(Foto: Lucio Bernardino Jr/Câmara dos Deputados)
Por Rogerio Dultra dos Santos, Colunista de Política do Cafezinho
Na tarde desta terça-feira, 20 de setembro, o Juiz Federal Sérgio Moro recebeu a denúncia do Ministério Público Federal contra o Ex-Presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A denúncia ainda aponta participação de cinco empreiteiros, do presidente do Instituto Lula e de Marisa Letícia, mulher de Lula.
Na decisão que admite a denúncia do MPF, o juiz Moro realiza uma verdadeira defesa da peça acusatória, exculpando os excessos, a falta de provas e o notório desequilíbrio entre a espetaculosa acusação de um gigantesco esquema de corrupção – em comparação aos valores chinfrins do suposto pixuleco que teria sido recebido pelo Ex-Presidente na forma de um apartamento que nunca foi de sua propriedade.
Não é por acaso que os professores de processo penal estão em polvorosa no Brasil. A “Operação Lava-Jato”, que reúne uma “força-tarefa” da Polícia Federal e do Ministério Público Federal do Paraná sob a batuta do juiz Moro tem colocado os institutos clássicos do processo de ponta-cabeça.
A começar pela fusão de atividades processuais e constitucionais distintas, como o são a investigação, a acusação e o juízo. Enfeixadas estas funções sob a “coordenação” da “Operação”, esvai-se o princípio geral do processo na modernidade política que é o princípio acusatório.
Criada para se diferenciar das inquisições medievais a distinção entre inquérito, acusação e juízo garante a imparcialidade da justiça criminal. A moda recente de “forças-tarefa” e de “Operações” que fazem trabalhar em conjunto instituições com responsabilidades constitucionais diversas impede, de fato, que o devido processo – acusatório – se realize.
Sob um processo inquisitorial, o que menos importa é a verdade. A intuição, a imaginação, a ilação, a mera versão das autoridades investigatórias se transforma em elemento suficiente para que se antecipe juízo, se atribua culpa e se condene indivíduos sem prova e, portanto, sem que se completem os elementos básicos do devido processo.
Junte-se isto à interação preordenada com os conglomerados de comunicação e a receita do arbítrio transformado em narrativa midiática opera em forte velocidade contra o Estado de Direito. Respaldados pela grande mídia, os operadores da “Lava-Jato” afastam os limites processuais e utilizam de fato as instituições judiciais como instrumentos de legitimação de suas convicções políticas.
O próprio processo penal é visto pela “Lava-Jato” como uma ocasião para manifestarem as suas avaliações sobre a corrupção no país. A admissibilidade judicial de uma denúncia prolixa e prenhe de atecnias, de juízos políticos e de adjetivações descabidas se realiza, como diz o juiz Moro, como “uma oportunidade para ambas as partes”: para que Lula se defenda, para que o MPF prove o que diz.
Preste-se atenção nesta frase de Moro: O processo é uma oportunidade para as partes. O processo é visto, neste sentido, como uma ocasião para que o MPF apresente as provas que não pacificaram as consciências jurídicas mais sóbrias e nem mesmo a do próprio juiz. Este, reiteradamente tenta justificar a tênue denúncia, cuja expressão estética kitsch se deu com os famigerados PowerPoints do Procurador Dallagnol.
Diz Moro, sobre a acusação direta do MPF a Lula: “Certamente, tais elementos probatórios são questionáveis, mas, nessa fase preliminar, não se exige conclusão quanto à presença da responsabilidade criminal, mas apenas justa causa.”
Parece tomar as dores do MPF e responder aqui à reverberação do “não tenho provas, mas tenho convicção”.
O Juiz Federal sintetiza e justifica as “omissões” da peça acusatória do MPF. Didaticamente explica o que não está dito nas rocambolescas 149 páginas da denúncia.
Assim, diz que “o MPF não imputou, ao contrário do que se esperaria da narrativa, ao exPresidente o crime de associação criminosa”, a “omissão encontra justificativa plausível, pois esse fato está em apuração perante o Egrégio Supremo Tribunal Federal”.
Aproveita, como um dos prováveis mentores de fato da “Operação” para puxar a orelha dos imberbes e açodados procuradores e reconhece o exagero da denúncia contra Dona Marisa, esposa de Lula. Ainda assim, a acata.
Por fim, Moro aproveita para descartar a denúncia do MP de São Paulo, a dos Promotores “filósofos”, que há meses já apontava o Triplex do Guarujá e o Sítio de Atibaia como “provas” “cabais” do envolvimento do Ex-Presidente Lula no suposto esquema de corrupção.
Este último ponto da decisão de Moro é importante.
Alguns dias atrás o Professor de Processo Penal da UERJ e Ex-Procurador do MP-RJ Afrânio Silva Jardim lembrou que no processo penal brasileiro não é permitido o litisconsórcio, isto é, a existência de duas denúncias fundadas em fatos idênticos. A segunda deveria ser descartada, portanto.
Ora, como a segunda denúncia é a da “Operação” do MPF do Paraná e esta também fala de Triplex e de Sítio, Moro não poderia recebê-la caso mantivesse sob sua Vara a denúncia feita pelos Promotores de São Paulo.
O que faz Moro então? No final da decisão de hoje, joga a batata quente de volta para a Justiça Estadual de São Paulo, deixando livre a sua Vara da peça acusatória apatetada dos paulistas, afim de receber a nova denúncia PowerPoint dos meninos da “força-tarefa” paranaense.
Não resta mais quem duvide genuinamente que o processo – cuja orientação política de perseguição de Lula e do Partido dos Trabalhadores está cada vez mais explícita – tem inovado no retrocesso civilizatório. O processo Penal, de instrumento de garantia cidadã, tem sido utilizado como motivo de perseguição política.
Hoje, às vésperas de eleições municipais, sendo Lula o principal candidatável a Presidente e maior cabo eleitoral das esquerdas, nada melhor que um processo criminal que, ao final, pode inviabilizá-lo em 2018.
A questão que os professores de processo penal enfrentam hoje nas faculdades de Direito é como ensinar algo que não obedece mais os códigos e a Constituição.
A pergunta pode ser apreciada por vários ângulos:
Como explicar que o que vale não é o que está nos autos, mas nas convicções dos acusadores?
Como compreender que quem julga defende quem acusa, coordena quem investiga e joga tudo para a platéia?
Como avaliar que funcionários públicos de carreira em órgãos judiciários atuem nos seus ofícios como agentes interessados nas disputas político-partidárias?
Como considerar correto que a atividade acusatória não funcione como obrigação, mas como ocasião para a manifestação de juízos políticos, estéticos ou mesmo de opiniões, ilações, convicções?
Como entender que em pleno século XXI se esteja flertando com práticas medievalescas e inquisitoriais que ameaçam diretamente a democracia no país?
Para responder a isto tudo, a mais profunda perplexidade e o receio que o golpe e o arbítrio se capilarizem como modelos de operação nas instituições que deveriam garantir a ordem jurídica e os direitos fundamentais.