(Foto: Drew Buckley/REX/Shutterstock)
Arpeggio – coluna do editor
Por Miguel do Rosário
Parodiando Tolstoi, digamos que as eleições felizes, vitoriosas, são todas iguais; as infelizes o são cada uma a sua maneira.
A brutal diminuição do PT, em número de prefeituras, quantidade de eleitores e orçamento administrado, tem provavelmente as seguintes causas:
- As mesmas que produziram essa imensa rejeição emocional ao partido, provocada pelo golpe. Observe-se, no entanto, que PP e PMDB, com um número bem maior de parlamentares envolvidos na operação Lava Jato, passaram ilesos pelo crivo eleitoral. O PMDB ampliou o número de prefeituras de 1.017 em 2012 para 1.043 em 2016. O PP passou de 473 para 499. A única vítima foi o PT. Isso foi possível pelas mesmas razões que levaram ao golpe. Mais um forte indício de que a Lava Jato foi conduzida com objetivo específico de derrotar o PT.
- Construção de uma narrativa massacrante, disseminada por todos os meios de comunicação de massa, além de vocalizada por lideranças conservadoras nos partidos e nas instituições (como Gilmar Mendes) de que o PT era uma “organização criminosa”. A prisão de dois ministros da cúpula petista, às vésperas do pleito, sob acusações absolutamente vazias, mostrou-se uma estratégia ardilosamente montada para prejudicar eleitoralmente o partido.
- As críticas à Lava Jato batem no gigantesco muro de blindagem criado pela grande mídia e não chegam à população. A mídia descreve as críticas como vindas apenas de “petistas”, sonegando acintosamente que os setores sociais mais diversos, da intelectualidade, do mundo do direito, da academia, das ciências, juízes, procuradores, tem criticado radicalmente os métodos e os objetivos da operação.
- Fracasso absoluto do PT de responder aos ataques da mídia. Até hoje, depois de mais de dez anos de conspirações midiático-judiciais, o PT não tem um site centralizando respostas às denúncias, com um viés ao mesmo tempo jurídico e político. Mesmo no poder, o partido jamais organizou debates com juristas críticos à instrumentalização da justiça por interesses partidários. Ao contrário, o governo Dilma elogiava a Lava Jato constantemente, apenas com críticas pontuais. No escândalo do mensalão, personalidades do partido, como Genoíno, Dirceu e Pizzolato foram abandonados pela legenda, mesmo havendo abundantes provas de que estavam sendo condenados injustamente.
- O governo Dilma desconstruiu a sua própria imagem, ao tratar a comunicação com um desprezo e uma arrogância inacreditáveis. Depois de recuperar sua aprovação de maneira admirável no segundo turno das eleições de 2014, Dilma resolveu jogar todo o capital político adquirido no lixo, nomeando Levy para a Fazenda, sumindo da mídia, escolhendo o nome de Katia Abreu como sendo a primeira ministra a ser anunciada no novo governo, montando um ministério sem nomes com prestígio social. Não haveria problema em nomear Katia Abreu para a pasta de Agricultura, e sim em seu nome ser o primeiro anunciado. Dilma deveria anunciar nomes de prestígio na opinião pública, e deixar a Katia Abreu para o final. Comunicação não é propaganda e sim relação com o público. Dilma encerrou o único contato que tinha diretamente com a sociedade, o Café com a Presidenta, distribuído para milhares de rádios em todo país. Não o substituiu por nada. Não divulgava vídeos, porque, segundo um assessor, “não gostava de vídeos”. Sua equipe de comunicação era de uma incompetência atroz, expondo a presidenta a todo o tipo de constrangimento nas raras vezes quando aparecia em público, como o discurso da mandioca, de óbvias conotações sexuais.
- O PT investiu milhões de reais numa agência norte-americana que, na primeira crise, fez as malas e voltou aos Estados Unidos. Durante anos foi o partido que mais recebia fundo partidário e literalmente jogou toda essa verba no lixo, sem se preocupar em construir nada duradouro. O partido não tem estruturas de comunicação independentes, sustentáveis, em nenhuma parte do país. Apoiou-se nos blogs com um egoísmo incrível, porque ao mesmo tempo em que admitia que eram eles que poderiam fazer o contraponto com a grande mídia, suas prefeituras, governos estaduais e, sobretudo, a presidência da república, despejavam bilhões de reais no cartel liderado pela Globo. E quando começou, quase de má vontade, e já ao final do governo Dilma, em função dos blogs terem alcançado enormes índices de audiência, a anunciar em alguns blogs, o fez sem nenhuma inteligência, sem fazer uma defesa política da necessidade do poder público de não colaborar com a concentração dos meios de comunicação e investir na pluralidade da informação. PT, sindicatos e centrais controlados pelo partido, parlamentares, executivos, jamais organizaram seminários, encontros ou congressos para discutir o problema da comunicação no país. Os governos Lula e Dilma jamais entenderam a importância, por exemplo, de construir uma comunicação internacional, como possuem tantos países, para que a narrativa sobre nossos problemas não ficasse sob o controle do monopólio privado.
- A escolha de ministros de tribunais superiores, assim como o debate sobre novas leis penais, não foram discutidos com juristas do campo progressista, alguns inclusive filiados ao partido. Tudo foi tocado às pressas, sem cuidado nenhum com as consequências de longo prazo em termos ministros do STF ou procuradores gerais não alinhados aos objetivos estratégicos do partido.
- Despreparados, desarticulados, mudos, surdos, sem oferecer resistência ou combate, foram destroçados pelas conspirações midiáticas. Hoje são acusados de montarem um “esquema” para permanecer no poder mesmo tendo escolhido procuradores-gerais, ministros do STF e do STJ, sem o mínimo de compromisso com o projeto do próprio partido. Até hoje Lula repete que escolhia, para a vaga de procurador-geral da república, o primeiro nome votado na corporação porque era assim no “sindicato”, transferindo uma prerrogativa que pertencia ao povo brasileiro, através de seu representante máximo, o próprio presidente, para um punhado de burocratas pertencentes a uma verdadeira casta.
- Não se ofereceu uma “ponte para o futuro” (essa ausência de projeto, que acusávamos desde 2010, foi suprida então pelo PMDB, mas com um projeto antes voltado ao retrocesso) ao povo brasileiro, condição essencial para que ele entendesse para onde estaria indo. O governo nunca se deu ao trabalho de oferecer à sociedade estudos e projetos de como seria o Brasil no futuro, caso permanecesse na trilha de um desenvolvimento sustentável do ponto-de-vista social e ambiental.
- Não houve nenhuma preocupação em financiar uma cultura voltada à transformação da sociedade. A Ancine passou a patrocinar, com dezenas de milhões de reais de dinheiro público, filmes profundamente despolitizantes, que detonavam a política e o próprio governo. Não se financiou a construção de salas de cinema nas periferias e cidades menores, de maneira a proporcionar mais sustentabilidade e autonomia à produção audiovisual. Sobretudo, não se pensou em libertar a cultura da prisão da mídia concentrada, através de programas que permitissem às obras serem publicizadas em meios alternativos.
- A nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda foi o último erro trágico de Dilma. Pensando em agradar aos mercados, não ouviu a voz do bom senso, da obviedade, de que a política de austeridade defendida por Levy geraria mais crise, mais queda de arrecadação e, portanto, mais problemas fiscais, tudo isso somado à perda de base social em função exatamente da austeridade. Dilma defendeu mais austeridade do que setores do centro, como Renan Calheiros, que chegou a reclamar, por diversas vezes, que a presidenta não enviava uma “pauta boa” para ser discutida no Senado. Ou seja, Dilma colaborou com a mídia para transformar a política numa narrativa de pesadelo, e tudo isso por acreditar na mídia.
- O PT, por sua vez, abandonou completamente a política. No Rio de Janeiro, o blog da legenda saiu do ar, não havia organização de debates, encontros, nada. O partido nacional apenas se encontrava em eventos fechados, em hoteis de luxo, onde torrava o fundo partidário com festas inúteis, esquizofrênicas, comemorações sem sentido enquanto seus dirigentes continuavam a ser vítimas de todo o tipo de conspiração judicial e o governo afundava em crises mais e mais profundas. Ao invés de fazer eventos simples, sóbrios, voltados a um debate crítico, abrindo o partido à sociedade, democratizando e aprimorando o processo de eleições internas, o partido optou por aquilo que mais podia prejudicar sua imagem: festas artificiais, esvaziadas de conteúdo propositivo, excessivamente partidárias e autocentradas, sem a mínima preocupação de como tudo aquilo seria comunicado à opinião pública.
- Essas são avaliações do passado recente, dos últimos dois anos. Mesmo com o golpe, o partido não apresentou nenhuma ideia nova, nenhuma proposição objetiva de como montar uma resistência nacional e internacional ao avanço do fascismo, do autoritarismo.
- Vejam o caso de Haddad. Em quatro anos de governo, Haddad não montou uma estratégia de comunicação criativa, para responder aos ataques da mídia, defender os seus projetos e oferecer uma contra-narrativa. Tudo que levou adiante foi destruído pela narrativa da imprensa. Lembro-me de que Haddad participou de um encontro de blogueiros em São Paulo, onde fez um discurso fantástico, moderno, arrojado, mas não se preocupou em gravar e mostrar isso ao mundo. Haddad tinha que ter montado projetos de comunicação em todas as línguas, fazendo jus ao extraordinário cosmopolitismo de São Paulo. Com isso, seria defendido no mundo inteiro e poderia mudar o destino das eleições na cidade e no Brasil. Seus assessores de comunicação eram oriundos da grande imprensa e não se construiu nenhuma estratégia ousada para financiar, em larga escala, na escala que um município como São Paulo, a maior cidade da América Latina, merece, projetos independentes e progressistas de jornalismo. Imagine se toda a periferia de São Paulo tivesse recebido, de maneira ágil, transparente, desburocratizada, financiamentos para montar rádios, jornais, portais de notícias, documentários? Evidentemente, seria criado uma massa crítica em defesa do prefeito muito maior, e ele poderia se reeleger.
O título do post é inspirado numa reportagem científica, publicada numa revista especializada, a New Scientist. A matéria, intitulada “Galáxia Kamikaze explode após mergulhar na Via Láctea”, conta uma história muito interessante, que imediatamente eu percebi ser uma metáfora perfeita para alguma coisa.
O texto é delicioso, e começa assim: “Não mexa com a Via Láctea. Uma pequena galáxia da constelação de Hercules aprendeu isso da pior maneira, depois de mergulhar em nossa galáxia e ser despedaçada por sua força gravitacional.”
A metáfora, penso eu, vale para o PT. Ele se aproximou demais da Via Lactea, desse poder monstruoso, brutal, egoísta, que governa e explora o Brasil há séculos, e reúne dezenas de poderosas galáxias, que são o judiciário, o poder financeiro, a mídia, os interesses imperialistas, todas elas cheias de buracos negros e estrelas perigosas. O PT foi orbitando ao redor dessa Via Lactea até literalmente explodir, da mesma forma que a galáxia anã da constelação de Hercules.
O PT jamais poderia se aproximar, sozinho, isolado, desta Via Lactea, antes de se unir a outras tantas galáxias, de forma a criar o seu próprio campo gravitacional, um campo forte o suficiente para não explodir ao contato dela.
Tinha que ter se unido, de maneira democrática, sem impor nada, a outras pequenas galáxias, de tipo progressista, mesmo que minoritárias, pequenas, do judiciário, do ministério público, da polícia federal, do empresariado, do campo social, da mídia alternativa. Tinha que ter brigado para fortalecer essas galáxias todas, para que, no momento que precisasse se aproximar das grandes galáxias adversárias, não perdesse a sua identidade, não explodisse politicamente.
A galáxia anã que explodiu ao contato da Via Lactea gira, há alguns bilhões de anos, na órbita daquela que a destruiu, e, a cada volta que dá, vai se esfacelando um pouco mais. Até que será finalmente extinta.
Espero que o PT não permaneça nesse mesmo estado tanto tempo. Mas precisará sair do pedestal – hoje ridículo – de sua autossuficiência e discutir abertamente, com a sociedade, o seu futuro.