Arpeggio – coluna política diária
Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho
Fora Supremo, Fora Dilma. Queremos só Ministério Público e Polícia Federal.
Quando aquela faixa apareceu, em meio à profusão de imagens dos protestos pelo impeachment, em março de 2015, a gente riu. Era uma coisa tão ridícula! Divulgamos em nossos blogs como se ela fosse, em si, tão absurda, que a sua própria divulgação fosse autodesmoralizante.
Eis que ela se torna realidade. Dilma está fora. Não temos mais STF: seus ministros submeteram-se a um silêncio cúmplice e envergonhado, como aliás em todos os outros momentos de arbítrio de nossa história.
E o Brasil ficou a mercê dos meganhas do MP, da PF, do Judiciário e da mídia, ou seja, de todos os setores do Estado (ou muito ligados a ele, como é o caso das concessões públicas de TV) que tem grande poder mas não precisam prestar contas ao povo, porque não são eleitos.
A prisão de Antonio Palocci, hoje, é a prova viva disso. A denúncia apresentada por Sergio Moro é, mais uma vez, repleta de suspeitas subjetivas, interpretações sobre encontros e ataques gratuitos ao PT e a Lula. Mais que uma peça política, é uma peça midiática. Os valores apresentados são abstratos: somam um longo período de tempo e incluem de tudo: doações legais e comprovadas, com supostas propinas. O que importa é gerar manchetes.
Quanto ao fato do ministro da Justiça, Alexandre Moraes, ter “anunciado” na véspera da prisão de Palocci, acho que isso revela não exatamente o controle da Lava Jato pelo governo, mas sim o sentimento do ministro de que a Lava Jato tem como alvo os seus adversários políticos, Lula à frente. Quanto mais a operação avança, mais o governo Temer se beneficia, porque ela abafa os conflitos gerados pelas decisões políticas do governo e direciona o escrutínio popular, via manchetes fabricadas, para o PT, que não está mais no poder. Além de ser uma operação que, neste momento, segue uma agenda descaradamente eleitoral.
Moraes é apenas um idiota. O golpe em curso, que se converte num Estado de Exceção cada vez mais brutal, é muito maior que ele. Acho um erro as críticas se prenderem à frase infeliz do ministro. O golpe está na Lava Jato e num judiciário que se tornou um partido político autoritário e golpista!
De posse de um enorme e fragmentado conjunto de informações: emails, transcrições de telefonemas, anotações, a Lava Jato costura tudo de acordo com sua narrativa. É como montar um quebra-cabeça de uma pintura abstrata. Qualquer peça encaixa em outra, desde que se tenha, de antemão, um objetivo final: criminalizar o PT e destruir Lula.
Repare que a prisão de Palocci gera manchetes contra Lula, porque Moro, em seu despacho, menciona a compra de um terreno onde ficaria o Instituto Lula. Acontece que o terreno em questão não pertence ao Instituto Lula. Ou seja, temos mais um triplex, mais um sítio em Atibaia. Mais uma vez, Moro joga com a mídia para oferecer manchetes contra Lula, mesmo sem provas, sem nada.
A conexão entre obras da Odebrecht, contratos da Petrobrás e Palocci é feita quase que aleatoriamente. É como se a Odebrecht fosse uma empresa pequena, desconhecida, que ninguém contrataria não fosse a “intervenção” de Palocci.
Essa etapa da Lava Jato consuma a destruição da Odebrecht e o engavetamento do projeto do submarino nuclear, o nosso primeiro esforço para construir uma infra-estrutura independente e soberana de defesa da gigantesca costa nacional.
Sergio Moro e os procuradores agem como o psiquiatra maluco do conto O Alienista, de Machado de Assis: todos são criminosos até prova em contrário.
Eles partem do pressuposto de que qualquer encontro, qualquer conversa, qualquer articulação são sinônimos de propina. É a vingança do burocrata contra a democracia, que exige o debate, a articulação, a conversa.
Como seria possível levar adiante uma obra como o submarino nuclear sem antes uma série de articulações políticas?
O arbítrio da Lava Jato é evidente, e sua agenda política idem. Mas não se trata apenas da Lava Jato, e sim de uma mentalidade que já contaminou todo o sistema judicial e ministério público.
A ditadura acontece quando o autoritarismo não está mais apenas na cúpula do governo, mas chega ao guarda da esquina, ao famigerado meganha. É o que aconteceu no Brasil.
Ministério Público, Judiciário, Polícia Federal, se tornaram meganhas de interesses que, apesar de obscuros, sabemos muito bem para onde apontam, e não é para a soberania nacional, vide a violência com que agridem empresas e projetos nacionais estratégicos.
Nenhuma multinacional foi atingida pela brutalidade judicial. A violência é sempre contra projetos nacionais, sem que haja nenhuma ponderação sobre seu valor em termos de soberania, infra-estrutura, geração de empregos. Tudo é destruído em nome de um “combate á corrupção” que é, em si mesmo, corrupto.
A sonegação brasileira continua intacta. O sistema de juros permanece inviolável.
O Brasil está sob ataque, e não é de hoje.
A violência contra Mantega e Palocci é apenas mais um capítulo do golpe, mais uma etapa na direção de um autoritarismo cada vez mais brutal.
Afinal, para que prender Mantega ou Palocci? Eles não tem mais influência nenhuma no governo. Não tem nenhum poder de “obstruir a investigação”. E nem interesse em fugir, visto que são pessoas conhecidas, com endereço fixo, figuras públicas. Qual a finalidade de prendê-los antes mesmo de informar a seus advogados de que eles estão sendo acusados? Antes de qualquer esclarecimento, sentença, condenação, que dirá recurso?
Sergio Moro tem defendido, em palestras recentes, uma “relativa excepcionalidade” no pedido de prisão preventiva. Os juízes do TFR-4, que julgam os primeiros recursos da Lava Jato, disseram que a Lava Jato está acima da lei.
Em artigo recente, o crítico de cinema e comentarista político Pablo Villaça diz que não podemos mais combater o arbítrio com piadas e memes, até porque, quem está rindo são os próprios meganhas e seu imenso público de hienas, que se diverte com a demolição das garantias constitucionais.
O argumento de Villaça me pareceu, a primeira vista, um pouco injusto, como se as pessoas tivessem a seu alcance alguma alternativa. A ditadura tomou conta das instituições e seja para onde olhamos, não há saída. Mas ele tem razão.
O preço do golpe é altíssimo: destruição das grandes empresas nacionais (não os bancos, não as multinacionais, mas somente as grandes empresas estratégicas), desemprego, entrega de patrimônio público, desorganização do Estado, impeachment sem crime de responsabilidade, crise econômica, queda violentíssima da arrecadação fiscal, retirada de direitos e desmantelamento do tímido e incipiente Estado de bem estar social que começávamos a construir.
É um golpe que se revela cada vez maior. O país que caminhava para se tornar a quinta economia mundial é desmantelado e entregue aos interesses do imperialismo, vendido a preço de banana na bacias das almas.
O que fazer?
Para as nossas elites do dinheiro, é um golpe relativamente fácil, porque o povo brasileiro nunca recebeu formação suficiente para se preocupar com algo tão sofisticado como as “garantias constitucionais”, e eles detêm o controle absoluto da narrativa para a parte mais pobre da população.
Os setores que protestam contra esse estado de exceção são quase inteiramente marginalizados pela mídia do debate público, não importando se são intelectuais importantes.
Kleber Mendonça Filho, diretor do Aquarius, sentiu na pele o gostinho do arbítrio político: seu filme, de longe o mais cotado para trazer um Oscar de melhor filme estrangeiro para o Brasil, foi deferido pelo governo em nome de um outro longa-metragem, desconhecido.
Em entrevista ao Cahiers du Cinema, Mendonça denuncia esse processo de lavagem cerebral, em que, em suas próprias palavras, a mentira é vendida como verdade, e a verdade é percebida como mentira. Como cineasta, Mendonça é um expert em semiótica, em linguagem visual. Como ficcionista e crítico, ele sabe melhor que ninguém como a percepção da realidade pode ser manipulada ao sabor dos interesses de quem controla a narrativa.
Estamos ainda no estágio da perplexidade. Quem imaginaria, há alguns anos, que as nossas elites seriam capazes de tanta brutalidade, que nossa grande mídia seria capaz de chegar tão longe na manipulação das informações, e que nossas organizações políticas mais progressistas seriam tão apáticas?
Ao final da entrevista à Cahiers, Mendonça diz algo que talvez seja a nossa única esperança:
Cahiers de Cinema: Essa situação poderia te inspirar um projeto novo?
Kleber Mendonça Filho: Paradoxalmente, essa realidade tão horrível, kafkiana, é estimulante e nos dá vontade de fazer coisas. É verdade que um país bem organizado e pacificado politicamente, se é que isso existe, não é fonte de inspiração tão poderosa como onde reina o caos e o absurdo. O Brasil se encontra assim numa situação de conflito permamente, o que constitui matéria inesgotável para o cinema. É preciso se aproveitar disso, e rápido…
No entanto, a decisão de eliminar o Aquarius da disputa pelo Oscar mostra que a neoditadura está disposta a interferir na liberdade de expressão, de maneira que temos igualmente de estar preparados para uma guerra cultural clandestina.
De qualquer forma, toda resistência ao poder tem necessariamente algo de clandestino. Imagina o que será produzir resistência contra o Executivo, o Judiciário, a Polícia, a Mídia?
Talvez este golpe seja exatamente do que precisávamos para dar um sentido heroico à luta política pela libertação do povo brasileiro. A prisão de Palocci e Mantega, neste sentido, é um símbolo perfeito desta ironia: os dois ministros mais moderados da esquerda mundial são algumas das primeiras vítimas da nova ditadura.
Esta é a grande ironia, que acompanha a história há milênios: o autoritarismo das elites, em momentos de escassez, atinge o seu grau máximo, forçando o povo a seguir caminhos mais radicais.