Arpeggio – Coluna diária do editor
Por Miguel do Rosário
Trecho do despacho de Moro (íntegra no fim do post) para justificar a prisão preventiva de Palocci:
(…) 181. Embora as prisões cautelares decretadas no âmbito da Operação Lavajato recebam pontualmente críticas, o fato é que, se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso. Se os custos do enfrentamento hoje são grandes, certamente serão maiores no futuro.
O país já paga, atualmente, um preço elevado, com várias autoridades públicos denunciadas ou investigadas em esquemas de
corrupção, minando a confiança na regra da lei e na democracia.182. Impor a prisão preventiva em um quadro de corrupção e lavagem de dinheiro sistêmica é aplicação ortodoxa da lei processual penal (art. 312 do CPP).
183. Assim, excepcional não é a prisão cautelar, mas o grau de deterioração da coisa pública revelada pelos processos na Operação Lavajato, com prejuízos já assumidos de cerca de seis bilhões de reais somente pela Petrobrás e a possibilidade, segundo investigações em curso no Supremo Tribunal Federal, de que os desvios tenham sido utilizados para pagamento de propina a dezenas de
parlamentares, comprometendo a própria qualidade de nossa democracia.
Esse trecho, no qual Sergio Moro sobe o tom e responde às críticas (pontuais, como Moro a elas se refere, arrogantemente) dos excessos da prisão preventiva, resume de maneira brilhante a poderosíssima banalidade do fascismo.
Vale a pena responder a alguns pontos. Moro fala sobre os “R$ 6 bilhões” de prejuízo da Petrobrás. Essa é a conta de português que a própria Lava Jato fez, com base em algum power point. Entretanto, o mais grave é justificar prisões preventivas aplicadas a indivíduos, com base em avaliações adjetivas (sim, adjetivas) da corrupção brasileira. Não tem nenhum sentido. Se a corrupção é sistêmica é porque ela atinge todo o sistema, inclusive o judiciário, e daí voltamos à importância das garantias e liberdades individuais, que é de nos proteger da violência do Estado.
A frase de Moro é puro fascismo penal: “(…) se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la”. Como todo o fascismo, não obedece a nenhuma lógica. Por que impõe-se? Quem impõe? Um juiz de primeira instância? Todos os juízes? As garantias e liberdades individuais foram criadas, há muitos séculos, justamente para que nós, beneficiários de um regime supostamente democrático, não ficássemos expostos a esse tipo de tautologia grosseira. Ora, um outro juiz poderia dizer exatamente o contrário: que o excesso de autoritarismo das instituições judiciais brasileiras sempre trabalharam em prol da corrupção.
Além do mais, vê-se a filosofia punitiva em seu estado mais puro, mais cruel. A “corrupção sistêmica” se combate com… prisão preventiva! Não é com investigações mais apuradas, não é com mais transparência, não é estimulando maior participação cidadã nas decisões envolvendo dinheiro público. É com mais prisão, e preventiva ainda por cima, que é a prisão arbitrária por essência, porque acontece antes do juiz ouvir a defesa do cidadão que tem sua liberdade tolhida pelo Estado.
Moro aparenta possuir uma profunda e erudita ignorância sobre democracia. Ela foi inventada justamente para nos defender da ditadura dos juízes, como são todas as ditaduras, de direita ou esquerda. Para isso inventamos essas coisas tão chatas, segundo Moro, que se chamam garantias constitucionais. Essas garantias nunca foram muito respeitadas no Brasil, mas ao menos havia por elas um respeito intelectual. Acusava-se o Judiciário de desrespeitar os direitos dos mais pobres e beneficiar os ricos, mas não se questionava a importância das garantias. Com o populismo penal, esse respeito desaparece. O judiciário passa a ser instrumentalizado politicamente, e os agentes que patrocinam esse processo ludibriam a opinião pública dizendo que estão prendendo “poderosos”, sem dizer que os poderosos, obviamente, são eles, os que conspiram e instrumentalizam o judiciário, e não os que dele são vítimas.
O Brasil sempre teve corrupção. E existe corrupção em todos os países. Pretender que a corrupção de hoje é maior que a de antes, ou que é superior a de outros países, é um embuste intelectual, porque a característica da corrupção é justamente a de se esconder. Se hoje mais escândalos vem à tôna, por conta de inúmeros fatores sócio-políticos, midiáticos e institucionais, isso mostra o enfraquecimento da corrupção, não o contrário.
O despacho de Moro é obra-prima do fascismo penal que, aparentemente, instalou-se no país. É interessante notar ainda que o documento, publicado no dia 30 de setembro, último dia útil antes das eleições do dia 2 de outubro, contém inúmeros ataques a Lula e ao Partido dos Trabalhadores. É quase um panfleto eleitoral.
As insinuações contra Lula se baseiam numa outra mistificação da Lava Jato. É importante analisar bem o documento porque ele traz o roteiro da prisão de Lula. Até mesmo a defesa algo emocional, cheia de adjetivos, da prisão cautelar, é como que uma justificativa da próxima e previsível violência contra o ex-presidente.
Outro trecho do despacho de Moro (sequência do trecho citado anteriormente):
Embora a prisão cautelar seja um remédio amargo, é melhor do que a contaminação da democracia pela corrupção sistêmica. Em um determinado nível, a corrupção coloca em risco a própria qualidade de democracia, com afetação das eleições livres e do regular funcionamento das instituições. Trata-se de um retrato de uma democracia vendida. É nesse contexto que deve ser compreendido o emprego, na forma da lei e ainda pontual, das prisões preventivas na assim denominada Operação Lavajato.
Sergio Moro chama a prisão cautelar de “remédio amargo”. A mente doentia de um juiz fascista acena, muito de longe, e com profundo desprezo, para aqueles que defendem as liberdades. A prisão cautelar, no entanto, não é um remédio nem doce nem amargo. É uma violência do Estado contra a liberdade individual, a pior de todas. É justificável, e isso está na Constituição, quando há perigo à ordem pública, e não quando, segundo a cabeça de um juiz tomado de ódio político, há “contaminação da democracia pela corrupção sistêmica”, ou temos o “retrato de uma democracia vendida”. Vou me repetir. Se a corrupção é sistêmica, então ela necessariamente também contaminou o judiciário, logo é absolutamente incoerente dar poderes arbitrários, “excepcionais”, a uma instituição que pode dar ou tirar a liberdade de uma nação democrática com 206 milhões de indivíduos cujo maior patrimônio, mais do que a própria vida, é a sua liberdade. A corrupção “sistêmica” não age apenas com dinheiro. Corrompe-se também com prêmios, com elogios. Quanto vale, por exemplo, um prêmio da Globo? Se um juiz pode receber agora remuneração por palestras, e não precisa mais sequer informar seu valor, é evidente que um prêmio da Globo vale muito mais que qualquer propina. Quanto vale um prêmio da Times?
No despacho, Moro cita Piercamilo Davigo, hoje na Corte de Cassação da Itália e presidente da Associação Nacional de Juízes daquele país. Davigo, considerado o “cérebro jurídico” da Operação Mãos Limpas, é autor de célebres frases não exatamente democráticas, como “não existem inocentes; existem apenas culpados não descobertos”, que ele confirma ter dito em entrevista recente ao Corriere de la Sera. Como Moro, é um juiz midiático, um militante do senso comum que vive pelos jornais afirmando coisas como “os políticos continuam a roubar, mas não se envergonham mais”, uma generalização idiota que, obviamente, beneficia candidatos que posam de “não-políticos”.
O despacho contra Palocci é, em verdade, uma prévia dos novos ataques da Lava Jato a Lula, como se vê na insistente relação que ele faz com a suposta compra de um terreno para o Instituto Lula. O nome Lula aparece 25 vezes no despacho, e o do Institulo Lula, 13 vezes.
O item 117 do despacho afirma que, “em cognição sumária, há prova de que o Grupo Odebrecht teria adquirido, com utilização de interposta pessoa, imóvel para implementação do Instituto Lula”, o que, em linguagem jurídica, significa que Moro considera que, embora ainda não tenha “provas cabais”, já formou uma “convicção” sobre a culpabilidade de Lula. Cognição sumária é um desses termos chiques do direito com significados nebulosos: oficialmente, quer dizer que o juiz não tem provas de nada, mas suspeita de alguma coisa.
Tautologia quer dizer redundância, como dizer, por exemplo, que o sal é salgado. É uma técnica, no entanto, muito usada na guerra política e judicial. Quando prenderam um assessor do irmão do Genoíno com dinheiro na cueca, por exemplo (até hoje, não me sai da cabeça que foi uma armação), José Genoíno teve que renunciar à presidência do PT, mesmo que não houvesse nenhum vínculo entre ele e aquele assessor e, conforme, se investigou, sequer entre o assessor e o próprio irmão de Genoíno, que já era deputado. O sujeito era um roceiro que tentou passar pelos detectores da Polícia Federal, num dos aeroportos de São Paulo, com a cueca abarrotada de dinheiro. Uma corrupção porca, grosseira, mas obviamente ingênua, perto dos esquemas de evasão de divisas, sonegação e lavagem internacional de dinheiro que caracterizam a nossa elite. Serviu, no entanto, para a então oposição ao PT criar uma tautologia jurídica e política que é até hoje bem sucedida: prenderam um petista com dinheiro na cueca, então todo petista é corrupto.
Esse despacho é uma tautologia só. Descobriu-se corrupção na Petrobrás e na Odebrecht?
Então todo negócio da empreiteira, toda reunião de seus executivos com pessoas de governo são automaticamente reuniões para tratar de propinas e esquemas. É como se a Odebrecht não fosse uma indústria de engenharia com enorme reconhecimento internacional, responsável até pela construção de parte do aeroporto de Miami, depois de desbancar as melhores empresas americanas numa das licitações mais concorridas e severas do planeta.
Outro ponto de interesse é o uso das delações de João Santana e sua esposa, de que o dinheiro pago pela Odebrecht em suas contas no exterior, teria servido para financiar campanhas do PT. Não acredito nessa delação, feita notoriamente sob tortura, porque a afirmação inicial de Santana era bem mais lógica: de que esse dinheiro era para pagar suas campanhas em outros países.
Entretanto, por amor ao debate, mesmo que se admitam todos os crimes de caixa 2 e corrupção citados no despacho, mesmo assim chama a atenção o esforço de Sergio Moro para lhes dar uma dimensão política e, em especial, ligá-los a Lula, sem que haja qualquer prova disso. Aí está a Grande Tautologia da Lava Jato, repetindo a fórmula bem sucedida do mensalão.
Ninguém nega a corrupção entranhada no Estado brasileiro, assim como não se nega a corrupção entranhada em qualquer Estado, no mundo todo. É como diz o ditado, quanto mais enxadada, mais minhoca. Se as instituições resolvem investigar o Estado a fundo, e não encontram limites, quebrando todos os sigilos imagináveis de empresas e indivíduos, prendendo a torto e a direito, claro que vão achar corrupção.
Mas aí vem o problema principal de uma justiça partidária: usar esse conjunto monstruoso de dados, obtido por meio de uma violência inaudita contra sigilos de conteúdo sensível, estratégico, para produzir uma interpretação profundamente moralista e midiática de qualquer reunião de executivos, ou mesmo de anotações de doação financeira a partidos, que sempre foi legal e permitida no Brasil, e criar uma narrativa escalafobética e megalomaníaca sobre uma grande “organização criminosa” operando no país em benefício de um grupo político. E tudo feito com vistas a pegar Lula, como se ele tivesse um poder absoluto sobre tudo que se passava no país.
É tudo uma grande mistificação, empurrada goela abaixo da população através de uma manipulação das notícias de fazer inveja a Coreia do Norte.
No despacho, Moro menciona reuniões de executivos da Odebrecht com o “italiano”, supostamente Palocci, para se obter crédito junto ao BNDES, desconhecendo que o banco tem uma das burocracias mais competentes e técnicas, toda concursada, do Estado brasileiro, e que qualquer financiamento tem de passar antes por uma ampla hierarquia de departamentos de análise. Por que o BNDES pode ser corrupto e o Judiciário não?
Até mesmo Dilma é envolvida no despacho, na página 13, através da divulgação de uma informação obviamente sensível de Marcelo Odebrecht, dessas pelas quais uma concorrente pagaria milhões de reais, mas que a Lava Jato divulga ao mundo com volúpia:
Repare que a referência de Marcelo à Dilma mostra uma presidenta preocupada em reduzir custos para o Estado e ampliar a concorrência no setor petroleiro.
A inserção dela no despacho cumpre, naturalmente, um objetivo político importante para Sergio Moro. Ele quer enlamear também a presidenta, de algum jeito, o que fortalece a narrativa maniqueísta contra o PT.
O Brasil oferece ao mundo um dos espetáculos mais tristes da história contemporânea: como matar a democracia por dentro, através de uma cumplicidade criminosa entre mídia e sistema de justiça.