Charge: Que Mario?
A desconstrução do Estado de direito não começou com a “Lava Jato”
por Daniel Serra Azul, no Justificando
Recente decisão da Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região[1] tem causado celeuma entre os que se ocupam de estudar, ensinar e realizar o direito. Trata-se da decisão que manteve o arquivamento de representação oferecida contra juiz que tem se notabilizado por sua atuação polêmica no conjunto de casos criminais reunidos e apresentados ao público sob a denominação “Operação Lava Jato”.
Segundo a representação, o juiz teria violado a Lei nº 9.296/96 – que, regulamentando o art. 5º, XII, da Constituição da República, disciplina a interceptação telefônica –, pois manteve nos autos de determinada investigação o conteúdo de gravação telefônica sem relação com os fatos investigados, conteúdo este obtido sem autorização judicial, além de ter violado o sigilo legal e permitido sua ampla divulgação, em rede nacional.
Anteriormente, chamado a prestar esclarecimentos ao Supremo Tribunal Federal no âmbito da Reclamação nº 23.457, o juiz em questão – que admitiu ter dado publicidade ao conteúdo do diálogo ilicitamente interceptado entre a então presidenta da República e seu antecessor – afirmou que compreendia que seu “entendimento” poderia ser “considerado incorreto” ou gerar “polêmicas e constrangimentos desnecessários”, razão pela qual pediu “respeitosas escusas” ao Supremo Tribunal Federal.
Esta inédita postura do magistrado, que violou a lei em nome da lei e, chamado à responsabilização por seu ato, limitou-se a pedir desculpas, somou-se à também inédita omissão do STF diante de situação tão grave, omissão esta que acabou servindo de fundamento para a também inédita decisão do TRF-4 no sentido de que situações supostamente inéditas demandam soluções inéditas, mesmo que elas sejam ilegais.
Ao apreciar a referida Reclamação nº 23.457, o Ministro Relator Teori Zavascki afirmou:
“Não há como conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal. Contra essa ordenação expressa, que – repita-se, tem fundamento de validade constitucional – é descabida a invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoas públicas dos interlocutores atingidos, como se essas autoridades, ou seus interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua intimidade e privacidade”.
Apesar disso, não se adotou qualquer providência em relação ao juiz, o que levou a Corte Especial do TRF-4 a afirmar que o STF não viu, no caso, qualquer crime ou infração administrativa, “caso contrário teria determinado o encaminhamento de peças ao Ministério Público (CPP, art. 40) e/ou aos órgãos correicionais competentes (CNJ, CJF, TRF da 4ª Região)”.
Tudo isso é, no mínimo, preocupante. Muito mais preocupante, no entanto, é a afirmação de que as condutas do juiz caracterizaram medidas de exceção e, exatamente por isso, não são contrastáveis com o direito ou, em outras palavras, não estão sujeitas à lei. O conjunto de casos denominado “Operação Lava Jato” apresentaria “problemas inéditos”, para os quais seriam necessárias “soluções inéditas”. Sendo ainda mais explícito, o tribunal chegou a afirmar que “a norma jurídica incide no plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais”.
Seguiu-se a isso uma citação indireta de Agamben, puramente descritiva, sobre o conceito de exceção, com a pretensão de que a descrição servisse para justificar o rompimento com o Estado de direito.
Este julgamento é importante porque explicitou algo que já vinha se revelando de modo menos claro, que é a ruína do Estado de direito e do próprio direito, que, aos poucos, vai dando lugar à força bruta.
Sejam prisões ilegais usadas como método para a obtenção de delações que justifiquem novas prisões ilegais, para a obtenção de novas delações, denúncias oferecidas e recebidas com base em meras ilações mentais ou prisões executadas de maneira desumana e, em seguida, revogadas por não serem necessárias e, portanto, legais, entre muitas outras práticas arbitrárias que vêm se tornando cada vez mais corriqueiras, antes desta afirmação categórica do TRF-4, a natureza excepcional ou, caso se prefira, inédita de certas atuações poderia não ser muito clara para alguns.
Mesmo agora, parece que os fatos ainda não causaram grande comoção no âmbito do sistema de justiça. Muitos parecem padecer de uma cegueira inconsciente, seletiva e conveniente. No entanto, é cada vez maior o número de operadores do direito preocupados e atentos ao que parece ser mesmo uma ruína de nosso objeto de trabalho. É como se estivéssemos bem perto de poder admitir que nosso trabalho é apenas uma encenação que faz o jogo de forças na sociedade parecer mais legítimo e justo.
A falta de senso humanitário e de respeito à lei e à Constituição, o messianismo infantil e a espetacularização do drama alheio já foram longe demais. Estamos assistindo à desconstrução do Estado Democrático de Direito da Constituição de 88, desconstrução esta que não começou com a espalhafatosa “Operação Lava Jato”, já vinha sendo promovida paulatinamente, à custa da dignidade da parcela excluída, espoliada e oprimida da sociedade, por setores do Judiciário – guardião da Constituição – e do Ministério Público – única instituição da República com a atribuição de defender o regime democrático.
É estarrecedor testemunhar este movimento autoritário, especialmente entre as gerações mais jovens, que, em algum lugar do caminho, parecem ter perdido a dimensão histórica das relevantes funções que assumiram ao ingressarem nas instituições do sistema de justiça.
Precisamos tentar entender como chegamos a este ponto, em que o Estado de Direito se dissolve nas mãos de agentes que, sem muito interesse por uma compreensão mais profunda da realidade sobre a qual sua atuação incide, muitas vezes manejam relevantes competências públicas movidos por medo, preconceito, intolerância e até mesmo ódio.
Sempre parti do pressuposto de que o direito é mais que um mero discurso ideológico de legitimação de relações de poder. Talvez isto seja uma medida de sobrevivência no meio jurídico, talvez eu pensasse diferente se desenvolvesse minhas atividades teóricas e práticas em outro campo. O que importa é que estou partindo do pressuposto de que é possível levar o direito a sério, que é possível o exercício de uma jurisdição democrática, empática e ética, que o direito pode ser empregado como instrumento de construção da paz e não só como arma para a destruição de inimigos, reais ou imaginários.
Se realmente isto for possível, é fundamental que o operador do direito compreenda minimamente os variados aspectos (históricos, sociológicos, políticos etc.) da complexa realidade sobre a qual sua atuação incide, o que é quase impossível dentro da formação limitada, de perspectiva idealista, positivista e cartesiana, proporcionada pelo discurso autorreferenciado da dogmática jurídica, que ocupa a quase totalidade das grades disciplinares das faculdades de direito, discurso este que é reproduzido a partir de um método lógico-formal esterilizante, produtor da mais alta expressão do “especialista sem espírito” de Weber.
Com base em tal contradição do ensino jurídico e do modelo vigente para os concursos de ingresso às carreiras jurídicas em geral, um mercado cada vez mais rentável é alimentado pelo sonho daqueles que querem integrar tais carreiras (Ministério Público, Defensoria Pública, Magistratura etc.), com as mais variadas motivações.
O estudante de direito, aliás, é pressionado desde os primeiros momentos do curso de graduação a se preparar para provas (exame da OAB, ENADE e concursos). É isto que tem pautado a maior parte dos cursos de graduação e não a preparação de agentes capazes da avaliação crítica necessária à ação consequente destinada à implementação do projeto de nação contido na Constituição de 88, arduamente conquistada após os anos de chumbo.
Ocorre que a prática do direito exige mais que a mera capacidade de memorização de leis e de suas interpretações sistematizadas.
O vácuo deixado por este processo de formação do profissional do direito muitas vezes é preenchido com preconceitos gerados por medo, ansiedade, ódio e outras ferramentas disponíveis na caixa de afetos de cada um.
Não foi à toa que, para reforçar a imagem cândida e heroica da “Operação Lava Jato” como uma grande força-tarefa incumbida de enfrentar, de uma vez por todas, o problema da corrupção no Brasil, um dos agentes nela envolvidos, em debate ocorrido na Câmara dos Deputados em junho deste ano, comparou a corrupção a um “‘serial killer’ que se disfarça de buraco de estradas, de falta de medicamentos, de crimes de rua e de pobreza”.
O recurso ao medo para justificar a arbitrariedade é prática secular. O uso de argumentos ad terrorem para justificar o que não é justificável no plano do discurso racional não é novidade.
No caso deste exemplo, ainda foi necessária esta artimanha retórica para transformar a corrupção – problema multicausal e complexo, muito mais ligado a contradições dos sistemas político e socioeconômico que a questões de moralidade – em um monstro assassino assustador.
No dia a dia da justiça criminal, no entanto, esta ginástica retórica é desnecessária, pois ao seu alvo quase exclusivo, a população excluída e marginalizada das periferias de nossas cidades, já foi há muito tempo atribuído este papel do vilão, do monstro insensível e perigoso, contra o qual se deve ser também insensível e agressivo.
São estes, aliás, que sentirão de maneira mais dura este recrudescimento que desconhece o Estado de direito e as noções mais comezinhas que dão sentido ao próprio conceito de direito, diferenciando-o das meras relações de força.
Na avaliação realista do saudoso Eduardo Galeano:
A lei é como uma teia de aranha, feita para aprisionar moscas e outros insetos pequeninos e não os bichos grandes, como concluiu Daniel Drew. E já faz um século que José Hernández, o poeta, comparou a lei com uma faca, que jamais fere quem a maneja. Os discursos oficiais, no entanto, invocam a lei como se ela valesse para todos e não só para os infelizes que não conseguem evitá-la. Os delinquentes pobres são os vilões do filme: os delinquentes ricos escrevem o roteiro e dirigem os atores.
Infelizmente, não é nenhum exagero e, além de não avançarmos em direção ao Estado de direito, temos regredido.
Para que o direito tenha um papel mais digno na vida social e o trabalho dos operadores do direito não perca o sentido, está posta a tarefa de refletir e agir, dentro e fora das estruturas judiciais, para que ele mereça ser levado a sério.
Daniel Serra Azul Guimarães é promotor de justiça no Estado de São Paulo, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.