Arpeggio – 19/09/2016
Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho
A leitura do livro A Radiografia do Golpe, de Jesse Souza, me deixou mais tranquilo em relação às perspectivas do golpe. Agora eu sei que ele será derrotado.
A produção intelectual antigolpe está crescendo. Pode-se dizer que já surgiu uma escola literária, acadêmica, científica, estética, contra o golpe, e seguramente reúne bem mais representantes da inteligentsia nacional do que a turma que defendeu o impeachment.
As batalhas contra o impeachment já haviam mostrado isso. Os golpistas conseguiam, após meses de organização, trazer gente às ruas, com imenso apoio da mídia, simpatia da polícia e dos governos. Até a catraca do metrô era liberada em São Paulo. A Fiesp distribuía filet mignon aos participantes.
A esquerda, por outro lado, não só também conseguiu fazer grandes manifestações (sem ajuda da mídia), como fez uma quantidade muito maior delas. E não só manifestações: debates. Uma quantidade notável de debates, eventos e encontros de todo o tipo foram realizados com o escopo de resistir ao golpe. A mídia teve um trabalho monstruoso para esconder tudo isso. Mas a história não o fará.
Em Belo Horizonte, no ano passado, houve um encontro de blogueiros que reuniu milhares de pessoas. A direita não tem massa crítica para chegar perto disso.
É curioso que a Folha tenha, num editorial, mencionado fascistas nas marchas contra o golpe, porque havia meia dúzia de encapuzados – posteriormente disciplinados por sindicalistas, que sabem muito bem que a tática de violência acaba sobrando é para o próprio militante, já que o mascarado em geral consegue escapulir rápido.
Nas marchas coxinhas, todavia, víamos centenas, milhares de pessoas portando faixas pedindo intervenção militar, fazendo discursos de ódio, empunhando cartazes grotescamente fascistas como aqueles que lamentavam que a ditadura militar não houvesse matado todos os militantes de esquerda, e a Folha chama a manifestação da esquerda de fascista.
Eu li um post ontem no blog do Nassif interessante, em que ele fala da necessidade histórica dos acontecimentos, inclusive as tragédias políticas que vivemos no Brasil. O golpe tinha de acontecer, porque é ele quem deflagrará uma série de novas energias de resistência, que, de outra maneira, permaneceriam escondidas por muitos anos.
O golpe nos faz também perdoar, em parte, os erros do PT e do governo. Não por achá-los menores, ou entender que não é o momento de autocrítica. Ao contrário, acho que o melhor momento para autocrítica é sempre o agora, e considero a autocrítica, quando sincera, criativa, arrojada, uma excelente ferramenta de propaganda para qualquer organização política. Tenho visto, no PT, após tudo que passou, ainda o mesmo tolo pavor pela crítica, pela autocrítica, como se isso fosse prejudicar o partido.
Perdoamos os erros do PT e do governo porque agora ficou bastante claro a sua fragilidade, sobretudo diante dessas poderosas e diabólicas máquinas da mídia e dos aparatos jurídico-policiais. Às vezes, vemos críticas dizendo que o PT não mudou a cultura jurídica punitivista no país. De fato, muita coisa podia ser feita. Mas achar que um partido ainda tão novo, e que já nasceu criminalizado pelos órgãos do Estado e pela mídia, teria poder de provocar mudanças efetivas em estruturas e superestruturas seculares, é ingenuidade. E nem é questão de tempo. Às vezes, um governo pode mudar uma cultura política em uma gestão ou duas, mas é preciso que haja uma atmosfera propícia a isso. No Brasil, nunca houve essa atmosfera. Esses últimos 13 anos de governo foram uma sucessão ininterrupta de ataques: 13 anos de massacre diário, contínuo, brutal, da mídia contra o governo.
A criminalização do PT e de Lula, como se vê na Lava Jato, precisa criar uma imagem de poderio absoluto em torno deles que eles nunca tiveram. Esse lado humano, vulnerável, frágil, de Lula, por outro lado, é o que torna muito maior do que milhares de burocratas sem muita consciência de que agem como medíocres e raivosos cães de guarda da elite predadora nacional.
Mas tudo isso tinha de acontecer, exatamente do jeito que aconteceu. Por exemplo, esses anos todos de guerra política produziu, no Brasil, uma das blogosferas mais fortes do mundo inteiro. E quem afirma é o jornalista brasileiro mais poliglota e mais cosmopolita de todos, Pepe Escobar, conforme se pode assistir no vídeo abaixo, um trecho de 20 segundos que recortei de uma entrevista maior dele sobre o golpe. Ele cita vários blogs, mas esqueceu o Cafezinho. Não tem importância: os blogs sujos que ele menciona são primos nossos, é como nos citar também. A luta contra as mentiras da mídia hegemônica nos torna companheiros de armas.
É um orgulho ser elogiado por alguém como Pepe Escobar! Escobar é tudo que um jornalista coxinha gostaria de ser, mas nunca será: um sujeito extremamente culto, que reside em Paris, São Paulo e Ásia, um jornalista independente que escreve brilhantes análises em inglês, língua que domina com maestria positivamente diabólica (visto que é brasileiro), que fala fluentemente vários idiomas, que dá palestras em vários países sobre geopolítica. E, além de tudo, é um homem de esquerda, que sabe que o Brasil foi vítima de um golpe e que a partir de agora passará o resto de sua vida denunciando esse golpe, em diversas línguas, onde quer que escreva ou fale.
A blogosfera brasileira é forte, paradoxalmente, por causa do monopólio e das conspirações midiático-judiciais, fatores que a tem colocado sob uma pressão terrível há vários anos, pressão essa que age como uma forja natural, a produzir aço de puríssima têmpera!
Com o golpe, essa blogosfera tende a crescer, agora num contexto em que ela é vista como ainda mais independente do que antes, porque escapa da tradicional difamação da mídia corporativa, de que era uma blogosfera “chapa branca”. Esses ataques agora ficam vazios, sobretudo porque a mídia brasileira, agente protagonista do golpe, precisa defender de todas as maneiras, mesmo que ainda tente disfarçar, como a Folha, o governo que pôs lá. O chapa-branquismo da imprensa brasileira hoje é nauseabundo.
Estreou há pouco, na Netflix, uma série intitulada Billions. Os dois personagens principais, que antagonizam um com o outro, são: um bilionário do mercado financeiro, interpretado por Damian Lewis (que fez o angustiado e ambíguo protagonista de Homeland); e o procurador geral do Estado, interpretado pelo extraordinário Paul Giamatti, a representação mais pura do sarcasmo inteligente do cinema contemporâneo.
Eu gosto muito de assistir essas séries jurídicas americanas, assim como curto filmes e romances sobre o tema.
É sempre interessante ver como os funcionários da procuradoria reiteram sempre que ganham pouco, e que os ambiciosos procuram mesmo a banca privada. Aqui é o contrário. Os ambiciosos procuram os salários de marajá do Ministério Público e do Judiciário.
Acho importante também para dessacralizar os representantes dessas instituições. Passamos tantos anos assistindo as novelas da Globo e as achando excelentes e agora descobrimos que fomos enganados: as novelas da Globo eram xaropadas alienantes, nunca mostraram a realidade política do país, nunca vimos trabalhadores sindicalizados, promotores que agem por vaidade, juízes ignorantes, toda gama de personagens que povoam, enfim, o teatro real da nossa democracia.
Pois bem, num dos primeiros episódios, o personagem de Giamatti, o procurador-geral, vai atrás de um repórter, de moral duvidosa, para tentar arrancar dele uma informação. O repórter responde com uma bravata ética que soa imediatamente falsa aos ouvidos do procurador, que rebate ironicamente:
– Ué, você é Glenn Greenwald agora?
Ora, a ficção aí se mistura à realidade, como acontece o tempo inteiro na dramaturgia norte-americana, para retratar a admiração social pelo jornalista que enfrentou o Tio Sam e seu serviço secreto e revelou ao mundo os segredos sujos da NSA.
Na mesma hora, eu lembrei dos jornalistas da Globo, incluindo o até então gentil Jorge Pontual, correspondente em Nova York, ofendendo publicamente Glenn, com vocabulário de baixo calão, por causa das posições políticas e reportagens de Glenn contra o impeachment. Numa entrevista a uma rádio, dada há algumas semanas, Glenn chegou a dizer que, tendo viajado muito e conhecido a imprensa de vários países, jamais testemunhou uma imprensa tão mentirosa como a do Brasil.
A mídia brasileira, com objetivo de dar sustentação ao golpe, criou um universo paralelo, um mundo de mentiras, em que ninguém chamava (ou chama) o impeachment de golpe, não havia debates sobre o tema, nem manifestos, nem manifestações; e a presidenta foi absolutamente sabotada durante todo o processo.
Esse processo, no entanto, foi oneroso para a mídia. Jamais me esquecerei da perplexidade de alguns correspondentes estrangeiros, como o Alex Quadros, um jornalista norte-americano moderado, convencional, muito mais próximo do estilo tradicional da imprensa corporativa do que da blogosfera por exemplo (até porque era empregado da Bloomberg e sua missão era escrever sobre bilionários), sendo colocados no mesmo saco que os “blogs pró-Dilma”. Isso foi quase hilário.
Eles ficaram ofendidos, com razão, mas foi divertido assistir a ginástica da grande mídia, tentando pintar qualquer crítica ao impeachment como vindo de setores radicais e inconformados do “lulopetismo”.
Todos esses ridículos excessos da Globo acarretaram uma desmoralização histórica. E não adianta agora, em pleno 2016, as forças conservadoras inventarem formas desesperadas de bloquear a informação crítica, como o projeto de Escola sem Partido. O máximo que a Escola sem Partido fará é criar organizações secretas (coisa que nunca tivemos) para difusão de informações políticas “subversivas”, como ler poemas de Marighella ou os diários de Che Guevara. Será muito mais excitante para os alunos se a literatura política independente for criminalizada, porque aí ela terá o gostinho do fruto proibido.
Há uma dialética na vida que funciona como um anticorpo natural contra todos os tipos de autoritarismo. Esse é o materialismo dialético é que derrotará os dinossauros da nossa mídia corporativa.
Se prenderem o Lula, o que acontecerá? O próprio Lula respondeu, na coletiva que deu após o espetaculoso show dos procuradores de Curitiba num hotel de Brasília. O ex-presidente, emocionado, disse que não conseguia entender os objetivos do Ministério Público, pois eles não conseguiriam prender suas ideias.
De fato, a Lava Jato entra agora numa fase curiosa. As conspirações midiatico-judiciais que se iniciaram em 2005, com o escândalo do mensalão, prenderam uma grande quantidade de empresários e políticos. Eu os considero todos presos políticos, inclusive os publicitários e banqueiros presos no mensalão. Sempre achei que a esquerda errou ao não ver que era errado defender apenas uma ou outra liderança partidária. Todo o processo do mensalão e, agora, da Lava Jato, é corrompido. Os réus, publicitários, banqueiros, empreiteiros, políticos, doleiros, não são santos. Talvez tenham feito coisas ainda mais terríveis do que aquelas de que são acusados, mas o processo é viciado mesmo assim, tanto que as penas impostas a alguns deles são grotescamente desproporcionais. Algumas das penas são de décadas de regime fechado!
Não podemos subestimar a força da Lava Jato. Ela hoje representa, em sua essência mais cruel, mais brutal, o poder quase absolutista da casta jurídica, que é a casta jurídica, de longe, mais poderosa – e mais bem paga – do mundo inteiro.
Me parece claro que não dá para ser otimista. Estamos meio que condenados ainda a uma série de derrotas. Mas todas essas derrotas já começam a ter o gostinho antecipado da vitória, na medida em que são derrotas cada vez mais desmoralizantes para os vencedores, por causa das táticas sujas e truculentas que são cada vez mais obrigados a usar.
Derrubar as garantias constitucionais, ou seja, as liberdades políticas mais caras de um regime liberal, destruir grandes empresas nacionais, inclusive as maiores jóias da indústria brasileira, como a Odebrecht, apenas para prender Lula e criminalizar o PT?
O preço do golpe foi muito alto – e isso constitui uma derrota para eles. A partir de um momento, entenderam que não podiam mais recuar e foram em frente, gastando uma quantidade enorme de capital político e preparando, assim, o terreno para sua futura derrocada.
A desproporção entre os salários dentro do sistema nacional do funcionalismo público é um acinte ao espírito democrático. As diferenças entre os salários de um procurador e de um professor deveriam fazer corar de vergonha qualquer brasileiro, sobretudo porque não é assim no resto do mundo. Deveria haver muito mais equilíbrio no sistema, e são essas disparidades que estão por trás da crise política que vivemos hoje.
Deveríamos reduzir drasticamente salários e benefícios das castas jurídicas, políticos, etc, e aumentar o salário de professores, médicos, enfermeiros e engenheiros que trabalham para o Estado, sob salários de fome.
A contenção dos gastos estatais com a manutenção de um desembargador daria para melhorar a vida de uma centena de professores!
Câmaras de vereadores, a meu ver, poderiam ser extintas, sendo substituídas por conselhos de bairros sem custo para o Estado, mas com poder de revogar o mandato do prefeito e propor leis locais. Hoje, as câmaras de vereadores, assim como é a Câmara Federal, vivem de chantagear o poder executivo.
O Senado poderia ser extinto, acarretando outra grande economia para o Estado. Já basta uma Câmara Federal para vigiar o governo e reformar as leis.
Mas nada disso seria realmente necessário se fizéssemos uma reforma política, uma reforma tributária e, mais importante que tudo, uma reforma da mídia.
A esquerda terá de rever alguns dogmas, claro.
Por exemplo, é preciso que saibamos separar as demandas do alto funcionalismo público, em especial a casta jurídica, que traiu a sociedade com seu apoio ao impeachment, e as demandas do médio e baixo funcionalismo, que ainda enfrenta situações extremamente difíceis do ponto-de-vista salarial e das condições de trabalho.
Seja como for, os golpistas são tolos se pensam aprisionar a verdade. A economia não deslanchou. Temer e os políticos que apoiaram o golpe são escrachados sem dó em aeroportos, saguões, rua, etc.
Nenhum deles consegue viajar ao exterior sem que apareça um punhado de brasileiros dispostos a jogar na sua cara o que eles realmente são: usurpadores, que conspiraram abjetamente para derrubar uma presidenta honesta, provavelmente o presidente mais honesto que jamais tivemos, dando espaço para todos os tipos de tramoias neoliberais derrotadas em quatro eleições consecutivas.
Tudo isso tinha de acontecer, para que a nossa resistência se formasse, para que as nossas ideias pudessem ser batizadas novamente nas águas de uma oposição independente. Para que nossa capacidade de análise e luta continuasse a ser temperada no fogo das adversidades políticas.
O Brasil é grande demais, e a formação de núcleos cada vez mais fortes de oposição é um imperativo. A própria concentração de mídia asfixia o mercado brasileiro de publicidade na medida em que um percentual exagerado desses recursos são tragados pelo monopólio. Esse é o materialismo dialético a que eu me referi, e ao qual nenhum império escapa, nem a Globo: haverá interesses econômicos cada vez mais fortes em oposição à ela.