Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.
Fotos: Chris Von Ameln
Antes do arquivo digital, quando ainda era possível situar o formato-álbum como uma plataforma mais ou menos comum, o álbum duplo já era considerado uma empreitada especial, uma demonstração de fôlego do artista. Embora se justificasse em alguns casos por razões técnicas, o álbum duplo atestava que este mesmo artista tinha o que dizer para além do formato comum. Qual seria então o sentido do álbum duplo na era digital, em que os arquivos podem ter tamanhos e durações praticamente ilimitadas? Na medida em que o formato-álbum foi pouco a pouco tornando-se mais ou menos fragmentário, as gerações mais recentes apostando mais na viralização e no single digital, quais seriam as justificativas para se investir na ideia de “álbum duplo”? — na semana passada, abordamos o álbum duplo de Cadu Tenório, Rimming Compilation.
A cantora e compositora paulistana Iara Rennó, que acaba de lançar o álbum duplo Arco & Flecha (ybmusic/ Selo Circus), elaborou uma justificativa convicente para o álbum que pretendia lançar a partir de uma campanha de crowdfunding: “percebi que eram duas linguagens diferentes, dois repertórios, dois discursos, duas vertentes. Que separados funcionariam melhor, teriam mais força, mas que no entanto, um potencializava o outro.” O álbum será lançado amanhã, terça-feira (27/09), no Teatro do Oi Futuro Ipanema/RJ.
Paulistana, filha dos compositores Carlos Rennó e Alzira Espíndola, Iara Rennó soma mais de 20 anos de carreira. Entre 1998 e 2001, integrou a banda de Itamar Assumpção. Com as cantoras Andreia Dias e Anelis Assumpção, formou o DonaZica, lançando dois álbuns: Composição (2003) e Filme Brasileiro (2005). Utilizando-se de fragmentos de Macunaíma, gravou um disco que é citado por muitos como uma das empreitadas mais fortes da década passada: Macunaíma Ópera Tupi, elaborado a partir de uma remodelação de ideias e personagens da experiência literária criada por Mário de Andrade, com participações de Tom Zé, Siba e Barbatuques, entre outros. O disco se transformou em um espetáculo montado pelo Teatro Oficina, “Macunaíma no Oficina – Ópera Baile”. Escritora, lançou Língua Brasa Carne Flor pela Editora Patuá em 2015 com poemas eróticos, alguns deles reaproveitados como letra de música para Arco & Flecha. Participou também de outros tantos projetos como A.B.R.A. Pré-Cá – amigos bandidos residentes no amor pré e carnaval, cantando marchinhas de carnaval com Rubinho Jacobina e Do Amor, além de participar dos álbuns da cantora Tulipa Ruiz (Efêmera, de 2010) e Gaby Amarantos (Treme, de 2012).
Arco & Flecha é de fato um disco “transgênero”: apresenta uma cantora experiente, mas que não se reduz a rótulos, atravessando correntes e vertentes da música brasileira contemporânea. Arco & Flecha foi construído a partir de uma concepção de “álbum duplo” adequada aos novos tempos, apresentando dois trabalhos com instrumentação e produção distintas, mas que, em conjunto, produzem dinâmicas de complementaridade. Arco foi inteiramente gravado por Iara (guitarra e voz) em companhia de Maria Beraldo Bastos (clarone) e Mariá Portugal (bateria e MPC), corresponde à face mais experimental e dançante do trabalho. Na composição, conta com parceiros e convidados como Paulo Leminski, Alice Ruiz, Gustavo Galo, Alzira E, fragmentos de textos de Eduardo Viveiros de Castro.
Produzido pelo baterista, compositor e cantor paulistano Curumin, Flecha é mais focado em uma interpretação límpida das composições de Gustavo Galo, Negro Leo, Domenico Lancellotti, Bruno di Lullo, entre outros. Na banda, integrantes do Bixiga 70 (Maurício Fleury, Cuca Ferreira, Daniel Gralha e Douglas Antunes), além de Lucas Martins, Gustavo Cabelo e Maurício Badé, além das participações de Ava Rocha e Mãeana (a cantora carioca Ana Cláudia Lomelino, integrante do Tono).
Prestes a realizar o show de lançamento de Arco & Flecha no Rio de Janeiro, Iara concedeu a entrevista abaixo ao Cafezinho abordando os meandros da produção do disco e falando um pouco sobre o momento político e cultural brasileiro.
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Conte um pouco do processo de produção de Arco & Flecha. Soube que Negro Leo e Ava Rocha foram seus “conselheiros”, que a princípio você não esperava fazer um álbum duplo…
Pois é, não foi premeditado! A gente (artistas como eu, Ava e Leo, por exemplo) é muito pilhado. Quando lança um disco já começa a comichão pra fazer o outro. E foi isso, na sequência do lançamento do Iara (disco de produção carioca) eu gravei um single de uma música do Leo, “Tara”. Ali já se desenhava outro disco, com a mesma banda, os grandes Ricardo Dias Gomes e Leo Monteiro. Seriam mais interpretações do que músicas minhas, uma escolha por proposta mesmo, não por falta de músicas, mas pra variar. Nesse mesmo ano, São Paulo começou a me chamar pra projetos, dentre eles uma releitura do Macunaíma, para a qual chamei Mariá Portugal e Maria Beraldo Bastos pra formar a banda. Esse show deu uma química forte! Pouco depois me mudei pra São Paulo, a gente começou a tocar mais e como a linguagem musical tava vibrante e original, logo veio essa coisa: temos que gravar! Até então eram dois discos engatilhados: um com a banda carioca e outro com a banda paulista.
Nisso eu sempre conversando com meus compadres (Ava Rocha e Negro Leo) e eles botando pilha: que eu tinha que gravar sim, mas que tinha que ser um repertório de inéditas, que eu tinha um monte de música e tal, e cantar outros compositores também. Porque chegou um momento em que eu fiquei meio perdida, porque tava fazendo shows de diferente projetos, banda carioca, banda paulista, muita opção. Sabia que precisava fazer o disco mas não conseguia decidir um caminho. Eles conheciam já as diferentes vertentes da minha composição e me estimulavam a explorá-las. Leo sabia que eu já tinha trabalhado com o Curumin (no show Macunaíma e no projeto ORIKI — ainda inédito, só de músicas para orixás) que tinha curtido muito. Então Ava e Leo sugeriram ele pra produção musical. Achei que era o caminho.
Eu já tinha aberto uma porta na YB (gravadora independente situada em SP) dizendo que ía gravar um disco com as meninas. Então fui montando um repertório, com a ajuda de Leo, Ava, Curumin e Gustavo Cabelo. Resolvi juntar todo mundo pra tirar um som. Foi depois deste encontro que percebi que eram duas linguagens diferentes, dois repertórios, dois discursos, duas vertentes. Que separados funcionariam melhor, teriam mais força, mas que no entanto, um potencializava o outro, e me mostrava de uma forma mais ampla pro público. E que isso seria muito natural e sincero: fruto do que já vinha acontecendo mesmo.
Como você descreveria a transição de seu último trabalho para esse? Me parece que agora você se dispôs a mediar um lado mais experimental com uma faceta pop, confere?
Eu não consigo pensar muito bem nessas categorias! Pelo menos até agora, tem sido mais orgânico. Acho que a transição foi exatamente esse fluxo que narrei na resposta anterior: mudança de cidade, multiplicidade de trabalhos, a química das pessoas tocando. Por exemplo com as meninas, o som puxava pra essa coisa que acho que é o que você está chamando de “experimental com uma faceta pop”, né? (risos) Nada mais era do que uma excitação em estar tocando, um fogo mesmo, um empoderamento natural. Com os meninos já tinha um lance das cantigas de tradição afro-brasileira que a maioria deles ali já é bem experimentado, e que a gente já sabia que daria essa liga. Com exceção do Cuca Ferreira (sopros), eu já tinha uma experiência musical com Curumin, Lucas Martins (baixo), Maurício Badé (percussão), Daniel Gralha (trompete) e Gustavo Cabelo (guitarra). Só o Cuca e o Maurício Fleury (synth e Rhodes) foram novos parceiros sonoros.
Seu trabalho com letra poesia parece particularmente destacado da própria composição. O que chega primeiro, a letra ou a palavra?
Cara, eu venho passeando por esses caminhos desde a infância. Gosto de escrever e de fazer música. Acho escrever mais trabalhoso, melodia vem do nada. Mas o que vem primeiro na composição de uma canção varia muito. Às vezes vem tudo junto, às vezes uma melodia de voz sobre uma melodia de algum instrumento — não necessariamente uma harmonia — pra ser letrada depois. Muitas vezes “leio” a música das palavras de um poema, seja de terceiros (como temos nos discos novos, poemas de Paulo Leminski, Alice Ruiz, Gustavo Galo, arrudA), seja meu mesmo (como nos casos dos poemas do livro Língua Brasa Carne Flor – Editora Patuá, 2015 – que originaram as músicas “Mama-me”, “No Silêncio” e “Duelo”).
Dentre todas as possibilidades de se pensar os porquês dos dois títulos do álbum, a que mais me chama a atenção é a imagem de Oxóssi, o orixá da caça, da astúcia, da criatividade…
Os nomes foram um presente de Gustavo Cabelo, meu companheiro. Quando cheguei em casa com essa convicção, de que seriam dois discos e que eles tinham que ter uma relação forte entre eles expressa no título, que o nome tinha que mostrar essa dualidade/complementaridade, ele deu algumas sugestões “incríveis” como Pesque e Pague, Assim Assado… (risos).
Eu dizia que tinha que ser mais tipo Noite e Dia, Lua e Sol, mas claro que nem um nem outro! Então ele veio com Arco & Flecha, que fazia todo o sentido! Porque tinha relação de complementariedade, de interdependência, mas também de duas idéias, dois símbolos que falam por si, mesmo em separado. Porque tinha relação com a música “Querer Cantar” (parceria com Gustavo Galo, justamente pra Oxóssi) que era uma das certezas no repertório. Porque seriam os discos minhas “armas” pra continuar na batalha que é a vida de artista independente. Porque tanto o símbolo do arco quanto da flecha também contém em si uma simbologia: um ao princípio yin, feminino, e outro ao yang, masculino. E por último ainda mantém um diálogo implícito com o projeto Macunaíma Ópera Tupi. Achei que ficou tudo muito bem amarrado, não é?
Há alguma simbologia particular por trás da duplicidade? Dois discos complementares, um mais experimental gravado por mulheres, um mais convencional gravado por homens…
Novamente o que posso dizer é que não foi premeditado, o caminho de cada um já era esse mesmo. Foi só ler a simbologia do que se delineou a partir das bandas que já estavam formadas, dos discursos. Eu fiquei pirando muito nisso aliás, pensando qual na real seria o mais ying e o mais yang. Por isso gosto de dizer que ao mesmo tempo que ele tem gênero – porque eu me identifico com o gênero feminino, eles podem ser também transgênero, No ‘das mulheres’ o discurso é mais subjetivo, são mais letras minhas e em primeira pessoa. Mas ao mesmo tempo é um discurso super pró-ativo e tem mais caos, mais vísceras. O outro é mais objetivo, fala de assuntos diversos, de outras pessoas do discurso, é um disco mais palatável. E esses dois lados fazem parte da minha produção. É tensionar e relaxar, despertar emoções diversas, reflexões, ou simplesmente balançar a pista. Fico feliz em ser útil de alguma forma. Ou, preferencialmente, de todas.
Como você pretende resolver essa dualidade que estrutura o disco nos shows? Serão duas bandas, dois shows diferentes?
Eu não pretendo resolver nada! Rs. Pelo contrário, pretendo deixar ainda mais complexo: são três shows diferentes: Arco, Flecha e Arco & Flecha! Quando for só o Arco, além do repertório do disco vai ter umas duas músicas do Flecha, pelo menos uma inédita, entre outras cositas. O mesmo vale para o Flecha. Mas tem música de um que não rola tocar com a banda do outro, sabe? (risos)
O lançamento em São Paulo – 16 de setembro no Auditório do Ibirapuera – vai ter as duas bandas em suas formações originais. Como vai ser isso exatamente, não me pergunte que é surpresa. Já no rio — 27 de setembro no Oi Futuro Ipanema — vai ser a banda do Arco. Tem uma questão de logística que facilita o deslocamento do Arco, por serem menos pessoas. Mas acho que tem situações que vão pedir o Flecha, acho que cada um dos sons vai conquistar um público diferente.
Fale um pouco sobre esse projeto inédito com o Curumin, ORIKI. Tem previsão? Do que se trata?
O ORIKI é um projeto muito especial. Iniciou-se em 2009 com uma instalação sonora de 400 metros quadrados que eu e a artista visual bahiana Silvana Oliviere montamos no MuseuAfroBrasil. Eram doze instalações, sendo cada uma para um orixá. Eu fiz uma música pra cada um deles partindo dos milenares Orikis transcriados pelo poeta Antônio Risério no livro Oriki Orixá. Então, produzi as músicas e a cozinha da maior parte das faixas era a mesma do Flecha: Curumin, Lucas e Badé. Existe um disco praticamente pronto, de músicas inéditas. E o pessoal que trabalhou no projeto vive me cobrando o lançamento. Mas a vida tem suas voltas e reviravoltas. Os discos pra mim vão surgindo no tempo deles, e se multiplicando, como foi o caso de Arco & Flecha, de modo que ele ainda não foi finalizado e lançado. Eu curto muito gravar, produzir, trabalhar em estúdio. O problema é o que vai ser feito depois. Não basta atirar o disco do alto da montanha, né? Tem que viabilizar todo o lançamento e essa é a parte mais difícil. Acho que é um trabalho delicado que exige tempo e respeito. Preciosismo meu? Talvez. Quem sabe para o ano…
Você percebe grandes diferenças entre a música que se faz hoje no Rio e em São Paulo?
Acho que há um estereótipo de que a música carioca é mais solar, mais relaxada e a música paulista é mais densa, mais mental. Por um tempo isso fazia sentido. Hoje em dia acho que não dá mais pra cair nessa. Se não, como explicar por exemplo a existência de um Chinese Cookie Poets, de um IN-SONE no Rio, né? (risos) Ambas as cenas são prolíficas e variadas. É maravilhoso! Acho que houve um aumento do intercâmbio musical entre SP e RJ feito pelos artistas contemporâneos, que foi extremamente enriquecedor pra música brasileira. Eu vivi isso. Como eu morei nas duas cidades, o que posso dizer é que existe uma certa diferença no modo de fazer e produzir música em cada uma. Em geral o carioca é, sim, mais relaxado, enquanto o paulista é mais pilhado: tem que terminar o trabalho logo, no cronograma e tal. Sem falar em questões de mercado. Mas claro que tem tudo tem suas exceções, as peculiaridades de cada artista.
O Arco foi gravado apenas por musicistas num momento importante no que diz respeito à luta feminina contra a opressão patriarcal. Como você percebe esse momento do ponto de vista político e pessoal?
Acho que o momento é bom. É positivo e necessário colocar essas questões em alto e bom som, jogar a merda no ventilador, pra coisa se tornar cada vez mais transparente. Sem enxergar e admitir que somos machistas por criação, não tem como evoluir. Pra mim essa luta vem de muito tempo, é parte da vida, do modo de estar no mundo. É algo que começou na minha infância, quando alguém dizia que “tal coisa menina não podia fazer”, e provavelmente formou minha personalidade “na contra-mão”. Aliás, já vem de minha mãe, que criou cinco filhos sendo uma mulher, artista, cantora e compositora, passando pelo buraco negro dos anos 80. Eu comecei tocar com as meninas não porque eram mulheres, mas porque tocam muito. No meio do caminho lancei o livro de poemas eróticos, bulindo com esse tabu da “bela, recatada e do lar”. O encontro do discurso sexual com a química musical, o tesão de estar fazendo o que se deseja, tocando num palco, de peito aberto, tudo isso aconteceu organicamente. Juntou-se a fome com a vontade de comer. E é bom saber que assim estamos nos fortalecendo e fortalendo outras mulheres no mundo.
*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).
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