Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.
Fotos: Mauro Restiffe
Como algumas das artistas brasileiras contemporâneas que vale acompanhar de perto, Juliana Perdigão trabalha em diversas frentes simultâneas. Prestes a lançar seu novo álbum, Ó (YB Music com patrocínio do Natura Musical, 2016) no Rio de Janeiro, esta mineira radicada em São Paulo reúne algumas habilidades dignas de nota: multi-intrumentista, toca clarineta, flauta, clarone e violão; como atriz, participou do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa; gravou seu primeiro disco solo, intitulado Álbum Desconhecido, em 2012; como instrumentista, tocou na banda de Tulipa Ruiz e em grupos como o Graveola e o Lixo Polifônico, Corta Jaca e Quatro na Roda. Como compositora, Juliana aposta naquilo que chama de “canção expandida”, seguindo o caminho de seus contemporâneos como Kiko Dinucci, Romulo Fróes e Negro Leo, todos presentes no disco.
Esta tendência exploratória que emerge em Ó representa uma guinada sonora e poética que se não a desloca propriamente de sua trajetória, abre caminho para outras possibilidades e experiências. Neste percurso povoado de parcerias, contextos e ideias, importante destacar a banda Os Kurva — formada por Rafael Montorfano (piano), Moita Mattosa (guitarra), Pedro Gongom (bateria), João Antunes (baixo) — e a produção de Rômulo Fróes, que além de adepto da “técnica caçamba de arranjo”, é também seu parceiro na composição “Fantasma”. Nas participações especiais, nada mais nada menos que Ná Ozzetti, Tulipa Ruiz e Zé Celso Martinez Corrêa.
No que diz respeito à pluralidade de timbres e estilos, assim como de interpretação e repertório, a música brasileira sempre afirmou sua vocação para o canto e, como não poderia deixar de ser, para a renovação de suas cantoras. O vasto repertório cancional serviu de base para que cultivássemos talentos irrepreensíveis na seara da interpretação vocal, variando do sopraníssimo de Dalva de Oliveira e Carmem Miranda, até o contralto de Clementina de Jesus e Jovelina Pérola Negra.
Houve, contudo, uma entresafra durante os anos 90, na qual a indústria passou a investir pesado em cantoras de extensão vocal soprano, adequadas ao repertório mediano e às necessidades da indústria que marcaram esse período. A segunda década do século XXI, com suas modulações plurais e diversidade arrancada à força pelo trânsito online, diversificou esse panorama, revelando outras timbragens e disposições para o exercício da interpretação.
Se antes as alternativas se restringiam à extensão vocal de Marisa Monte e Adriana Calcanhoto (com raríssimas exceções, como Cássia Eller), hoje há uma nítida retomada da diversificação do canto através do trabalho de Juçara Marçal, Ava Rocha, Alessandra Leão, Iara Rennó, Michelle Leão, Marcelle Motta, Tulipa Ruiz, entre outras. Não só reabriram o leque de timbres e inflexões, reabrindo assim o jogo, como também recusam a postura “prima donna” que se atribuiu por longas décadas às cantoras brasileiras.
Com seu canto que soa simultaneamente forte, doce e afirmativo, Juliana Perdigão é uma das expressões dessa espécie de retomada da diversidade, o que em parte se confirma em seu novo disco, como também na entrevista que ela concedeu ao Cafezinho. Em tempo: o disco Ó será lançado no Teatro Sergio Porto, na próxima quinta-feira, 08 de setembro, às 20:30.
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Juliana, conte um pouco de sua trajetória e principais influências. Não somente as musicais, claro.
Frequentei por anos o Festival de Inverno da UFMG que então acontecia em Ouro Preto. O festival era multiáreas, fiz oficina de música, teatro, literatura, artes visuais. Era julho inteiro de oficinas, aulas de manhã, de tarde e intensa fuleiragem noite adentro. Eu era adolescente e foi daí que abriu essa janela pra arte que me trouxe maior curiosidade e desejo de fazer. Na sequência comecei a cantar em grupo vocal, descolei um clarinete, comecei a ir em roda de choro. Nesse mesmo período em Belo Horizonte, havia um bocado de gente compondo canção e eu me envolvi com esse pessoal. E teve universidade, escola de música, várias bandas, integrei agremiações lítero-musicais de toda sorte, tocando e cantando. E depois em São Paulo, o Teat(r)o Oficina.
Você é uma cantora que também pensa arranjo e é instrumentista. Isso traz algum tipo de pré-disposição para o tipo de canção com a qual você vai trabalhar?
Minha principal motivação na canção é a palavra, isso é assim hoje, veio se transformando com o tempo. Quando comecei a cantar me seduziam melodias sinuosas, harmonias imprevisíveis e ritmos quebrados. Acho que ficou um pouco disso em mim mas hoje não é o principal. O fato de ser instrumentista talvez me aproxime do caminho em que vai o arranjo, vez ou outra já chego com uma idéia; ali pode ter um especial, nessa vou tocar flauta, na outra clarinete, violão. Tanto no meu primeiro disco, Álbum Desconhecido, quanto agora no Ó, os arranjos de base foram construídos coletivamente com a banda. No entanto, eu já tinha um desejo inicial de forma e sonoridade pra cada canção, em qual teria cordas, naipe de sopros, ou alguma instrumentação diferente que apontasse a direção de cada arranjo.
As duas vinhetas intituladas “Dúvida” mostram que seu trabalho com a palavra vai para além da letra de música. Você costuma escrever poesia? O que vem primeiro a melodia ou a palavra?
A palavra. Gosto de ler poesia. De vez em quando rabisco alguma coisa que vem na cabeça, sem nenhum propósito concreto. Esse lance das “Dúvidas” surgiram quase que num surto, fiquei três dias doente, de cama, em pleno carnaval, sem sair de casa. Um delírio momesco, motivado pela obstrução das vias aéreas. Entrei nessa viagem e fiz umas quarenta perguntas dessas. São situações em oposição, porém não passíveis de comparação. Idéias concatenadas que são como cenas: uma coisa vai levando a outra. Formam-se esses contextos nos quais a pergunta faz com que se queira escolher uma opção.
À medida em que escrevia, ia lendo em voz alta e gravando no celular. E, curiosamente, todas as gravações tinham 28 segundos de duração. Mandei algumas dessas gravações pro Romulo e ele, muito louco, falou na hora que a gente tinha que botar no disco. Dificilmente passaria pela minha cabeça ficar falando no meio do disco, isso foi coisa do Romulo, locão. Fiquei meio relutante à idéia mas depois fui gravar no celular o Zé cantando “AEIUO” e a gravação saiu com 28 segundos de duração. Achei cabalístico (risos), me rendi e foram pra bolacha os arquivos de áudios gravados no celular mesmo.
Em relação ao seu primeiro disco, Álbum Desconhecido (2012), este novo disco, Ó, apresenta uma paleta sonora e poética mais ampla. Qual foi a onda? Como foi o processo de construção do disco?
Interessante você dizer isso porque quando lancei o Álbum Desconhecido, achava que era um disco quase esquizofrênico no sentido de não ter um direcionamento estético muito definido. Ali tem marcha rancho com banda de coreto, rock tropicalista, tema instrumental progressivo, baião, cool jazz à la chet baker, afoxé bossanovado, samba com orquestra. Hoje continuo achando que é um disco que apresenta diferentes matizes, mas talvez em gêneros identificáveis, e mais diretamente ligados à tradição da música brasileira.
No Ó, a busca por estilo e gênero nem veio à tona, sinto que foi algo naturalmente implodido por nós — eu, Romulo e os Kurva — durante o processo de escolha de repertório e construção dos arranjos. Sinto que esse disco é mais áspero, ruidoso e aponta pra direções indefinidas. Romulo e eu havíamos nos encontrado pra conversar sobre o disco, a gente já tinha um escopo imaginado. Mas foi na pré-produção que fizemos com a banda, logo antes de entrar em estúdio, que as idéias foram tomando corpo. E principalmente no estúdio mesmo. Eu ficava zoando o Romulo que o lance dele era a “técnica caçamba” de arranjo: ele ia tacando tudo lá e depois ia ver o que fazer com aquilo. Doze canais de guitarra, piano, moog, hammond, rhodes, quarteto de cordas, tudo na mesma faixa, taca lá. A noção dele de música é meio plástica, maleável e totalmente ligada à idéia, ao conceito. “Maravilhosa concepa”: outra piada interna, quando vinha algo tipo “vamos cantar essa letra ao contrário agora?” Ou “deixa essa tosse aí que tá lindo”, esse tipo de coisa.
Foi um disco com pouca edição, base gravada ao vivo, com a mesma banda. Eu já vinha tocando com os Kurva (Moita, Chicão, Gongom e João Antunes) há um ano e meio e quando fomos gravar já tínhamos um som nosso. Inclusive gravamos várias canções que já estavam em nosso repertório, que gente já tocava em show.
E depois vieram os músicos convidados que deram um lindo grau no disco. Luca Raele tocou e fez arranjo; guitarras do Kiko Dinucci e Guilherme Held; arranjos de cordas do Marcelo Cabral; sopros do Thiago França; baixo do Mauricio Tagliari; baixo e violão do Gustavo Ruiz; Dudu Tsuda e seus teclados; cantaram Ná Ozzeti, Romulo Fróes e Tulipa Ruiz. Nesse disco também me arrisquei um pouco mais a compor, musiquei um poema da Ana Martins Marques, fragmentos de um poema do Haroldo de Campos, fiz música pra letra do Tagliari e pro Romulo escrever letra. Legal.
A onda acho que foi mesmo a vida. Os dias vão trazendo essa amplitude sonora e poética a qual você se refere, os encontros, novos léxicos, campos de interesse que vão se abrindo com tempo.
O repertório do disco tem Negro Leo, Romulo Fróes, Kiko Dinucci: como você percebe o tipo de canção que esses compositores que se afirmaram nos últimos 10 anos fazem?
Acho que Kiko, Romulo, Leo e vários compositores com os quais me relaciono e tenho afinidade tem por característica influências multirreferenciais em seus trabalhos. São conhecedores de um vasto repertório cancional, mas também mantém um diálogo intenso com o cinema, artes plásticas, teatro, literatura, performance. São pautados por diferentes tradições da canção brasileira e internacional e tem como busca comum o desejo de ir além em aspectos formais, sonoros, poéticos. A tal da canção expandida, talvez. Me vejo também nesse impulso. Como intérprete sinto que a busca é a mesma quando se vai escolher o que e de que maneira cantar.
*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).
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