Precisamos falar sobre Lula
por Luis Felipe Miguel, no Facebook
Ninguém se iluda: passado o frenesi dos resultados do primeiro turno das eleições municipais, o cerco contra Lula retoma seu curso. A questão não é “se” ele será preso na Operação Lava Jato, mas “quando”. Afinal, sua culpa foi determinada desde sempre. É uma operação que não nasce para investigar se há culpa, mas para encontrar algo que justifique uma culpa definida de antemão. Imagino que, nesse momento, Sérgio Moro e o alto comando de sua Wehrmacht curitibana estejam discutindo se a vitória da direita no pleito de domingo significa que Lula já pode ser preso sem risco de comoção popular ou se esse tipo de interpretação é só o discurso oficial a ser veiculado na mídia.
O antilulismo da direita tem razões claras. Lula é o mau exemplo, Lula é o operário que não soube seu lugar. Lula liderou o movimento que fez a classe trabalhadora ganhar protagonismo na política brasileira, a partir do final da ditadura militar. E Lula conduziu um governo que, com todos os seus problemas, contribuiu para reduzir a vulnerabilidade de milhões de brasileiros e para desafiar hierarquias centenárias. Embora sempre se lembre que a burguesia lucrou muito nos governos petistas, o antilulismo das elites brasileiras é perfeitamente razoável: para elas, manter a vulnerabilidade extrema da maioria dua população e proteger as hierarquias sociais faz muito sentido.
Mais difícil é entender o antilulismo de parte da esquerda. Sim, Lula optou por um pragmatismo político exacerbado e apostou na conciliação de classes. Os governos petistas foram covardes no enfrentamento de muitos privilégios e, quando atacados, só conseguiam reagir fazendo mais concessões. Lula se tornou bem mais amigo de empreiteiros e outros capitalistas do que seria razoável. Há muito o que criticar em sua trajetória.
Mas a esquerda antilulista age não como quem analisa erros políticos e desvios de caminho, mas como quem sofreu uma desilusão amorosa. O maior pecado de Lula é não ter sido aquilo que projetavam nele. E é essa vingança, que se traveste de radicalidade política mas nasce do coração partido, que faz com que o cerco a Lula, a destruição de seu legado e de sua imagem, sejam vistos por alguns com alegria aberta ou disfarçada.
É um sério equívoco, eu creio. Com todos seus erros, Lula é uma liderança popular invulgar – e o que se quer destruir é essa liderança, não os erros. Lula buscou um caminho, que foi conciliatório, tortuoso e limitado, mas era um caminho para retirar da miséria e ampliar os horizontes dos brasileiros mais desprivilegiados. Pouco, talvez, para quem sonha com o fim da exploração e da alienação. Mas o caboclo do interior do Brasil que não tinha energia elétrica e viu chegar o Luz para Todos, aquele outro que botou comida na mesa com o Bolsa Família, o trabalhador na base da pirâmide que ganhou com o aumento real do salário mínimo, o menino pobre que chegou na universidade, será que trocariam esses ganhos, ainda que insuficientes, por um punhado de teses sem ressonância no mundo social, brandidas de intelectuais da extrema-esquerda?
Vamos criticar a experiência petista? Vamos. Ela acomodou, ela cedeu, ela não foi tão firme quanto devia na defesa da classe trabalhadora, dos direitos das mulheres, da cidadania de gays, lésbicas e travestis. Compactuou com a corrupção, contribuiu para a sobrevida de elites políticas carcomidas, em vários momentos deixou de avançar quando podia, por culpa de sua incontrolável pulsão pela conciliação. Acreditou na sua própria fantasia de transcendência do conflito social. Terminou por enfraquecer as forças populares, ao promover sua desmobilização como forma de mostrar aos grupos dominantes que permaneceria dentro dos estreitos limites pactuados. Mas vamos também reconhecer os ganhos que foram alcançados e, sobretudo, a tentativa real de dar uns passos para a frente, poucos que fossem, mas para a frente – nas condições adversas de um país atrasado como o Brasil.
E vamos reconhecer em Lula o que ele é: com seus limites, com suas contradições, com seus vacilos, com o diabo a quatro, ele é a maior liderança popular da história deste país. Alguém que, por mais críticas e discordâncias que possamos ter, está do lado de cá, não do lado de lá. Não se trata de endeusar Lula, nem torná-lo imune a críticas, mas de compreender quem ele é e o que ele simboliza. Por isso, defender Lula contra a perseguição criminosa que ele sofre, protestar contra a arbitrariedade de que ele é alvo, contribuir para, sim, incendiar o país quando ele for preso – esses são compromissos de qualquer pessoa que se queira de esquerda, progressista ou democrata no Brasil.
Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política na UnB