sugere fortemente que interpretações criativas de um texto já velho de séculos são, precisamente, as mais facilmente derrubáveis.
Liberais de esquerda desperdiçaram grande quantidade de esforço tentando garantir que as interpretações para eles preferidas, da Constituição, sempre convencessem maiorias de juízes no Tribunal Superior. Mas nenhum futuro mais justo, antirracista, pró-feminista, não discriminatório contra GLT e outras minorias e menos ecologicamente destrutivo aparecerá, depois que os juízes de direita do Supremo Tribunal ouvirem advogados de direita expor argumentos de direita. Isso, os liberais de esquerda já deveriam ter compreendido.
Ao se autoatrelarem aos Supremos Tribunais, os liberais reciclavam o ceticismo dos impérios, que jamais levaram a sério a soberania do povo, a política de massas e o exercício do poder público. Adotaram uma visão de política constitucional que gira em torno de ideias de procedimento, consenso e finalidade.
Mas há outro modo de abordar a política constitucional, que a Esquerda conhece bem: como expressão do poder constituinte. Significa articular diferenças, confrontar oponentes e promover a solidariedade. Essas formas de políticas constituem regimes alternativos e contrainstituições, e manifestam o desafio que a Esquerda impõe aos discursos constitucionais ossificados sobre como proceder e direitos apenas formais.
Porém, enquanto os liberais de esquerda e de centro permaneceram atrelados à aura de autoridade e à destinação engessada do Supremo Tribunal/Suprema Corte, eles continuarão sem conseguir ver o que Chantal Mouffe, teórica da política chamou de “caráter constitutivo da divisão social.” Essa divisão e o antagonismo são centrais na democracia.
Organizar coalizões amplas e confrontar instituições poderosas pode aparecer no frontão da política democrática – não sutilezas de interpretações e interpretações espertas de textos ultrapassados. Direitos duráveis ao aborto serão sempre mais bem protegidos por ampla coalizão que exija direito universal a plano de saúde público do que por repetidos recursos a argumentos para proteger o legado de Roe. A reforma da Polícia racista e violenta que existe nada significa e em nada resultará se continuar a depender de interpretações judiciais da 4ª Emenda, e na ausência de qualquer desejo político de realmente subordinar a controle social os corpos policiais paramilitarizados. Confrontar padrões de grande desigualdade no que tenha a ver com gênero e sexualidade é projeto que se pode buscar mais efetivamente mediante alianças interseccionais, não em disputas medievais sobre doutrina constitucional.
Os progressistas devem abandonar os esforços para obter avanços progressistas pela via de alguma lei Constitucional. Não é tarde – nunca é tarde – para todos nos unirmos na busca de uma política na qual a interferência judicial na vida democrática não seja apenas desnecessária: uma política na qual ela sejaimpensável.*****
Rob Hunter tem grau de PhD em ciência política da Princeton University. Vive em Washington, DC
JOHN J.
13/10/2016 - 14h38
QUEM SÃO OS TOGADOS GOLPISTAS:
https://www.youtube.com/watch?v=wHKIErwmG-4
https://www.youtube.com/watch?v=ad5WB83Wx-U
http://www.correiocidadania.com.br/antigo/ed296/politica.htm
https://www.youtube.com/watch?v=05clF9qffIM