Reflexões sobre (falta de) luz ao fim do túnel e uma nova ideia do blogueiro

Arpeggio – Coluna diária

Por Miguel do Rosário

Cherchez la femme. Procure a mulher. A máxima dos romances policiais, citada inclusive em Chinatow, o legendário filme de Polanski, e que se tornou uma metáfora sobre ir até o fundo e encontrar a origem do problema, me parece mais atual do que nunca, no Brasil. Inclusive em sua acepção literal.

Estou me convencendo de que a saída deste buraco sem fundo, em que nos afundamos cada dia mais, apenas será encontrada através de uma revolução liderada por mulheres e negros, os primeiros a serem os mais prejudicados por esta lamentável, trágica, sucessão de golpes contra os direitos sociais e individuais que estamos assistindo.

Legislativo e Judiciário fecharam uma parceria infernal: o primeiro destrói os direitos sociais, como vimos agora, com aprovação da PEC da Morte, que retirará centenas de bilhões de reais da saúde e educação; o segundo nos tira os direitos individuais, como se pode testemunhar pelo avanço dos inacreditáveis arbítrios da Lava Jato e as recentes decisões do STF, permitindo prisão em segunda instância e liberando o arrombamento das casas sem ordem judicial.

Em seu afã de produzir factoides e delações contra Lula, e eventualmente prendê-lo ou eliminá-lo do jogo político, os neomeganhas do MP e da Justiça, que sempre trabalharam afinados com a agenda golpista, vem esmagando as garantias e liberdades individuais – pintadas, com uma demagogia inacreditavelmente cínica, como “privilégios” de poderosos – de uma população de 206 milhões de pessoas!

O Brasil se tornou, de repente, uma obra de literatura fantástica. Não somos mais um país real, e sim uma novela de Gabriel Garcia Marques. Políticos, barões da mídia, latifundiários, juízes, delegados, procuradores da república, empresários, banqueiros fundaram uma espécie de partido político secreto, cujos encontros e decisões ocorrem nas sombras, em conversas reservadíssimas. Seu objetivo é o mesmo que a elite mais egoísta, sem-vergonha e entreguista do mundo sempre perseguiu: oprimir e humilhar o povo, para deixá-lo acovardado, perplexo, tímido, submisso, uma legião de escravos trabalhando duro para manter o privilégio das castas.

Francamente, não vislumbro luz ao fim do túnel a não ser nesta minha convicção, de que derrotar o golpe é um imperativo revolucionário. O problema é quando isso acontecerá e como poderemos resistir durante essa longa e angustiante espera. Sim, porque não nos cabe apenas lutar – isso o faremos, necessariamente, até por sobrevivência -, mas sobretudo resistir e esperar que a dialética do processo histórico leve novamente os núcleos organizados do povo para o centro das decisões políticas.

As armas do blogueiro continuam as mesmas, a informação, a análise, a criatividade. Nessa linha, quero apresentar uma nova ideia, inspirada numa entrevista de Philip K.Dick, o famoso escritor norte-americano de ficção-científica, concedida em 1974, em que ele fala o seguinte:

Como criar um livro de resistência, um livro de verdades em meio a um império de falsidade, ou um livro de retitude em meio a um império de odiosas mentiras? Como alguém poderá esfregar isso na cara do inimigo? Não seria através dos métodos tradicionais de escrever no banheiro, mas como fazer isso num futuro, que virá necessariamente, dominado por novas tecnologias? Será possível, à liberdade e à independência, erguerem-se sob novas formas sob novas condições? Quer dizer, as novas tiranias irão abolir esses protestos? Ou haverá novas maneiras de reagir, através da criatividade, que nós ainda não podemos prever?

As histórias futuristas de Dick tem quase sempre um ponto em comum. Conforme ele diz na entrevista, seus personagem estão quase sempre em luta contra as novas formas de tirania criadas pelo sistema.

É assim que me sinto no Brasil de hoje. A opressão que mais me choca, e que está por trás de tudo, são essas tempestades semióticas diárias a que o povo brasileiro é submetido, com objetivo de deixá-lo anestesiado, ignorante, com medo.

Precisamos oferecer uma nova narrativa. Além disso, eles – do consórcio golpista – já deixaram bem claro que pretendem atacar a liberdade de expressão e encontrar várias maneiras de enfraquecer os blogs.

A imprensa reagiu horrorizada contra recente decisão judicial para quebrar o sigilo de um jornalista da Época. Ora, é sempre assim. A imprensa incitou a cultura da truculência e meganhagem e agora esta se volta contra ela mesma. Sua indignação é falsa. A organização Repórteres sem Fronteiras, em seu último relatório, fez uma dura denúncia contra a liberdade de expressão no país, mencionando o assassinato de blogueiros e a coação à jornalistas, via empresas, para apoiarem o golpe, e a nossa imprensa reagiu com um silêncio sinistro.

Quando o Cafezinho denunciou a sonegação bilionária da Globo, já tínhamos visto a mesma reação: primeiramente o silêncio cúmplice dos meios de comunicação; mais de uma semana depois, a Folha deu uma nota em que, ao invés de mencionar o Cafezinho, fala em “um blog”, o que foi um desrespeito ao nosso trabalho e a senha para ataques futuros contra blogs, inclusive por parte do governo golpista, cuja primeira decisão política, após assaltar o poder, foi pôr os blogs numa espécie de lista negra da Secom, vetando-lhe qualquer acesso a publicidade institucional – ao mesmo tempo em que abria as torneiras para a grande mídia chapa-branca.

A nova ideia, enfim, e que já começou a ser posta em prática, é escrever uma novela sobre o golpe, assinada por mim mesmo. O título do livro é Vana, e conta a história de uma jovem estudante de Ciências Sociais, chamada Vana, que se envolve com um combativo sindicalista. O pano de fundo da história – e talvez seja este o personagem principal – é o golpe de Estado e a efervescência política que o antecedeu. É a história do “não vai ter golpe”, que a mídia nunca contou, embora tenha sido a mais impressionante campanha democrática já vista no Brasil desde as Diretas Já.

Eu vou liberar os capítulos, conforme forem sendo escritos, para os assinantes. É a única maneira de conciliar a escritura da obra com esta coluna. E creio que elas – a coluna e a obra – vão combinar muito bem, visto que o livro é uma espécie de reflexão justamente sobre os tempos atuais.

Minha meta é, como já disse, escrever um capítulo por dia, terminá-la ao final deste mês e, então, embalá-la em forma de livro impresso.

Abaixo, o capítulo de hoje, intitulado “Guerra”, o primeiro do livro, exclusivo para os assinantes do blog (é preciso estar logado para ler). Se não é assinante, aproveite a promoção, que aliás terminará em breve (promoção para ex-assinantes, clique aqui; novos assinantes, clique aqui).

Vana
Capítulo 1: Guerra

O primeiro ato de guerra a gente nunca esquece.

Apesar das conspirações midiático-judiciais terem se intensificado pouco antes das eleições presidenciais de 2014, num esforço desesperado para interferir em seus resultados (a bem da verdade elas começaram em 2005, durante o escândalo do mensalão, um processo que se arrastou até pelo menos novembro de 2012, com a prisão de José Dirceu) a primeira agressão mais direta ao campo popular, a pancada judicial que inaugura uma nova era de autoritarismo no país, culminando no impeachment da presidenta Dilma, foi a condução coercitiva do ex-presidente Lula, determinada por Sergio Moro no dia 4 de março de 2016, para depor numa das inúmeras etapas da Operação Lava Jato.

Foi uma tentativa explícita de humilhar, degradar e agredir – gratuitamente, visto que Lula jamais se recusara a comparecer a qualquer interrogatório da justiça – a principal liderança da esquerda brasileira, e por isso mesmo gerou imediatamente uma enorme comoção nacional.

Numa manhã abafada do final de verão, cinco chevrolets astras, cor preta, sem identificação oficial, estacionaram diante de um edifício em São Bernardo do Campo.

Segundo a imprensa relatou logo em seguida, o próprio Lula, que se preparava para ir à academia, abriu a porta de seu apartamento e recebeu os investigadores.

Um dos agentes mostrou a autorização judicial para revistar o apartamento. Lula reagiu com humor:

“Cadê o japonês da federal?”, referindo-se a um agente de traços orientais que ficara famoso por aparecer sempre nas fotos em que a PF conduzia réus da Lava Jato à prisão de Curitiba.

Em seguida, outro policial informou a Lula que ele teria de se dirigir imediatamente a uma dependência da PF, para responder a algumas perguntas, e que eles iriam conduzi-lo.

O ex-presidente respondeu que se recusava a comparecer a um depoimento não-agendado previamente.

O delegado puxou do bolso um outro documento, contendo um mandato de coerção assinado por Sergio Moro.

Como todas as decisões da Lava Jato, aquela cumpria uma oportuna agenda política, pois dali a duas semanas – no dia 15 de março – aconteceria uma grande manifestação pelo impeachment, que partidos e movimentos da direita vinham organizando há meses, com ajuda militante da grande mídia brasileira. Era muito útil naquele momento, por razões fáceis de psicologia coletiva, gerar um fato político de grande impacto emocional no país, pois o tensionamento não apenas ajudaria a levar as pessoas às ruas, como permitiria uma avaliação bastante precisa sobre a força real de cada campo.

Havia sido um teste. Se a reação da sociedade fosse suficientemente positiva, Lula poderia ser conduzido naquele mesmo dia à Curitiba, e preso por tempo indeterminado, como tem sido a regra da Lava Jato em se tratando de petistas de alto escalão ou empresários que se recusavam a entrar no jogo viciado das delações seletivas.

A marcha do dia 15 de março se tornaria, então, uma grande comemoração pelo fim da maior liderança que as forças do trabalho jamais tiveram em nossa história.

Corroborando essa hipótese, de que houve a intenção de prendê-lo, as próprias redes de TV, nas imagens aéreas de Congonhas, exibiram um avião da FAB taxiado às portas do salão onde Lula estava sendo interrogado.

Esse avião, mais o fato do depoimento ter sido feito num aeroporto, quando a PF tinha uma sede em área reservada a poucos quilômetros dali, geraram especulações de que a turma de Curitiba havia planejado uma espécie de putsch, retirando Lula do jogo político no exato momento em que as conspirações pelo impeachment entravam em ritmo frenético, sobretudo após Cunha ter aceito o pedido de impeachment, no início do ano. Algumas semanas depois seria realizada a sessão da Câmara que anularia o voto de mais de 140 milhões de eleitores.

Moro ordenou que Lula fosse conduzido a uma sala da Polícia Federal no aeroporto de congonhas, um dos mais movimentados do mundo, forçando Lula a atravessar o saguão lotado de curiosos que,previsivelmente, se converteram em manifestantes hostis a Lula.

O circo estava montado.

Em alguns minutos, mais rápido do que os organizadores daquele sequestro judicial talvez houvessem esperado, chegariam militantes petistas e populares simpáticos a Lula, arrebanhados às pressas via redes sociais.

A Lava Jato, operação multiuso da direita, já tinha iniciado a estratégia – que se revelaria bem sucedida – de intimidação e desgaste psicológico, físico, até mesmo financeiro, da militância do campo popular.

Entretanto, a violência contra Lula acendeu uma chama que muitos supunham apagada. Um estremecimento de indignação varreu o país. No mesmo dia, reuniões de emergência foram marcadas em sindicatos, núcleos partidários e pontos de encontro do movimento social.

Em Congonhas, uma série de incidentes forçaram a polícia a recuar de sua decisão de conduzir Lula à Curitiba. Um deputado federal do PT, doutor Rosinha, transitava pelo local e começou a esbravejar contra a PF. Um ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurelio de Mello, também estava ali por acaso e igualmente se manifestou com indignação: “o que vocês estão fazendo com um ex-presidente da república?”. Por fim, um comandante da Aeronáutica, por motivos nunca esclarecidos, mas aparentemente num acesso de legalismo contra a ação clandestina que os agentes da PF, com apoio de Sergio Moro, estavam prestes a fazer, determinou que seus soldados cercassem o avião da FAB e o proibisse terminantemente de receber passageiros ou levantar vôo.

Não estamos falando de fatos lidos num livro ou vistos na TV. O que aconteceu no Brasil em 2016 são mais que fatos. São feridas, profundas, dolorosas, abertas na alma de uma quantidade tão grande de brasileiros que, necessariamente, produzirão mudanças em nossa maneira de pensar.

Eu vivi esses fatos com particular angústia por causa da minha profissão. Diante do avanço do arbítrio, do trator que vinha esmagando, sem hesitar, as flores democráticas que tínhamos cultivado, com tanto zelo, desde o fim da ditadura, eu me sentia desesperadamente desarmado, como um garoto palestino arremessando pedras em poderosos tanques de guerra.

Diante de um quadro político tão desolador, tão vazio de esperanças, prometendo ainda uma sequência de duras derrotas no médio e longo prazos para o campo progressista, numa conjuntura internacional extremamente negativa, minha única arma é espremer a memória e a imaginação para contar, da maneira mais fiel aos fatos, ou mais verossímil em relação ao que poderia ter acontecido, a história de algumas pessoas que participaram, em diferentes papéis e trincheiras, desses turbulentos meses de resistência democrática.

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Vana: relação de capítulos já publicados.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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