(Charge: Miguel)
Por Pedro Breier, correspondente policial do Cafezinho
O desembargador Ivan Sartori, relator do processo que anulou as condenações dos policiais responsáveis pelo massacre do Carandiru, manteve, em decisão de julho deste ano, a pena de prisão de um homem acusado de furtar cinco salames de um supermercado em Poá, na grande São Paulo. Trecho da matéria do Estadão:
Segundo a denúncia do Ministério Público, o homem escondeu os salames debaixo da blusa, na altura da cintura. Um segurança do mercado percebeu e o deteve na rua. Levado à delegacia, ele confessou o crime e disse “que estava desempregado e, como estava com muita fome, acabou furtando a mercadoria”.
A Defensoria Pública pediu a absolvição do acusado, considerando o bem furtado, os motivos que levaram o rapaz a praticar o crime e também o fato de ele ter confessado o delito. Em seu voto, Sartori negou os argumentos da defesa e disse que o acusado, que tem passagens anteriores pelo mesmo crime, é “um infrator contumaz, que faz do crime meio de vida”. Afirmou também que “reconhecer sua incidência em larga escala seria o mesmo que incentivar a prática de pequenos furtos, com o escudo do Judiciário, o que não pode ser tolerado”.
Por fim, Sartori decidiu manter a pena de 6 meses de reclusão e o pagamento de multa. Ele completa o voto afirmando que Affonso “demonstrou desenvoltura na execução do delito” e que sua personalidade é “distorcida”, colocando em “risco a incolumidade pública”. “Particularidade a determinar a que seja ele segregado do meio social.”
Quem tem a ‘personalidade distorcida’, um homem que furta salames porque está desempregado e com fome ou um desembargador que o condena a prisão e meses mais tarde afirma que o massacre de 111 presos por policiais não foi um massacre, mas ‘uma contenção necessária à imposição da ordem e da disciplina’?
A 4ª Câmara Criminal do TJ-SP, da qual Sartori faz parte, é conhecida pelo rigor com réus comuns.
A diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Eleonora Rangel Nacif, criticou a decisão sobre o Carandiru:
“O caso que é uma das maiores violações de direitos humanos do Brasil recebeu tratamento benevolente com os acusados desse crime bárbaro”, disse. “A posição diverge de condenações altíssimas impostas recorrentemente a pequenos traficantes, por exemplo, e outros crimes pequenos. A Câmara é reconhecida por ser dura e raramente soltar réus.” Para Eleonora, a decisão sobre o Carandiru mostra que os magistrados têm uma “visão política alinhada com a repressão violenta das polícias”.
A visão política alinhada com a repressão violenta das polícias é a da direita.
A polícia, para a direita, serve para manter a ordem e garantir a propriedade privada. Os demais direitos dos cidadãos que se explodam.
Para que a repressão policial não revolte a população, os meios de comunicação, controlados pela direita, usam a velha tática de criar um inimigo imaginário (o Outro) diariamente, para desviar o foco dos reais problemas e soluções que poderiam transformar a sociedade.
Para a mídia conservadora e o sistema de justiça, o inimigo é o ladrão de salames e o traficante da favela – não o traficante que usa um helicóptero para transportar cocaína, logicamente.
O inimigo é sempre o negro e o pobre.
Encerro o post com um trecho de um texto do professor da UFRJ e pós-doutor pela Universidade de Coimbra, Geraldo Prado:
Para os que exercem poderes sem travas – como os Desembargadores da Câmara que chancelou o massacre de Carandiru – e para tantos outros agentes públicos, políticos ou não, um ambiente predominantemente marcado pelo ódio ao Outro configura o terreno ideal para decidir por capricho, muitas vezes no extremo da argumentação com base em uma razão cínica. Não há paradoxo em ser um órgão jurisdicional de destruição do Outro, por meio de condenações que ignoram na prática o direito de defesa, e anular/cassar/absolver responsáveis pelo extermínio em massa desse Outro. Há em realidade uma profunda e clara coerência.