Uma antológica aula inaugural do prof. Luis Fernandes: porque o impeachment deve ser chamado, sim, de golpe

O Cafezinho tem a honra de publicar, até o momento com exclusividade, a aula inaugural do professor Luis Fernandes, um dos mais brilhantes cientistas políticos brasileiros, ministrada no dia 5 de setembro deste ano, para alunos do Instituto de Estudos Sociais e Políticos do Rio de Janeiro (Iesp).

Na aula, aqui transcrita, Luis Fernandes vai às raízes políticas e geopolíticas do impeachment, chamado por ele pelo nome correto da terminologia política: golpe. E ele explica porque.

***

Da Transição na Ordem Mundial à Ruptura na Ordem Democrática Nacional *

Luis Fernandes**

Quis o destino que esta conferência fosse proferida na sequência da consumação de grave ruptura na ordem democrática nacional que resultou no impeachment da Presidente Dilma Rousseff. As travessuras do fado me ajudam a situar esta traumática ruptura no contexto mais amplo das profundas e aceleradas transformações que marcam a evolução do sistema internacional neste início de século 21.

Os promotores, apoiadores e executores da ruptura consumada alegam que o processo não pode ser classificado de “golpe”, já que os ritos formais definidos pela Constituição e pelo Congresso estão sendo cumpridos, com acompanhamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Mas o mero cumprimento de ritos não confere legitimidade democrática ao processo. A própria experiência do golpe civil-militar deflagrado no Brasil em 1964 nos mostra isso com clareza. Na madrugada de dois de abril daquele ano, cumprindo o rito previsto, o Congresso se reuniu, com o beneplácito do Supremo, para consumar o golpe ao declarar a vacância da Presidência da República, já que o Presidente João Goulart estaria fora do país. Mas essa alegação era mero pretexto: o Presidente se encontrava em território nacional. Cumprindo o rito – a partir de uma alegação infundada – o presidente legítimo e democraticamente eleito foi destituído pelo Congresso, inaugurando um regime autoritário no país que durou duas décadas.

A palavra “golpe”, em português, tem variados significados. Um desses significados é o de “artimanha”. No rito congressual do impeachment, a artimanha se materializou na de ampliação e flexibilização da definição de “crimes de responsabilidade” para abarcar as chamadas “pedaladas fiscais” – práticas administrativas e orçamentárias recorrentes em sucessivos governos federais e em outras unidades da Federação – e, em seguida, empregar seletivamente esse “conceito ampliado” para cassar um mandato conferido soberanamente pelo eleitorado. A alegação de crime se torna mero subterfúgio para alcançar um objetivo político. Assim como em 1964, o cumprimento de rito formal, com conteúdo deturpado, não torna a ação de afastamento da Presidente legítima.

“Golpe” também pode significar “pancada” ou “abalo” decorrente de agressão. A gravidade do atual recurso ao instituto do impeachment reside no fato dele golpear (abalar/subverter) o princípio basilar da democracia representativa: a constituição de governos com base na soberania popular, expressa no sufrágio majoritário de cidadãos/eleitores. Em regimes parlamentaristas, esse princípio convive com a possibilidade de afastamento do chefe de governo e convocação de novas eleições gerais, via voto de não-confiança no Parlamento. Em regimes presidencialistas, como o nosso, o princípio exige o reconhecimento e respeito da autoridade legitimada pelas urnas durante todo o seu mandato, cabendo às oposições tentar conquistar maioria de votos no pleito seguinte para trocar o comando do governo.

Numa democracia jovem e ainda pouco consolidada como a brasileira, o risco que corremos é o da banalização do instituto do impeachment, transformado em recurso usual da disputa política para apear governantes que tenham perdido eventual maioria congressual. Em regime presidencialista, isso estimula nas oposições (quaisquer que elas sejam) posturas de desrespeito à legitimidade do mandato conferido pela soberania popular nas urnas, minando e ameaçando a estabilidade do sistema democrático. Neste, a revogação de um mandato conferido livremente pelo povo só deve ser admitida como recurso extremo em situações excepcionalíssimas, quando a própria ordem democrática estiver sob grave ameaça. Como sabemos, não era essa a base do processo votado no Congresso Nacional.
No sentido político mais usual, “golpe” também significa a ação de um bloco de atores para apear (ou tentar apear) outro bloco do poder, à margem dos processos eleitorais que devem reger a alternância de poder em regimes democráticos. De forma geral, esta ação para a alteração não-democrática (isto é, não ancorada na soberania popular expressa no voto) da composição do poder político visa abrir caminho para uma reorientação das políticas implementadas pelo grupo destituído, reorientação esta que teria dificuldade de obter apoio majoritário em processos eleitorais regulares.

Na ruptura institucional em curso no Brasil todas estas acepções do “golpe” se encontram e se fundem, ainda que o processo atual não reproduza a forma das intervenções e sublevações militares que tanto marcaram a nossa história no Século 20. Mas a ruptura institucional em curso não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Por isso é importante situá-la – e os processos análogos que se verificam em outras experiências sul e centro-americanas – no contexto da transição estrutural em curso no sistema internacional neste início de Século 21.

Desenvolvimento Desigual e Ordem Mundial

A evolução das relações de poder neste início de século apontam claramente para a transição do quadro de dominação unipolar que marcou o imediato pós-Guerra Fria no final do século passado, com a intensificação de tendências à multipolarização e à instabilidade no sistema internacional, fomentadas e alimentadas pela dinâmica de desenvolvimento desigual do capitalismo. Retomo, aqui, o conceito de “desenvolvimento desigual” formulado originalmente por Lênin a partir de reflexões de Hobson e Hilferding nos debates teóricos sobre a Economia Política do Imperialismo há um século, e retomado por estudiosos atuais da Economia Política das Relações Internacionais, como Robert Gilpin.

Contrariamente à interpretação que acabou predominando nos enfoques da chamada Teoria da Dependência latino-americana nos anos ’60 e ’70, inspirada por Andre Gunder Frank, o conceito de “desenvolvimento desigual” formulado no contexto do debate original sobre a natureza do imperialismo não aponta para o contínuo aprofundamento das assimetrias entre “centro” e “periferia” na economia capitalista mundial, mas precisamente para o seu contrário: a tendência estrutural à erosão do poder do centro hegemônico face à ascensão de novos polos de maior dinamismo econômico em áreas de desenvolvimento capitalista mais tardio no próprio centro ou na periferia do sistema.

Os estudiosos realistas das relações internacionais, como Paul Kennedy e o próprio Gilpin, associam esse fenômeno aos altos custos da manutenção da hegemonia e à tendência para uma rápida difusão tecnológica para a periferia, (em função das “vantagens do atraso” identificadas por Alexander Gerschenkron, que permitiriam aos retardatários queimar etapas de desenvolvimento ao incorporar técnicas mais avançadas e eficientes). Já a abordagem que Kenneth Waltz batizou de “paradigma Hobson/Lênin” destacava o impacto dos processos de monopolização, do advento do capital financeiro e da crescente financeirização dos circuitos de acumulação nos países capitalistas centrais, levando à multiplicação de investimentos e aplicações em áreas mais “atrasadas” da economia mundial onde as taxas de lucro e de retorno eram mais elevadas. Assim, os ganhos do capital financeiro, no coração do sistema, passaram a ser cada vez mais alimentados por uma lógica rentista, uma lógica de especulação sustentada por excedentes extraídos de atividades produtivas realizadas fora do centro. Essa dinâmica levaria à decomposição do dinamismo econômico do centro e à ascensão de novos polos de maior crescimento no sistema. Estes, por sua vez, passariam a se confrontar com estruturas geopolíticas de dominação e governança internacional que não refletiriam mais a configuração geoeconômica mundial. Ou seja, a dinâmica estrutural de desenvolvimento desigual mina continuamente as bases da ordem mundial estabelecida.

A erosão do poder hegemônico relativo das potências dominantes decorrente desta dinâmica estaria, assim, na origem da instabilidade, transição e mudança de sucessivas ordens mundiais. Emprego o conceito de “ordem mundial” aqui em sentido estrito, que remete a configurações relativamente estáveis e persistentes de poder no sistema internacional moderno – e não a variadas proposições de ordenamento civilizacional geradas ao longo da história humana, como concebido por Kissinger. Pela chave teórico-conceitual que emprego, três grandes “ordens mundiais” podem ser identificadas, a grosso modo, na evolução do sistema internacional moderno desde a sua consolidação na Paz de Vestefália de 1648. A primeira é uma ordem não hegemônica regida pelo mecanismo do “balanço de poder” das grandes potências em um sistema de abrangência basicamente europeia (com ramificações coloniais em outras regiões do planeta, sobretudo nas Américas). Em meio a agudas tensões e conflitos, esta ordem se estende até a derrota militar da ameaça sistêmica representada pela França napoleônica em 1815. A ordem mundial que emerge das guerras napoleônicas preserva o mecanismo do balanço de poder no teatro europeu, mas expande as fronteiras do sistema para todo o planeta através do poder hegemônico da Inglaterra (que, impulsionado pela conquistas da Revolução Industrial, solapa e desmantela ordens civilizacionais alternativas, sobretudo na Ásia). Esta ordem, marcada pelo que Polanyi chamou de “cem anos de paz” na Europa, entra em colapso com o advento da Primeira Guerra Mundial, em 1914, a que se segue um período de transição interrompido pela deflagração da Segunda Guerra Mundial, em 1939, período este examinado na obra clássica de E. H. Carr Vinte Anos de Crise. A nova ordem que emerge dos escombros da Segunda Guerra é de hegemonia contestada: a Guerra Fria. Por um lado, os Estados Unidos consolidam e afirmam a sua hegemonia sobre o mundo capitalista – formalizada e explicitada nos acordos de Bretton Woods -, e por outro, a União Soviética encabeça a formação de um sistema mundial socialista alternativo. Como bem observou Fred Halliday, a disputa no cerne desta ordem configurava um conflito intersistêmico, e não mera reedição do mecanismo do balanço de poder. No contexto do deslocamento das antigas potências coloniais europeias e do delicado equilíbrio alcançado no sistema de segurança coletiva da ONU na Guerra Fria, a própria forma de organização política em estados soberanos foi globalizada após sucessivas ondas de descolonização.

Como se sabe, a ordem mundial da Guerra Fria se encerrou em 1989 com a implosão do bloco soviético na Europa Central e do Leste, e subsequente desmantelamento da própria União Soviética e do sistema mundial alternativo que ela estruturava. O que se seguiu foi um período de transição no sistema internacional que perdura até hoje. A impressão inicial era de que configuraria rapidamente uma novíssima ordem, baseada no predomínio unipolar e inconteste da potência vencedora da Guerra Fria – os Estados Unidos – no sistema e nas suas instituições multilaterais de governança global. Esta impressão se traduzia em formulações como as do “fim da História”, do advento de uma “nova ordem mundial” ou, em chave mais crítica, de uma nova forma de “Império”. A esta fase na transição, que marcou os anos ’90, logo se seguiu outra, em que ficou evidente a crescente dificuldade dos EUA gerarem convergência em torno das suas posições e interesses nos fóruns multilaterais, ao que responderam com uma crescente disposição ao recurso a ações unilaterais de força para tentar afirmar esses mesmos posicionamentos e interesses. O marco da passagem para esta nova fase foi a reação empreendida pelos Estados Unidos aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, com a decretação da “Guerra Global ao Terror” e subsequentes invasões do Afeganistão e do Iraque.

A Transição em Curso na Ordem Mundial

Entendo que as chaves teóricas apresentadas acima são fundamentais para entender a transição em curso no sistema internacional, já que os processos de globalização financeira que marcaram a evolução do capitalismo nas últimas décadas intensificaram exponencialmente tanto os mecanismos de financeirização quanto a natureza especulativa/rentista da acumulação no coração do sistema. Neste contexto, a evolução do sistema internacional no início do Século 21 é marcado pela emergência de novos pólos de poder no mundo que não compunham o núcleo central do sistema internacional moderno que conquistou abrangência global no Século 19 (com destaque para a China e a Índia). A China que ainda encarna a particularidade de ser um estado socialista integrado à economia capitalista mundial – mais do triplicou sua participação relativa no PIB mundial medida por Paridade de Poder de Compra (PPC) a partir da deflagração da política das “Quatro Modernizações” em 1979, sustentando médias de crescimento próximas a 10% ao ano desde então. O próprio FMI, que previra que a China ultrapassaria os Estados Unidos em participação relativa no PIB mundial (PPC) em 2016, reconhece que esta ultrapassagem foi antecipada e teria se verificado em 2014. Já a Índia quase dobrou sua participação no PIB mundial (PPC) no mesmo período, com médias anuais de crescimento superiores a 6%. Como tive oportunidade de destacar em artigo recente, com delays variados, a evolução dos indicadores que se referem a dimensões cruciais da agregação de valor na era do conhecimento – produção científica e tecnológica medida por artigos publicados em revistas indexadas; registro de patentes; participação na lista de empresas detentoras dos maiores ativos globais; entre outros – caminha na mesma direção.

Na história da economia mundial moderna, a trajetória chinesa e indiana das últimas décadas em direção ao centro do sistema a partir da sua “periferia” só tem precedentes na ascensão dos próprios Estados Unidos e da Alemanha pós-unificação no Século 19. Ambos os países – a China e a Índia – se caracterizam, ainda, por possuir as maiores populações do planeta, extensões territoriais amplas, poderio militar nuclear, além de estruturas estatais de planejamento e regulação que não sucumbiram às pressões pela liberalização financeira e cambial durante a ofensiva neoliberal global dos anos ’80 e ’90.

Há que se destacar, também, a intensificação da atuação internacional da Rússia, sobretudo a partir da eleição de Putin, procurando retomar e reconstituir esferas de influência para enfrentar a política de cerco fomentada pelos Estados Unidos com a contínua expansão da OTAN para o leste. Após o colapso econômico e social provocado pelo processo de restauração do capitalismo, a Rússia procura reconstruir instrumentos estatais de planejamento, intervenção e regulação econômica, em parte herdados do período socialista. Nesta base, conseguiu recuperar o dinamismo da sua economia após a crise financeira de 1998 e alcançar, em 2007, o patamar de atividade econômica que possuía antes do colapso do socialismo em 1991 (embora tenha sido fortemente atingida pela queda dos preços do petróleo e do gás no mercado mundial na sequência da financeira deflagrada em 2008). Cabe lembrar que, como herança do esforço realizado para alcançar paridade estratégica com os EUA durante a Guerra Fria, a Rússia preserva, ainda hoje, o segundo maior arsenal nuclear do mundo – e manifesta uma disposição crescente para se contrapor à ofensiva norte-americana sobre suas antigas áreas de influência (como fica evidente no seu crescente envolvimento na crise da Síria, frustrando e derrotando a iniciativa dos Estados Unidos para forçar, via intervenção da OTAN, a derrubada do regime de Bashar Al-Assad e o triunfo das forças oposicionistas na Guerra Civil). Neste movimento, atua abertamente como potência energética, explorando os recursos de poder conferidos por suas gigantescas reservas de petróleo e gás para integrar sua área de influência na Ásia Central e explorar a dependência energética europeia.

A Viragem Progressista e a Agenda da Integração Latino-Americana

É no contexto desta tendência de decomposição estrutural da hegemonia dos Estados Unidos e crescente multipolarização do sistema internacional que se processou a viragem política progressista em grande parte da América Latina no começo do Século 21. Iniciada com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela no final de 1998 e de Ricardo Lagos (via Concertación Democrática) no Chile no final de 1999, seguida pela eleição de Lula no Brasil no final de 2002, essa viragem se materializou, em sequência, na eleição de governos de esquerda ou centro-esquerda na maior parte da América do Sul e parte da América Central (Argentina em 2003; Uruguai em 2005; Bolívia em 2006; Equador e Nicarágua em 2007; Paraguai em 2008; El Salvador em 2009; e Peru em 2011). Esta “onda progressista” sucedeu a três “ondas“ anteriores que marcaram a evolução política latino-americana na segunda metade do Século 20: a de ascensão de regimes militar-civis ditatoriais (nos anos ’60 e ’70); a de transição para regimes democráticos (nos anos ’70 e’80); e a que Perry Anderson designou de “virada continental em direção ao neoliberalismo” (nos anos ’80 e ’90).

Vale registrar que este novo ciclo político progressista no continente se constituiu e se desenvolveu no quadro mais geral de defensiva estratégica da esquerda no mundo. Este quadro de defensiva se inicia com o desmantelamento do campo socialista, que polarizava o sistema internacional até o final dos anos ’80 e cindia a economia mundial em sistemas globais opostos e antagônicos. O bloco socialista operava como força material no sistema internacional dando apoio diplomático, militar, político, econômico a movimentos progressistas e de libertação em todo o globo. Essa força galvanizava transformações progressistas em diferentes regiões do mundo, acelerando e aprofundando as suas agendas de mudança econômica e social. Evidentemente, o seu desmantelamento criou um quadro mais adverso para a atuação política e social das forças de esquerda no mundo. Na América Latina, no entanto, o impacto foi menor do que em outras regiões. Essa resiliência da esquerda brasileira e latino-americana se deve em grande medida, a meu ver, à legitimidade política e social que ela havia conquistado por ter assumido papel protagonista nos movimentos de resistência democrática no continente. No contexto dos processos de redemocratização, a imagem política das forças de esquerda se associou fortemente, aqui, à causa democrática, o que não era o caso da experiência – pelo menos mais recente – em outras regiões do mundo. Isso permitiu à esquerda latino-americana continuar acumulando forças na resistência e oposição à “virada liberal” que se processou em seguida.

Neste contexto mundial ainda marcado pela defensiva estratégica das forças de esquerda, a viragem progressista operada na América Latina no Século 21 se apoiou, de maneira geral, no prestígio político de fortes lideranças carismáticas e na formação de coalizões governamentais de centro-esquerda em regimes presidencialistas. Embora a eleição de Chávez na Venezuela tenha sido precursora do ciclo, foi o Brasil – dado o tamanho do seu território e população e o grau de desenvolvimento da sua economia – que se tornou pivô da sua consolidação e estruturação regional após a posse de Lula. Afinal, como próprio presidente Nixon confidenciou ao General Médici ao justificar o apoio dos EUA à ditadura civil-militar brasileira nos marcos da sua agenda de “contra-insurgência” continental no início dos anos ´70, “para onde o Brasil for, o resto da América Latina irá”.

Na ausência do antigo campo socialista, a orientação que predominou nas experiências dos governos progressistas na América Latina foi a da estruturação de novos projetos de desenvolvimento nacional, com políticas ativas de redistribuição de renda e redução de desigualdades. Apesar do impacto da crise econômica internacional nos últimos anos, os novos governos progressistas da América Latina conseguiram, de maneira geral, associar crescimento econômico e promoção da igualdade. Houve importante redução da desigualdade em praticamente todo o continente no período, materializada na redução de indicadores de concentração de renda medidos pelo índice Gini e na expansão de políticas públicas promotoras da inclusão e dos direitos sociais.

Ao mesmo tempo, esses governos fortaleceram variados processos de integração latino e sul americanos (MERCOSUL, UNASUL, CELAC, ALBA) rompendo com uma tradição secular de alinhamento automático com a política externa e os interesses estratégicos dos Estados Unidos na região. Basta lembrar que uma das primeiras consequências do novo ciclo político continental foi, precisamente, a implosão do projeto de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) patrocinado pela Casa Branca. Na sequência, se estruturou e consolidou, sob liderança brasileira, uma abrangente e ousada agenda de integração física e logística da América do Sul, materializada em variados projetos de infraestrutura. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) cumpriu papel central no financiamento dos projetos da integração física da América do Sul, no contexto do quais as grandes empresas de construção brasileiras desempenhavam função viabilizadora central. Estas se tornaram atores estratégicos tanto na estruturação de um novo projeto de desenvolvimento nacional para o Brasil quanto para os novos projetos de integração regional associados à viragem progressista continental.

A Agenda Externa dos Governos Lula e Dilma

A reorientação da política externa brasileira após a eleição do Presidente Lula apostou na diversificação das relações externas do país como melhor caminho para afirmar e defender o interesse nacional no contexto da transição em curso na ordem mundial, marcada por fortes tendências à multipolarização. Para além da agenda de integração sul e latino-americana já mencionada, esta reorientação se materializou na expansão de relações diplomáticas, econômicas e sociais com outros países em desenvolvimento na África, no Oriente Médio e na Ásia, orientadas para um novo padrão de cooperação Sul-Sul. Ela se expressou, igualmente, na estruturação de uma aliança estratégica com os novos polos em ascensão no sistema internacional, materializada na iniciativa de formação do grupo BRICS, abarcando Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.

Estes países têm trajetórias distintas, configurações institucionais distintas e projetos distintos de desenvolvimento, mas convergem para uma agenda comum de critica ao monopólio dos países capitalistas centrais nas estruturas de governança global, que não reflete mais a correlação de forças existente no mundo. É uma agenda crítica e reformista em relação à governança mundial que pretende, por um lado, reformar as instituições de governança multilateral no mundo ampliando a presença dos novos polos em ascensão nas suas estruturas deliberativas, e, por outro, criar novas instituições multilaterais de alcance global. A criação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS é uma expressão disto: um contraponto às instituições hegemonizadas pelas velhas potências em declínio, que tem se revelado cada vez mais incapazes de enfrentar os principais problemas que afligem o mundo e a própria crise econômica global no Século 21.

A orientação predominante na atuação dos países que integram a iniciativa BRICS é a de lutar por reformas na governança sistêmica global para melhor refletir, na sua institucionalidade, a nova correlação de forças no mundo. Não se trata de uma política de confrontação direta e global com os Estados Unidos, já que estes mantêm a sua superioridade bélica e sua hegemonia está em erosão, e não colapso. Mas para além da agenda reformista dos novos polos de poder, há movimentos geopolíticos de flanco importantes em curso, sobretudo por parte da Rússia e da China. Entre estes, eu destacaria, no contexto dos malogros militares norte-americanos na Ásia Central, a consolidação da Organização da Cooperação de Xangai, iniciativa de segurança que abarca (sem a participação dos EUA) a China, a Rússia, o Cazaquistão, o Quirquistão, o Tajiquistão e o Uzbequistão, e mais recentemente incorporou o Paquistão, a Índia, o Afeganistão e o Irã.

A reorientação da política externa brasileira foi acompanhada por uma evolução articulada e correlata na política de defesa, consolidada em sucessivas versões da “Política Nacional de Defesa” e da “Estratégia Nacional de Defesa” formuladas pelo Poder Executivo, via Ministério da Defesa, aprovadas pelo Congresso Nacional. Queria destacar três formulações que estruturam esse pensamento sobre defesa nacional.

A primeira é a estratégia de dissuasão. A experiência mundial no Pós-Guerra – incluindo o período Pós-Guerra Fria – revela que a superioridade de meios bélicos, por si só, é incapaz de assegurar triunfos militares. Países detentores de meios bélicos mais fracos, mas com capacidade dissuasória e de engajamento prolongado, lograram frustrar os objetivos políticos e militares de Estados mais poderosos ao minar a coesão interna destes em torno desses mesmos objetivos. Baseado nessa experiência, ao mesmo tempo em que se orienta para a solução pacífica e negociada de conflitos no âmbito do sistema multilateral de governança global, o Brasil deve buscar preservar capacidade estratégica dissuasória visando desencorajar eventuais tentativas de violação e/ou constrangimento da sua soberania, sobretudo levando em conta o aumento das pressões direcionadas a países em desenvolvimento detentores de recursos naturais e ativos estratégicos, como é o nosso caso. Esta capacidade se desdobra em projetos estratégicos das três Forças e no investimento na sua capacidade de operação sustentada. O cenário concebido, portanto, é de preparação para conflitos em que o Brasil se encontre em posição de inferioridade de poderio bélico. Isto desenha o cenário estratégico e define como o Brasil deve orientar e preparar a defesa do seu território e das suas riquezas.

A segunda formulação chave é o conceito de entorno estratégico. No que concerne aos países vizinhos do Brasil na América do Sul, na Bacia do Atlântico Sul, na Antártica, na África Austral e os países em desenvolvimento da Comunidade de Língua Portuguesa, a orientação formulada visa complementar as iniciativas de integração econômica e política com ações de cooperação na esfera militar. A ênfase maior recai, naturalmente, sobre a América do Sul e o Atlântico Sul, ambientes regionais no quais o Brasil está diretamente inserido. Aqui, a estratégia formulada é dar sequência ao processo de integração e cooperação com os países vizinhos inaugurado com o acordo nuclear entre Brasil e Argentina que dissipou desconfianças mútuas na área militar e viabilizou a construção do MERCOSUL e da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Na esfera da cooperação militar, o principal desafio é fortalecer e consolidar o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) como instância integradora de ações na área de Segurança e Defesa no subcontinente, para além da intensificação das ações de cooperação no âmbito da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e da Zona de Paz e Cooperação no Atlântico Sul (ZOPACAS).

A terceira orientação estratégica fundamental dessa política de defesa é a estruturação de uma base industrial-tecnológica de defesa nacional. Isto implica no enfrentamento e superação de barreiras impostas por regimes multilaterais ou unilaterais de cerceamento de transferência de tecnologia militar, que representam, na verdade, um apartheid tecnológico, porque qualquer tecnologia passível de utilização dual acaba por ter o seu acesso bloqueado. Isso afeta inúmeras áreas da nossa economia, não só a defesa. Exemplo disso é a tecnologia de sistemas inerciais, que guiam tanto veículos lançadores de satélites e submarinos para exploração de petróleo e gás em águas profundas. É uma tecnologia cuja transferência para o Brasil está bloqueada. A preservação da capacidade de defesa do país exige, portanto, investimento estratégico no desenvolvimento de tecnologias críticas cerceadas e na massificação da capacidade produtiva nacional. Para isso foi constituída uma Secretaria Nacional no Ministério da Defesa voltada para produtos de defesa, que se articulava com as políticas de apoio à inovação na indústria de defesa, apoiadas pelo BNDES e pela FINEP, que tive a honra de presidir.

A Agenda Externa dos EUA e a Contraofensiva Conservadora no Continente

Mais do que simples mudança de governo, a ruptura institucional consumada no Brasil visa reverter e inviabilizar o projeto de desenvolvimento nacional e regional que começou a ser estruturado a partir da eleição do governo Lula, bem como o movimento associado de reposicionamento estratégico do Brasil e da América do Sul no mundo. Ela se insere na ofensiva regional para desestabilizar os governos de esquerda e centro-esquerda que ascenderam ao poder na região nas duas ultimas décadas, que se traduziu na destituição dos presidentes democraticamente eleitos de Honduras (em 2009) e do Paraguai (em 2012 – neste caso, em processo de impeachment congressual, tal qual o Brasil); na sucessão de tentativas de golpe processados no contexto de aguda polarização político-social da Venezuela; no recurso a ações de aguda violência física extraparlamentar no Equador (em 2010) na Bolívia (que se estende até os dias de hoje); e nas derrotas eleitorais impostas aos governos do Chile (em 2010, revertida em 2013) da Argentina (em 2015) e do Peru (em 2016). Um elemento comum a esses variados processos de desestabilização é a forte instrumentalização, por parte de conglomerados monopolistas privados de comunicação e seus aliados políticos, da bandeira da corrupção econômica ou moral para desconstruir e deslegitimar as lideranças políticas carismáticas que encabeçaram o processo de mudança na região, procurando minar e dividir sua base de sustentação congressual e social.

Esta contraofensiva conservadora no continente – com recurso crescente a métodos e alternativas antidemocráticas – se relaciona à resposta dada pelas potências centrais, em particular os Estados Unidos, à erosão do seu poder hegemônico. Estudiosos das mudanças de ordens hegemônicas no sistema internacional indicam que, ao se deparar com o enfraquecimento do seu poder relativo na ordem mundial que encabeçam, as potências dominantes tendem a instrumentalizar unilateralmente os recursos de poder em que ainda tem prevalência, para tentar conter e/ou minar a consolidação de novos polos de poder no sistema (movimento que Robert Gilpin chama de passagem da “hegemonia benevolente” para a “hegemonia coercitiva”). Para além de variações de forma e de ênfase entre administrações republicanas e democratas, a evolução da política externa dos EUA nas duas últimas décadas é marcada pelo crescente recurso a ações unilaterais de força à margem das instituições multilaterais globais, como evidenciado nas desastradas intervenções no Afeganistão, no Iraque e na Líbia (além da frustrada escalada para intervenção na Síria), bem como no recurso intensivo a ações de “guerra cambial” (instrumentalizando o poder estrutural do dólar nos mercados globais) no contexto da crise econômica mundial deflagrada em 2007.

A consolidação mais recente desta orientação se encontra na Estratégia Militar Nacional 2015, elaborado pelo Estado Maior Conjunto das Forças Armadas dos Estados Unidos. Vale destacar que este documento oficial aponta que, mesmo na esfera militar, “vantagens competitivas mantidas pelos EUA por longo tempo estão hoje em xeque”. São identificadas duas ameaças principais à segurança dos Estados Unidos no contexto das rápidas mudanças em curso no cenário estratégico global. A primeira é a que o documento chama de “organizações extremistas violentas” (VEO na sigla em inglês), com destaque para o Estado Islâmico e para a Al Qaeda. Na sua origem, trata-se, na verdade, de organizações fomentadas e apoiadas pelos Estados Unidos no Oriente Médio para desestabilizar regimes considerados adversários (o regime pró-soviético do Afeganistão nos anos ’80 e os regimes seculares de orientação “anti-imperialista” – Iraque, Líbia e Síria – mais recentemente). Na medida em que passaram a alvejar, também, os EUA e seus aliados, foram classificadas como “extremistas”, “violentas” e “terroristas”. Mas segundo o próprio documento, as VEOs não constituem a principal ameaça à segurança dos Estados Unidos. A ameaça principal é a que o documento chama de “estados revisionistas”. Esta nomenclatura abarcaria os estados que procuram “revisar” aspectos cruciais dos processos e instituições que compõe a ordem mundial. Quatro países são explicitamente citados como integrantes desta categoria: Rússia, Irã, Coréia do Norte e China. No âmbito desta formulação, a mencionada agenda reformista dos países BRICs em relação às instituições e mecanismos de governança global passa a ser associada ao que a política de defesa dos EUA considera ser a “principal ameaça” à segurança do país.

A agenda externa dos Estados Unidos vem traduzindo essa formulação em ações, iniciativas e movimentos concretos. A política de cerco e contenção da Rússia se materializou na expansão da OTAN para países e regiões que integravam o antigo bloco soviético na Europa Central e do Leste, bem como em ações para desestabilizar e depor governos que mantenham relações mais próximas a Moscou, como ocorreu na Ucrânia deflagrando a guerra civil que se estende até hoje no país. Em relação à China, para além de tentar isolar e conter a sua liderança na Ásia através da constituição do Tratado Transpacífico (TPP na sigla em inglês), os Estados Unidos vem atiçando a intensificação das disputas territoriais no Mar da China, que já se tornou a principal rota comercial marítima do mundo suplantando em valor e volume de bens transportados a tradicional rota Roterdã Nova Iorque.

Neste contexto, não constitui surpresa o fato de atores e interesses importantes na formulação e execução da agenda externa dos EUA verem com bons olhos a contraofensiva conservadora em curso na América do Sul. No caso do Brasil, para além do esperado e protocolar reconhecimento do Governo Temer como governo “de fato”, o embaixador dos Estados Unidos no Conselho Permanente da OEA avançou para a defesa do processo de impeachment no país contra as críticas formuladas por outros países latino-americanos. Mas para além do apoio, até que ponto houve protagonismo de atores e interesses responsáveis pela agenda externa dos EUA nos processos de desestabilização dos governos progressistas na região, e no processo de ruptura institucional no Brasil em particular?
Na prolongada crise política da Venezuela, o envolvimento dos Estados Unidos é mais evidente. No caso da crise política brasileira, há indícios que já podem ser apontados, e que certamente serão complementados por informações colhidas após a liberação posterior de arquivos oficiais para pesquisa, como aconteceu no caso do golpe civil-militar de 1964. Um primeiro forte indício veio com as informações vazadas pelo Wikileaks do Julian Assange em 2013, a partir de informações obtidas por Edward Snowden, que revelaram que o governo brasileiro era um dos principais alvos dos sistemas de monitoramento de comunicações pelos órgãos de segurança dos Estados Unidos, em especial a Agência de Segurança Nacional (NSA). O volume e grau de espionagem eram equivalentes ao dirigido aos estados acima apontados como “grave ameaça à segurança” dos EUA, nomeadamente a Rússia e a China. Para além de altos dirigentes do Estado brasileiro – incluindo a própria Presidente da República – outra alvo prioritário do monitoramento era a Petrobras. Vazamentos mais recentes da Wikileaks revelaram encontros patrocinados pela Embaixada dos Estados Unidos entre empresas petrolíferas americanas e líderes da oposição de então no Brasil como o Senador José Serra do PSDB, em que este se compromete a alterar o regime de partilha na exploração do pré-sal caso viesse a ascender ao poder.

Um segundo indício remete às revelações do Wikileaks sobre relações de cooperação desenvolvidas por setores do judiciário, da Polícia Federal e do Ministério Público do Brasil com órgãos de segurança e investigação dos EUA ainda em 2009, visando integração de ações e treinamento no combate ao “financiamento do terrorismo”, em um momento em que as autoridades do governo brasileiro responsáveis por conduzir a agenda internacional do país não consideravam essa temática adequada ou relevante para a cooperação do Brasil com os Estados Unidos. O Juiz Sérgio Moro foi protagonista destacado na viabilização desta cooperação. O objetivo manifesto era identificar e minar sistemas de lavagem de dinheiro associados ao financiamento de grupos terroristas. Para tal, foram instituídos procedimentos para troca de informações e treinamento em “melhores práticas” para a sua obtenção e validação. Curitiba foi um dos centros selecionados para o treinamento continuado de forças tarefas nas referidas práticas.

Da “Guerra ao Terror” à “Guerra à Corrupção”

No caso da “Guerra Global ao Terror” deflagrada pelos EUA após os atentados de 11 de setembro de 2001, sabemos que isso significou fortes ataques e violações de direitos civis e humanos, a ponto de aceitar práticas de tortura para a obtenção de informações (desde que não praticadas contra cidadãos americanos). A lógica era de que os “fins” (combate ao terrorismo) justificavam os “meios” (restrição e violação de direitos individuais). A mesma lógica foi reproduzida na Operação Lava Jato, com outros “fins” (o combate à corrupção) justificando práticas violadoras de direitos e garantias individuais, como a prisão por tempo indeterminado de suspeitos até que estes firmassem acordos de delação confirmando as acusações dos investigadores; o vazamento seletivo e antecipado para os meios de comunicação de partes do processo de investigação para criar na opinião pública juízo condenatório de lideranças políticas e empresariais suspeitas (alimentando a campanha mediática para deslegitimar as principais lideranças do novo ciclo político no país); o vazamento de diálogos captados ilegalmente, inclusive da própria Presidente da República; a gravação ilegal de diálogos de advogados de defesa em pleno exercício profissional; a negação do princípio constitucional fundamental da presunção de inocência dos acusados; entre outros. Baseados na experiência americana, operadores da Lava Jato defendem abertamente, inclusive, que até mesmo provas ilícitas devem ser validadas em processos investigatórios quando obtidas “de boa fé”. Essas práticas, examinadas em chave weberiana, substituem a ética prudencial da política pela vontade punitiva de estratos do aparato estatal com função investigatória que atuam com autonomia quase ilimitada e, por não integrarem o sistema político formal, não tem de prestar contas pelas consequências dos seus atos. Como a possibilidade de algum grupo recorrer a ações terroristas é permanente, bem como o é o risco da malversação de recursos públicos por gestores desonestos, banaliza-se o uso seletivo e politicamente orientado de práticas e expedientes próprios de regimes de exceção: uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito, conquistado há tão pouco tempo – e a duras penas – no Brasil. Mas é mais do que isso.

Os principais alvos da operação, como se sabe, são justamente as empresas estatais e privadas que desempenharam papel estratégico e estruturante no novo projeto nacional de desenvolvimento que se gestava no país e nas iniciativas de integração física da América do Sul (com destaque para a Petrobras e as grandes empresas nacionais de construção de infraestrutura). Essas empresas – e as críticas cadeias de valor a elas associadas – foram cerceadas, estranguladas e inviabilizadas, contribuindo decisivamente para a crise econômica que se instalou no país a partir de 2015, o que alimentou, por sua vez, a crise política que resultou no impeachment. Ou seja, os prejuízos econômicos e sociais provocados pelos métodos adotados no “combate à corrupção” são incomparavelmente maiores e mais profundos do que os gerados pelos atos de corrupção em si. Há que se ver e comprovar, ainda, até que ponto informações fornecidas seletivamente pelo FBI e outros órgãos de investigação dos Estados Unidos contribuíram para este desfecho, atendendo objetivos mais amplos da agenda externa dos EUA. O fato é que as consequências econômicas e políticas da operação desestabilizaram não apenas o governo, mas todo o projeto nacional e regional de desenvolvimento e os seus atores estratégicos.

Isto não significa que, em nome da preservação desse projeto, devamos ser lenientes e permissivos com práticas de corrupção. O ponto é que o combate à corrupção não pode ser conduzido com base na violação de direitos e garantias individuais, e a punição dos dirigentes empresarias e políticos envolvidos no desvio e apropriação de recursos públicos não pode acarretar a paralisia e/ou inviabilização de empresas essenciais para o desenvolvimento do país. Vale registrar, como exemplo, a experiência da Alemanha na reconstrução do pós-guerra, que preservou e viabilizou empresas que haviam cultivado relações estreitas com o regime nazista e lucrado com atividades associadas ao trabalho forçado e ao extermínio (como a Bayer, Hugo Boss e Siemens, entre outras). As punições dos dirigentes envolvidos e as indenizações determinadas para a reparação das vítimas não inviabilizaram a continuidade da operação dessas empresas, consideradas atores fundamentais e estratégicos para a reconstrução econômica e o desenvolvimento da Alemanha.

Perspectivas Pós-Ruptura

A ruptura democrática em curso no Brasil configura-se, assim, como ruptura de um projeto de desenvolvimento, executada por um governo não sufragado pela soberania popular para exercer as funções que ocupa. Os anúncios iniciais do novo governo apontam para um retrocesso global, não apenas em relação ao projeto de desenvolvimento que começou a ser estruturado na última década, mas também em relação a conquistas sociais da Constituição de 1988 e da própria Revolução de 30. Anuncia-se o congelamento do patamar de investimentos em Saúde e Educação até 2037 (para garantir a transferência ilimitada de recursos da sociedade para o capital financeiro via dívida púbica); o desmonte das bases de proteção ao trabalhador sacramentadas na CLT (com a promoção da terceirização e o predomínio de acordos negociados sobre as garantias legais); a desvinculação da previdência do sistema de seguridade social (com perda de direitos de aposentadoria e da sua dimensão redistributiva); a retração dos bancos públicos (com reorientação da sua atuação para fomentar processos de privatização); entre outros. Não está claro, ainda, o que será efetivamente proposto ou implementado nesta agenda. Afloram as tensões e contradições na própria base do novo governo em relação a essas propostas, e a oposição da base social do governo deposto se rearticulou de forma rápida e contundente contra os novos rumos anunciados.

A dimensão em que a reorientação de rumos pelo novo governo avançou mais rapidamente foi na agenda externa, com o desmonte do papel de pivô da integração sul-americana exercido pelo país neste início de século. Sob a liderança de José Serra no Ministério das Relações Exteriores (MRE) foram abertos contenciosos diplomáticos com inúmeros vizinhos, configurando um retrocesso até mesmo em relação às iniciativas de aproximação e integração promovidas pelos governos Sarney, Itamar e FHC. Não está claro, ainda, qual será a posição do novo governo em relação à iniciativa BRICs. O governo dá sinais de que poderá enfraquecer a atuação do bloco, para privilegiar uma relação bilateral mais próxima com a China. De maneira geral, o que parece orientar a sua agenda externa é a retomada, em bases mais extremadas, da politica que marcou os anos FHC e que seu finado chanceler Luiz Felipe Lampreia cunhou de “autonomia pela integração”: a compreensão de que o melhor caminho para o país se se desenvolver é buscar nichos favoráveis em cadeias globais de valor comandados pelos centros ainda dominantes do sistema. Mas essa orientação não corresponde à profunda transição em curso na ordem mundial, examinada nesta conferência. Essa transição estrutural tende a minar – a médio e longo prazo – a agenda das forças internas e externas que provocaram a atual ruptura institucional no Brasil, o que abre caminhos políticos para a retomada do projeto de desenvolvimento nacional e regional interrompido, com a devida superação de erros e limitações da sua primeira etapa de implantação.

REFERÊNCIAS DE AUTORES E TEXTOS CITADOS

* Aula inaugural proferida no IESP/UERJ em 5 de setembro de 2016.

** Luis Fernandes é Doutor em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Georgetown nos Estados Unidos. É professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Suas atividades de pesquisa se concentram em temas de Economia Política das Relações Internacionais, com destaque para os desafios da inovação e do desenvolvimento na era do conhecimento, as transformações nos estados socialistas e exsocialistas, e a reconfiguração das relações de poder no sistema internacional pós-Guerra Fria. Exerceu distintas funções de gestão pública na área de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) no Brasil, entre as quais as de Secretário Executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e Diretor Científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.