Por Jéferson Assumção, colunista de literatura do Cafezinho*
Não, eu não conheci o Paulo Bentancur, embora tenha sido seu amigo por quase 30 anos. A última vez que estive com ele foi em julho passado, aqui em Brasília, para participar da 1 a Jornada Literária do Paranoá. Ia se mudar no mês seguinte para o Rio de Janeiro e foi explicando o que significava aquele novo momento: amor, trabalho, um giro que o ajudaria acima de tudo a retomar com mais força uma relação que eu sempre – e com uma inveja muito sincera – considerei um tanto doentia: sua vida com a literatura. No meio dos sorrisos, estava um Paulo delicado, simples e nervoso, capaz de escolher imagens claras, de fazer surgir uma porção de detalhes expressivos a cada frase, de criar metáforas como bolotas maduras, e que pareciam colhidas no ar enquanto falava.
Amoroso com todos, desajeitado com os livros que carregava, distraído, risonho. Mais uma vez eu pensei que estava vendo o velho Paulo sair de seu esconderijo. Não da casa da Regina, a irmã querida e cheia de atenção, mas do espaço misterioso, entre o real e o ideal, em que eu o via metido desde que fomos apresentados. Do autor de Frio, A Solidão do Diabo, Bodas de Osso, e do livro sem gênero Instruções para Iludir Relógios, entre dezenas de infantis e infanto-juvenis, um deles sempre foi meu título preferido: O menino escondido, sobre, claro, Freud.
O estudo formal não era a praia do Bentancur. Com um itinerário próprio, talvez a princípio com um pouco de Paulo Hecker na direção, no meio de toneladas de livros ele tornou-se não só um grande escritor, professor de escrita e crítico autoditada, mas um cara com uma formação pessoal rigorosa e inspiradora. De longe, parecia alguém que preferira os livros à vida; de perto, uma sensibilidade para o humano, uma atenção para o corriqueiro, para os outros e para o que ele queria compreender e, que, sinceramente, não sei o que era. Por isso sua poesia, principalmente em Bodas de Osso, é o espanto de um menino escondido diante do relógio, da panela, do pátio da casa em Santana do Livramento, da professora, dos pais, do avô. Um espanto diante do mundo em seus diários mistérios.
“O que eu sinto pela literatura? Gratidão”, ele me disse uma vez, há muitos anos. Entendi que aquilo tinha para ele – e então deveria ter para mim também – um sentido ético, estético e mesmo político. Sim, político, pelo modo como amplificava a vida comum e dava a quem lia a capacidade de mexer no mundo. Conheci o Paulo quando eu era ainda camelô em Canoas. Tinha não mais que 20 anos e era por isso mesmo o próprio Rimbaud. Na época, uma amiga, a fotógrafa Suzana Pires, a fim de me ajudar entrou em contato com o Benta e o convenceu a receber-me em sua casa. Nunca mais fui o mesmo, desde que pela primeira vez, naquela tarde de um sábado do início dos anos 90, entrei em seu pequeno apartamento no Cristo Redentor, tomado por livros, jornais, revistas, uma máquina de escrever, e um estilo de vida que eu achei que devia ser o meu. Incontáveis sábados à tarde como aquele eu estive com o Paulo no mesmo pequeno apartamento, a tomar café, a mostrar e ler poemas, a conversar sobre livros e sobretudo aprender sobre como se deve amar a literatura. Saía de lá com uma sacola semanal cheia do que eu precisava conhecer: os oito volumes da História da Literatura Ocidental, do Otto Maria Carpeaux; o ABC da Literatura, do Erza Pound; Princípios de Crítica Literária, do I. A. Richards; poemas, poemas, poemas, sobretudo (T.S. Eliot, Auden, Murilo Mendes); Campos de Carvalho (tudo, claro); os argentinos, obviamente; Tchecov e os curitibanos, a começar por Jamil Snege e Valêncio Xavier. Mas sobretudo, ele ensinava, generoso, o que não ler. Impossível esquecer os impropérios hilários, os insultos engraçados. Opiniões absurdas que só com o tempo se mostravam certeiras. Exageradas e peremptórias, mas no alvo, sempre. A gente se divertia com aquilo e eu, no ímpeto dos ingênuos, achava que estava dentro, salvo da burrice galopante ao redor, pelos sermões do padre Paulo. O mundo, disse-me, em outra ocasião, é uma espécie de suporte para a literatura. Eu o via frequentemente como um Walter Pater de província, na mesma frequência fanática, dedicada, comovente de quem estava sendo incluído na vida pelo que lia.
Aos 35 anos o Paulo assinara um artigo de jornal com uma daquelas suas inversões em que eu tanto encontrei verdades: “Paulo Bentancur se chama Paulo, que em latim quer dizer “pouco”.Outra: “Paulo Bentancur tem 35 anos, mas já foi mais velho”. Eu não tenho dúvidas de que já foi e que cada vez ficava mais menino, até se esconder de todo. O que fica agora, para mim e acho que para muitos amigos que conviveram com ele, é a sensação de que eu não o conheci realmente e que com isso nunca vou ver na profundidade o mistério do que é a literatura.
* Olá, pessoal. Meu nome é Jéferson Assumção, escritor, autor de mais 20 livros, entre os quais “Notas sobre Turibio Núñez, escritor caído” (BesouroBox, 2016), “Cabeça de mulher olhando a neve” (BesouroBox, 2015) e “A Vaca Azul é Ninja em Uma vida entre Aspas” (Libretos, 2014). Estou terminando um pós-doutorado em Teoria Literária na Universidade de Brasília (UnB) e dou aulas de Escrita Criativa, em Brasília. Por dez anos atuei na política cultural, como coordenador e diretor de Livro, Leitura e Literatura do Ministério da Cultura (MinC), secretário de Cultura de Canoas-RS e secretário adjunto de Cultura do Rio Grande do Sul. Todas as semanas estarei aqui, no Cafezinho Literário, trazendo contos, poemas e trechos de romances de autores escondidos (ou que poderiam ser melhor conhecidos) da literatura brasileira e latino-americana. Vai ter uma estante de coisas boas que se podem encontrar nos sebos e pequenas livrarias de todo o País. Pra começar, trouxe este artigo bem pessoal sobre o Paulo Bentancur, autor gaúcho falecido dia 28 de agosto passado. Paulo Roberto Ribeiro Bentancur (1957-2016) nasceu em Santana do Livramento-RS, morou em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Autor de cerca de 40 livros, entre os quais destaco “Instruções para iludir Relógios” (Artes e Ofícios, 1994), “Frio” (Sulina, 2001), “Bodas de Osso” (Bertrand Brasil, 2004) e “A Solidão do Diabo” (Bertrand Brasil, 2006). Artigo publicado na edição de hoje do Caderno de Sábado do Correio do Povo. Foto: Correio do Povo.