Arpeggio – Coluna política diária
Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho
Justiça e Direito são coisas diferentes, segundo Hans Kelsen.
Eu venho mencionando Kelsen, clássico da literatura jurídica, sobretudo por sua Teoria Pura do Direito, mas também conhecido por seus ensaios sobre democracia, com alguma frequência, porque a gente precisa dançar conforme a música.
Desde que as conspirações midiático-judiciais se iniciaram, com muita força, a partir de 2005, durante o escândalo do mensalão, o Direito vem assumindo, maliciosamente, o lugar da política.
Então precisamos todos nos tornar juristas.
Afinal, a judicialização da política é uma jogada esperta das elites do dinheiro, e repete o sucesso obtido no campo da economia, até hoje um feudo de economistas e seus jargões acadêmicos.
Há muito tempo a imprensa brasileira trata as questões econômicas como um campo do conhecimento acessível apenas aos iniciados, de preferência formados em universidades americanas.
E agora, com a judicialização da política, a mesma elite transforma a democracia numa rixa de advogados, asfixiando e elitizando o debate de ideias.
Em economia, somos assaltados, há décadas, por juros altos cuja única justificação são argumentos bizantinos e incompreensíveis.
Poucos tem a coragem de afirmar uma verdade: que os técnicos do Banco Central não passam de atores bem pagos, que desempenham um papel para a mídia.
Nossas próprias lideranças de esquerda parecem olhar para os medalhões da economia e suas teorias como índios contemplando, basbaques, espelhinhos oferecidos pelos portugueses.
A mesma coisa se dá no campo do Direito.
As conspirações golpistas que tentaram transformar o mensalão num golpe jurídico foram vencidas (em parte, ao menos) pela política, em 2006, em 2010. Mas elas aprenderam com essas derrotas e reapareceram, em 2014, com estratégias bem mais sofisticadas.
O golpe jurídico se dá porque há dois tipos de lei. Há a lei presente na constituição, que é estática, um princípio, uma doutrina. E há a lei criada pelos operadores do direito, juízes, procuradores, policiais, que não apenas usam a norma jurídica para combater o crime: eles criam normas.
A lei, quando se converte em norma aplicada pelo operador de direito, é diferente daquela presente na Constituição, porque vem acrescida de uma interpretação que a transforma completamente.
Esse é um vício por enquanto insolúvel dos regimes democráticos. Eles tentaram fixar as leis no papel, em constituições tratadas como textos quase divinos, para fugir do arbítrio de priscas e violentas eras, nas quais a lei se confundia com a vontade de tiranos e seus vassalos. De fato, a situação melhorou quando as leis se fixaram.
Mas o mesmo problema permanece: aqueles que detêm o monopólio de interpretar as leis se tornam castas jurídicas dotadas de um poder terrivelmente arbitrário e antidemocrático.
Os parlamentares fazem e desfazem leis e, com isso, detêm um grande poder. Tanto poder que a doutrina democrática lhes impôs limitações severas: exercem mandatos temporários, em média de 4 anos, e devem ser eleitos pelo voto direto.
Juízes, procuradores, delegados, todavia, não sofrem nenhuma restrição de poder. Podem até se unir, numa “força-tarefa”, para que este poder se torne absoluto: o delegado entra com as armas, o procurador entra com teorias mirabolantes, o juiz manda prender quem ele desejar, quando ele desejar, sem precisar sequer apresentar um motivo plausível.
Esses operadores do direito, com ajuda da mídia, iludem a opinião pública: eles vendem a ideia de que estão aplicando a lei, quando tão somente eles criam uma nova lei, uma lei de exceção que só vale para o objetivo que eles pretendem atingir.
A excepcionalidade desta lei de ocasião a torna extremamente perigosa, desestabilizadora, terrível.
À sua sombra, não há democracia, não há prosperidade, não há justiça, não há paz. Ela não permite a vida.
Daí o caos jurídico, econômico, administrativo e político em que vivemos, no qual uns podem tudo e outros não podem nada.
Esses operadores do Direito são, essencialmente, adversários do povo, assim como as constituições, enquanto doutrina escrita, são as melhores amigas do povo.
Daí podemos dizer que os maiores adversários da lei, ironicamente, são os próprios juízes, porque são eles que a transformam, de um conjunto de normas criadas para promover justiça e igualdade, em regras arbitrárias usadas para perpetuar a injustiça e a desigualdade.
Eu pensei nisso ao me deparar com o ataque do ministro Teori Zavascki à defesa do presidente Lula.
A adesão do judiciário brasileiro ao golpe é sua face mais perversa, e a mais lógica.
O judiciário não é apenas o principal reduto das castas burocráticas, tradicionais cães de guarda da elite do dinheiro. É também o maior inimigo da lei, porque a perverte ao mesmo tempo em que posa de seu guardião!
Como assim Zavascki, ministro do Supremo, depois das inúmeras flagrantes ilegalidades cometidas por Sergio Moro, pela Lava Jato, pela mídia, além do golpe do impeachment, tem a cara de pau de falar que o presidente Lula está tentando “embaraçar apurações”?
Ora, o presidente Lula é a face mais vulnerável de todo esse imbróglio. Ele está virtualmente sozinho contra o Estado, a mídia e a opinião pública.
Lula não é mais presidente, nem servidor público, é notório que não exerce mais qualquer influência (a bem da verdade, não exercia nem quando era presidente) nos meios judiciais. Como pode embaraçar apurações apenas procurando se defender, como é direito de todo cidadão numa democracia?
Criminalizar o exercício sagrado de defesa é a degradação suprema a que a atmosfera golpista nos levou!
O golpe nos roubou as duas únicas liberdades políticas que tínhamos: o direito de escolher o governante e as garantias individuais contra os arbítrios do Estado.
Além disso, a que espécie de apuração Zavascki se refere? Apurações sobre um triplex que não é dele, sobre um sítio que não é dele, sobre pedalinhos de lata? Ou sobre a última palhaçada da Lava Jato: a suspeita de que a empregada doméstica roubou os aneis da patroa (a história dos presentes)?
O Direito, enquanto descansa olímpico, estático, no texto da lei, é uma coisa bela.
Quando ele se afasta do princípio e se converte em norma jurídica aplicada, ele se torna, porém, joguete em mãos de magistrados do Ancien Regime, de velhos patrícios romanos, dos eternos “donos” da lei. Ou seja, converte-se exatamente no contrário da justiça: numa ferramenta de opressão.
Entretanto, para isso também serve o golpe, para nos libertar do judiciário, dos procuradores, da polícia, tão mais expostos ao pior tipo de corrupção, mãe de todas as corrupções, o autoritarismo, quanto mais afastados do povo e de seus interesses.
A democracia é um regime onde o poder emana do povo, não dos operadores da lei.
O golpe nos obriga a voltar à origem popular das leis, a seus fundamentos profundos, ao conceito de lei enquanto norma voltada à justiça social e não arma dos poderosos – uma justiça que floresce não nos gabinetes ar-condicionados de gordos e vaidosos desembargadores e ministros das cortes superiores, mas nas manifestações populares, nas campanhas eleitorais, nos debates ideológicos e políticos que ocorrem nas redes sociais, nos blogs, e demais periferias da comunicação de massa.