por Carlos Eduardo, editor do Cafezinho
A ‘revolução política’ proposta por Bernie Sanders nas primárias do partido Democrata tinha como base fundamental o fim das mensalidades nas universidades públicas federais e estaduais.
Em outras palavras, Sanders defendia o mesmo modelo de educação pública que existe no Brasil, onde o ensino superior é gratuito, um direito básico garantido pela constituição.
Um modelo praticado em diversos outros países, como Alemanha, França, Rússia, China, Noruega, Suécia e Finlândia.
Os Estados Unidos enfrentam hoje uma crise no ensino superior sem precedentes na sua história e cedo ou tarde a sociedade norte-americana terá que encarar esse debate.
Bill Ackman, economista e CEO do Pershing Square Capital Management, fundo de investimento que administra US$12.4 bilhões de dólares, afirmou em entrevista ao Business Insider, que muito em breve a economia norte-americana sofrerá um segundo crash, semelhante ao estouro da bolha imobiliária em 2008.
Isto por causa da dívida estudantil, que em 2016 alcançou a incrível cifra de US$1.2 trilhões de dólares.
Ackman e outros economistas vêm alertando há algum tempo para as consequências desastrosas que essa dívida trilionária pode causar nos Estados Unidos, com sérios impactos na economia global.
Atualmente 43 milhões de americanos possuem empréstimos estudantis. Por enquanto, a maioria ainda paga suas contas em dia, mas um levantamento do Wall Street Journal, divulgado em abril, revelou que 40% dos devedores estão inadimplentes. E para muitos a dívida se tornou impagável.
Os mais otimistas preveem um calote de aproximadamente US$200 bilhões de dólares. Mas o estrago pode ser ainda maior.
Histórias de jovens que sonhavam com um diploma de ensino superior, mas depois de formados se viram reféns do mercado financeiro e endividados até o fundo da alma, tornaram-se comuns nos comícios de Bernie Sanders.
O Slate contou no início do ano a surpreendente história de um estudante universitário que concluiu a graduação e o mestrado em biomedicina devendo mais de US$200 mil dólares.
A ganância do mercado financeiro atingiu níveis inacreditáveis!
Um jovem disposto a dedicar sua vida na pesquisa por novos medicamentos e na cura de doenças que afligem a humanidade, ingressa no mercado de trabalho com uma dívida de US$200 mil dólares – algo em torno de R$650 mil reais na cotação atual.
Mesmo que consiga um bom emprego, na melhor das hipóteses levará uma década para quitar a dívida. Na melhor das hipóteses.
No entanto, nada é por acaso.
Em tempos de reforma do ensino médio por meio de medida provisória; redução do orçamento destinado às universidades federais; corte de bolsas no CAPES e CNPq; e até a extinção do programa nacional de combate ao analfabetismo; um documentário lançado no início de setembro nos cinemas norte-americanos surge na hora certa.
Estou falando de ‘Starving the Beast’, do cineasta e professor na Universidade do Texas, Steve Mims.
Mims mostra em seu filme como é vazio e insipiente o discurso em defesa da meritocracia repetido aos quatro ventos pelos políticos liberais conservadores nos Estados Unidos, em sua maioria do partido Republicano.
No debate público eles se apresentam aos eleitores como arautos da educação: ‘somente pela educação é possível transformar o país e melhorar a vida dos mais pobres’, dizem.
Invariavelmente, seus argumentos giram em torno do velho provérbio chinês: ‘não dê o peixe, ensine a pescar’.
O problema é que na prática os políticos liberais conservadores de direita – ou neoliberais, chame como quiser – trabalham diuturnamente para destruir a educação pública de qualidade, subsidiada pelo Estado, gratuita e acessível aos mais pobres.
Se o Estado não oferece oportunidades iguais, a defesa dos princípios da meritocracia revelam-se uma grande farsa e este é um dos pontos levantados pelo documentário ‘Starving the Beast’.
De acordo com um verbete da edição norte-americana do Wikipedia, ‘Starve the Beast’ é uma estratégia política empregada pelos conservadores, a fim de limitar os gastos do Governo Federal, cortando despesas e reduzindo os impostos.
Como o nome já diz, o objetivo é ‘matar a besta de fome’. A ‘besta’, neste contexto, refere-se ao Governo Federal e o ‘Estado de Bem-Estar Social’, este ente tão demonizado e criticado pelos liberais conservadores que batalham pelo estado mínimo.
O documentário está em cartaz nos Estados Unidos e sem previsão de lançamento no Brasil, por isso ainda não tive a oportunidade de assisti-lo. Mas recomendo as entrevistas do diretor Steve Mims na divulgação do filme.
Basicamente ele explica algo que nós brasileiros já estamos carecas de saber.
Primeiro os neoliberais cortam os investimentos em áreas estratégicas do Estado para depois justificar a sua privatização. É o que está acontecendo agora com a Petrobras, por exemplo.
‘Starve the Beast’ faz parte do projeto das elites para destruir o Estado de Bem-Estar Social e frear a ascensão econômica das classes mais baixas.
Desde a eleição de Ronald Reagan, em 1981, quando os republicanos fundaram as bases da política econômica que hoje chamamos de ‘neoliberalismo’, o orçamento do governo norte-americano destinado a subsidiar o ensino superior vêm caindo ano após ano.
Sem o subsídio do Estado, o custo das mensalidades disparou.
Um estudo divulgado em 2012 na Forbes revelou que nos últimos trinta anos a inflação acumulada nos Estados Unidos foi de aproximadamente 115%, enquanto as mensalidades nas universidades públicas federais e estaduais tiveram aumento de quase 500%.
Resultado: mandar os filhos para a faculdade é uma tarefa cada vez mais difícil para a classe-média norte-americana.
O drama se tornou tão recorrente que virou inclusive motivo de piada.
Qualquer um que assiste à sitcoms norte-americanas, esses seriados de comédia família, já deve ter visto alguma vez na vida um episódio em que o pai e a mãe discutem qual dos filhos é o mais inteligente, quem merece o investimento em um diploma de ensino superior, pois o dinheiro é escasso e não há como pagar pela faculdade de todos os filhos.
Ao longo das primárias do partido Democrata, Bernie Sanders provou que é possível extinguir com as mensalidades nas universidades públicas federais e estaduais. Basta vontade política.
O Departamento de Defesa dos Estados Unidos consome atualmente cerca de US$ 600 bilhões de dólares por ano com funcionalismo e manutenção de 800 instalações militares, em mais de 70 países. Equivalente a 54% do orçamento do estado norte-americano.
Como disse Bernie Sanders ao longo da campanha, tudo é uma questão de prioridades.
Sanders propôs a criação de um imposto sobre a movimentação financeira e especulação em Wall Street – similar a antiga CPMF brasileira – e uma leve redução no orçamento militar – bem pouco na verdade, menos de 10%.
Com essas duas medidas simples já seria possível destinar US$ 75 bilhões do orçamento ao subsídio do ensino superior – valor necessário para acabar de uma vez por todas com as mensalidades nas universidades públicas, colocando em prática os princípios da meritocracia que a direita tanto apoia.
Mas tudo é uma questão de prioridades. E esta, definitivamente, não é uma prioridade das elites econômicas que ditam o rumo do Governo Federal norte-americano.
Neste aspecto não somos assim tão diferentes.
Uma das prioridades do atual governo é destruir o precário Estado de Bem-Estar Social que existe hoje no Brasil. Cortar gastos com educação, enquanto aumenta os salários do poder Judiciário mais caro do mundo.
De acordo com a avaliação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), a reforma do ensino médio proposta pelo governo Michel Temer tem o intuito de “baratear” as escolas públicas, forçando uma migração de alunos para o ensino privado.
Não sejamos ingênuos. Nada que venha desta administração visa melhorar de verdade a educação brasileira.
Primeiro suspenderam milhares de bolsas do CAPES e CNPq; depois anunciaram um corte de até 45% dos recursos das universidades federais; em seguida suspenderam o programa nacional de combate ao analfabetismo; agora impõem goela abaixo da sociedade uma reforma do ensino médio, sem consultar os especialistas da área.
Como diria Darcy Ribeiro: “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.