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Cadu Tenório celebra 10 anos de carreira com o álbum duplo “Rimming Compilation”

Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho. Fotos: Fernando Teixeira Arte: Lucas Pires Cadu Tenório é um artista carioca que partilha alguns códigos com uma longa tradição do século XX, os pilares daquilo que podemos identificar como uma música não-narrativa: música que se dedica a conectar fluxos sonoros e seus devires imagéticos, táteis. Música que corta estes […]

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Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.
Fotos: Fernando Teixeira
Arte: Lucas Pires

Cadu Tenório é um artista carioca que partilha alguns códigos com uma longa tradição do século XX, os pilares daquilo que podemos identificar como uma música não-narrativa: música que se dedica a conectar fluxos sonoros e seus devires imagéticos, táteis. Música que corta estes e outros fluxos e os reinstala em outros sistemas de fluxos, fluxos que modulam conforme dinâmicas particulares e fragmentárias de movimento e repouso. O som musical desdobrado sobre uma temporalidade aberta, não-causal, não cronológica, capaz de absorver subjetividades e modular a percepção, transformando a experiência “estética” passiva em fruição ativa, criativa. De que música estamos falando? Toda a música do século XXI: de Stravinsky e Schoenberg, a Segunda Escola de Viena, os radicalismos da “música eletrônica” de Stockhausen, da musique concrète de Pierre Schaeffer, o jazz desterritorializado de John Coltrane e Roscoe Mitchell, a música de Jorge Antunes e Guilherme Vaz, as experiências de La Monte Young e Tony Conrad, a música eletroacústica de Eliane Radigue, os experimentos radiofônicos de Delia Derbyshire, a espacialização desenvolvida por Pauline Oliveros e Maryanne Amacher; mais tarde, os tape loops e manipulações de toda natureza que marca o trabalho de Christian Marclay, John Oswald, William Basinsky, entre tantos outros. Trata-se, portanto, não de uma característica pontual, mas uma abertura geral sobre a qual modulam muitos corpos, subjetividades e experiências e redefine o modo como escutamos a música e lidamos com o som em geral.

Particularmente no Brasil, esta experiência de abertura para uma música não-narrativa, ou que opera para além do trinômio melodia-harmonia-ritmo, foi abordada em uma matéria escrita esse ano para o Cafezinho a respeito da “música de ruídos” no Brasil. Cadu tem um papel específico na consolidação dessa tendência no Brasil.  Sobre ele, escrevi: “Artista ligado à cena eletrônica e experimental carioca, cujo trabalho é construído a partir de gravações de campo, tape loops, instrumentos processados e timbres extraídos de objetos cotidianos. Como compositor e músico, é responsável por projetos como Sobre a Máquina, VICTIM! e Ceticências e lançou discos por selos nacionais e internacionais. Em 2014, lançou Banquete em parceria com o compositor Marcio Bulk. Em 2015, lançou Anganga com a cantora Juçara Marçal, parceria entre os selos Sinewave e QTV. O álbum no qual fez releituras experimentais de vissungos e cantos do congado. Com Thiago Miazzo, é responsável pelo selo TOC Label.”

Parece, contudo, que esta descrição carece de atualização: para comemorar sua primeira década de atividade, Cadu lançou um álbum duplo, Rimming Compilation (Brava/Sinewave, 2016) composto por duas partes cuja conexão não é evidente nem necessária. De fato, Liquid Sky e Phantom Pain podem ser escutados em separado, sem que haja a preocupação de conectá-los em um todo harmonioso. Cadu conversou conosco sobre o processo de elaboração e produção sonora e visual do disco, especificando as fontes de inspiração e os próximos passos.

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Cadu, eu te pediria que fizesse uma breve introdução a respeito do seu trabalho e de sua carreira para os leitores do Cafezinho.

É seguro dizer que trabalho com ideias na tentativa de criar links entre as coisas. Gosto de antíteses, embate entre “opostos”, seja a microfonia dialogando com o piano, silêncios cortando de forma brusca o som da multidão ou vice versa. Minhas ferramentas sempre foram as que tive em mãos e, principalmente no começo, o que era acessível em termos de grana. Daí, já dá pra dizer que a fita cassete, os instrumentos quebrados (ou que vinham a se quebrar durante as experiências e passavam a ter novas funções) e os objetos cotidianos, como um ventilador velho, sempre estiveram presentes. Acho que isso ajudou a sedimentar o meu trabalho. Descobertas e transformações que vinham mediante a decomposição dos materiais. Sobrevivência e adaptação. Com o tempo veio o acesso aos computadores que ajudaram a lapidar as produções e trouxeram a possibilidade de transformar o quartinho de casa em um projeto de estúdio.

Esse mês fazem exatos dez anos que resolvi expor pela primeira vez um trabalho meu na rede, no extinto site Trama Virtual, que marcou época. E ao longo desse tempo venho me esforçando pra continuar dando significado ou trazendo novos questionamentos ao que me atravessa. Hoje é um pouco mais fácil, conexões e laços se formam com a continuidade do trabalho, passei a ter acesso a alguns bons estúdios mas não deixei de produzir coisas em casa. Mania de lo-fi.

 

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Além de assinar como Cadu Tenório, você também está por trás de um infinidade de projetos, como o VICTIM!, o Sobre a Máquina, o Ceticiências, a parceria com Thomas Rohrer, Juçara Marçal, entre outros. Como você descreveria essa necessidade de distribuir seu trabalho por muitos projetos, pseudônimos, parcerias?

Aprendizado e movimento. Não gosto de me sentir estagnado, preciso estar sempre sendo atingido por algo ou por alguém. Ser “agredido” talvez seja a melhor forma de extrair de você coisas que você não conhecia ou tinha medo de conhecer/aceitar.

Como você lida com as diferenças entre seus muitos projetos? Existe alguma particularidade (sic) quando assina com seu próprio nome, Cadu Tenório?

Tentava separar em “janelas diferentes” o que era mais focado em cortes, faixas curtas do que eram longas durações e volumes extremos. Com o tempo isso acabou fatidicamente se cruzando e se tornando mais fluido, principalmente devido às parcerias. Pessoas diferentes, projetos diferentes — por exemplo, o Gruta, uma parceria com Thiago Miazzo ou o Ceticências que hoje é um duo com Sávio de Queiroz, dentre várias outras parcerias com um monte de gente que respeito muito.

Ainda mantenho o VICTIM! como um projeto solo separado por que ele pede temática e clima muito bem definidos e distintos do que costumo fazer utilizando meu proprio nome. Mas vale dizer que sendo “Cadu Tenório” em uma performance não me privo em passear por coisas que se aproximem do VICTIM! Acredito que assinar como “Cadu Tenório” amplia minhas fronteiras.

 

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Geralmente não faço esse tipo de pergunta, pois respeito a licença poética do artista. Mas como sei que você não cria seus títulos por acaso, não posso deixar de perguntar: por que Rimming Compilation?

Eu, você e provavelmente quem está lendo, todos sabemos do que se trata. (risos) Mas caso alguém não saiba, o google esclarecerá bem rápido. Na reflexão final pra bater o martelo nesse nome, vários pontos subjetivos foram ponderados. Não podia ser outro nome. Vamos do começo:

Logo após o lançamento do Vozes (Sinewave, 2014), com a continuidade nas pesquisas, fiquei viciado/fascinado por sons oriundos da boca e da língua, sons molhados, babados, cheios de saliva, enfim, sons sexuais que no mundo da pornografia atendem por categorias ou tags tais como: “rimjob”, “gagging”, entre outras diferentes formas de lambida ou acidentes com a garganta.

Com todas as reservas, a pornografia mainstream, as “rimming compilations” ou “rimjob compilations” estão lá disponíveis. (Se você quiser entender/visualizar melhor o que vou explicar a seguir recomendo que deixe o audio de alguma dessas compilações ligado nos fones enquanto continua lendo). Todo o embrião do disco foi construído/composto por cima de gravações desse tipo de som ou de sons que emulam esse tipo de som, as gravações em si só permaneceram na primeira faixa do Phantom Pain. De resto, acabou praticamente tudo fora, serviram como uma espécie de “esqueleto condutor” do todo.

Também como homenagem e força de expressão “lamber cu”. Um outro motivo, pouco mais abstrato pelo qual o nome me agradou e que depois, fez todo o sentido. É grande a quantidade de referencias e citações nos títulos e dentro das músicas. E lamber o meu próprio cu, auto-referenciando vários trechos extraídos do meu material antigo — fadado ao limbo digital junto com o site Trama Virtual inteiro — foram utilizados no processo de composição, principalmente no Liquid Sky.

 

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Por que um álbum duplo? Qual o sentido já que se trata de discos tão diferentes?

Foi um longo período de produção, isso contribuiu pra virar algo realmente extenso. Bastante coisa ficou de fora quando parei de gravar e passei a focar na construção narrativa do disco. Com tudo o que foi gravado no processo, o disco estava beirando as três horas de duração. No fim, podemos até dizer que ele praticamente se tornou uma “compilação do material inteiro”.

Existiu um corte dele em que tudo era uma coisa só, gigante. Mas não achei que o resultado teria o impacto desejado. Fui vendo que existia a possibilidade de criar dois grupos distintos a partir dos tipos de exploração que seguem as faixas. O que eu acho bem interessante, pois no fim tenho a impressão de ter conseguido tornar cada um deles a antítese do outro, faixas curtas/faixas longas. Cortes frenéticos e cadencia/texturas contínuas. Quente e frio como nas capas. E isso usando a mesma matéria prima e identidade de timbres.

Que tipo de motivação/pesquisa está por trás de Liquid Sky? Pergunto especificamente sobre ele pois me parece algo bem diferente de tudo o que vc já fez…

Vejo nele uma certa continuidade do Vozes, só que mais integrado às estruturas de trabalhos como o Anganga (disco em parceria com a cantora Juçara Marçal lançado pelos selos QTV e Sinewave em 2015). A memória afetiva no Liquid Sky  é funcional e está nos pequenos trechos destruídos de canções radiofônicas. Vejo o disco como um programa de rádio com narrativa de sonho. Quer dizer, existe um pulso, pop, ao mesmo tempo que nada é linear. Uma montanha russa. Tantas informações no cérebro num curto espaço de tempo que você vai querer dar outra volta, de novo e de novo, mesmo com a tontura, só pra tentar achar explicações nas sensações que não param por tempo suficiente pra serem racionalizadas..

Percebe-se nesse trabalho que tanto na diversificação do som, como no visual, sua música está buscando ampliar/diversificar a paleta de cores. As capas de Rimming Compilation retomam o mosaico digital de Vozes

As cores surgiram a partir da sonoridade e das referencias. Menciono rapidamente sobre algumas das várias obras que foram de suma importância para o desenvolvimento do projeto.

Destacaria o próprio Liquid Sky (filme de 1982 dirigido por Slava Tsukerman) que acabou dando nome a metade do disco. Eu sou obcecado pela atmosfera criada pelo filme: Sufocante, chafurdada em heroína e com aquela aura de mistério, suspense, UFO, tudo banhado em cores muito vivas. Uma “capa” de cores somada ao modo robótico de dançar das pessoas no club, as performances e músicas na trilha sonora, “Me And My Rhythmbox”… É muita vibe pra sentir. Pode-se dizer que eu imaginei uma trilha sonora alternativa pro filme. O filme me soa muito atual, e acredito que mais do que na época em que foi pros cinemas. Conseguimos ver que não é à toa que a Anne Carlisle, atriz e co-roteirista do filme, interpreta dois personagens, um homem e uma mulher.

Vindo disso tem uma HQ que nutro muito carinho. Se chama Fashion Beast, produzida a partir de uma ideia/conceito do Malcolm McLaren em prática num roteiro do Alan Morre, ainda na década de 80. Sim, os dois fizeram uma parceria do que viria a ser um filme, mas acabou que não teve filme. O roteiro ficou engavetado muitos e muitos anos e só veio à luz como história em quadrinho em 2012. Apesar de ser considerada uma obra menor do Alan Moore poucas coisas que tive acesso possuem a atmosfera criada nela — com todos as honras ao desenhista Facundo Percio. Trata-se de uma releitura de A Bela e a Fera num futuro distópico com o mundo a beira de uma guerra nuclear onde a “Bela” se chama Doll e é um andrógino e a “Fera” um estilista renomado que vive recluso no alto de um prédio por conta de supostas deformidades no rosto. Nessa história as cores e todo o conceito de moda me remete diretamente ao Liquid Sky: são como máscaras construídas com o propósito de perpetuar vida, mas com um cinismo intrínseco, uma decadência nas entrelinhas.

 

 

Estamos um pouco mais à frente da época em que ambas as histórias acima foram escritas, temos elementos complementares que fazem toda diferença, internet em velocidades absurdas, telas de LED, cores completamente anti-naturais. Cores quentes e escuras parecem berrar significados. Tons de cores totalmente artificiais me lembram reproduções de Tóquio à noite, neons e luzes multicoloridas. Na falácia de usar cores vivas com a intenção de ser o mais distante possível do branco e preto — “ausência de cor/luz” em conjunto com o branco, junção de todas as cores —, numa lógica circular, cíclica, acabamos chegando no mesmo ponto, nos mesmos significados ocultos nas entrelinhas.

Daí viria o Perfect Blue, outro longa marcante, um anime (animação de 1998 dirigida por Satoshi Kon). Vejo nele o lado obscuro das cores, do brilho das celebridades e o que elas podem vir a despertar nas pessoas comuns, que corroboram o título. No filme o computador e a internet se fazem presentes como o horror. Serial Experiments Lain (série de animação dirigida por Ryutaro Nakamura) seria outra dessas referencia forte no disco, o modo como as relações são criadas, toda a estrutura não-linear do desenho.

“Imaginei o Rimmimg compilation como uma sucessão de pop-ups que brotam na sua frente sem parar…”

Pra não nos alongarmos muito mais. Imaginei o Rimmimg Compilation como uma sucessão de pop-ups que brotam na sua frente sem parar, criando conexões a partir das subjetividades dentro de subjetividades, baseado nos tempos em que as dúvidas são respondidas pelo Google, algo que me deixa ainda mais seguro em utilizar vozes oriundas do Google. Um pouco mais de curiosidade vai fazer com que cada um consiga ligar pontos, os básicos e outros mais que eu mesmo não tenha ligado.

Fale um pouco sobre as fotos e o material gráfico do disco.

Foi divida em duas partes. Lucas Pires (artista e designer carioca do grupo DEDO) já trabalha comigo em artes de disco já há alguns anos. Gosto muito da liberdade que temos pra discutir e esmiuçar as coisas, trocamos uma infinidade de emails com imagens e ideias até chegarmos no ponto. Para o Liquid Sky quisemos utilizar imagens de praticas sexuais disponibilizadas na internet entre pessoas de todos os gêneros possíveis. A ideia foi fragmentar e misturar tudo em uma coisa só. Claro, focamos no nome do disco. Em Phantom Pain a pesquisa acabou tendo como base o subtítulo. Na capa vemos alguns personagens de histórias em quadrinhos, mais precisamente dos X-Men num run escrito por Grant Morrison por volta de 2001 e 2003, com desenhos do Frank Quitely. Fotografei frames direto das revistas e hiper-aproximamos alguns detalhes. Nessa época os X-Men viviam um momento interessante na cronologia (que foi meio que descartada após a saida do roteirista em questão). Os mutantes estavam cansados da politica da escola e de suas amarras, alguns mais rebeldes resolveram fazer uma rebelião no instituto Xavier regada por uma droga que aqui no Brasil foi traduzida como “porrada”. A rebelião acaba de modo trágico. E um fato interessante é que as fotos que selecionei são de personagens que possuem poderes psíquicos, os males causados a eles, o motivo pro sangue visto nas imagens, foi o desgaste de suas mentes.

De uma forma geral, fale um pouco sobre a relação som/imagem no seu trabalho.

Minhas referências pra produzir costumam ser tanto visuais quanto sonoras. Produzo boa parte dos videos relacionados ao meu trabalho, como você sabe. Tento manter a mesma relação de impacto e junção de extremos que existe sonoramente. É complementar ao fluxo da memória que está sempre presente no meu trabalho.

Acho interessante pontuar isso, que minhas influências pra trabalhar podem vir dos mais diversos lugares, seja Stockhausen, Genesis P Orridge, Vektroid, Marlene Dumas, Nicola Samori, Andrzej Zulawski ou Frank Quitely. Imagino sempre cenas, paisagens… Se não existe uma imagem em si, é porque estou contando com o que pode vir a ser.

 

 

Como você pretende transportar todo esse manancial de sons, imagens e ideias para o palco? Como serão as apresentações de Rimming Compilation?

Quero deixar como surpresa pra quem for assistir no lançamento, vai ser em outubro na Audio Rebel, só posso adiantar que terá contribuição direta do Lucas Pires na parte visual e que vai ser uma performance relativamente longa.

Fale um pouco sobre seus próximos projetos.

Tem algumas coisas ainda engatinhando, continuação de parcerias que já existem e algumas novas  pro ano que vem. O que está pra sair em outubro, se tudo der certo, é o disco novo da Fábrica, banda do Emygdio Costa. Estou produzindo esse terceiro disco.

Tem um novo projeto meu experimental de canção, que acredito que vá ser meio surpreendente pra quem acompanha meu trabalho. Fora o VICTIM! que já não dá as caras desde 2014, deve reaparecer. O Rimming Compilation mesmo ainda vai render bastante coisa, principalmente visuais. É isso.

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*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).

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Bernardo Oliveira

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