Um comboio exótico

Tanques circulando nas ruas do Rio de Janeiro, concretizando a tomada do Governo pelos militares.

por Denise Assis

O dia 31 de abril de 1964 me pegou indo para o colégio, aos 10 anos, na cidade de Santos Dumont, interior de Minas Gerais, onde nasci. Tínhamos então um pouco mais de 20 mil habitantes, dois cinemas, uma praça arborizada e uma vidinha tranqüila, como todas as cidades interioranas. O inverno, que lá é rigoroso, ainda estava longe. Vivíamos o pleno outono, mas as manhãs já estavam mais fresquinhas. Naquele dia, o sol não apareceu, e o céu era nublado e feio.

Com minha pastinha de couro, rumei para o Grupo Escolar Vieira Marques, onde cursava a quarta série. Estava no último dos quatro anos do curso primário, como era então chamado o Ensino Fundamental. Ao final do ano tiraria o diploma e estaria apta a fazer o concurso de admissão para o Colégio São José, tradicional colégio de freiras onde estudavam as meninas bem nascidas.

Ia só, a passos largos, pois no início do ano tudo era novidade, e eu acabara de trocar de escola. Tinha medo e ansiedade, pois o ensino no Grupo Escolar era mais puxado, mas estava adorando a minha professora, a D. Neiva.

Lá chegando, porém, eu a encontrei em silêncio, na frente da turma. Formados na rua – o prédio original do Grupo escolar passava por uma reforma, por isto não havia pátio para o recreio ou para a formação das filas de entrada – aguardávamos o momento de irmos para as salas do prédio paroquial, improvisadas como salas de aula.

Estranhei que a diretora estivesse presente, pois normalmente costumávamos entrar sob o comando apenas das professoras. Com sua voz aguda e possante, D. Maria José Couri ordenou que fôssemos direto para a classe. Havia um informe a ser dado.

Os meninos, que normalmente eram ruidosos e costumavam trocar empurrões na fila, neste dia estavam quietos e sérios, talvez dada à gravidade que ecoou daquele aviso. Entramos sem barulho e ouvimos de D. Neiva o porquê de tamanho ritual. Em tom dramático, com a voz trêmula, ela nos disse:

“Por favor, voltem rápido para suas casas. O país vive um momento muito difícil. Estamos começando hoje uma guerra civil. Isso significa que irmãos brigarão com irmãos. É perigoso parar em qualquer lugar, pois não estamos livres de bombardeios. Peço que todos sigam retos, não parem nas ruas. Avisem para os seus pais sobre o que está acontecendo, para que eles também tomem cuidado. Um bom dia para todos. E, já sabem, direto para casa”, repisou, com a voz embargada. Vestia uma blusa de seda azul marinho e uma saia branca, com riscas no mesmo tom da blusa, o que lhe dava ainda um ar ainda mais severo.

Naquela época, poucas eram as casas que tinham televisão. Eram comuns os “televizinhos”, que iam pegar uma carona na programação dos aparelhos dos amigos. Em casa tínhamos uma TV da marca Semp, de pés palito, estalando de nova. A coqueluche do momento.

Íamos para a cama cedo, eu e a minha irmã, um ano mais velha. Uma vez por semana, porém, nosso pai nos deixava passar do horário. Era o dia da série Combate. Quanto ao meu irmão, por ter quatro anos menos, pegava logo no sono.

O seriado americano tinha como trama central o segundo pelotão da Companhia King, comandada pelo novato Tenente Hanley (Rick Jason) e pelo Sargento Saunders (Vic Morrow). A cada semana o episódio relatava uma aventura vivida pelos soldados nas batalhas da Segunda Guerra Mundial.

A série me deu noção dos horrores da guerra. Eram terríveis os bombardeios aéreos. O aviso de D. Neiva me remeteu imediatamente àquelas cenas acompanhadas da poltrona, no conforto do sofá e da manta quentinha.

Tal como Asterix, o personagem gaulês do desenho em quadrinhos, tive medo do céu cair sobre a minha cabeça. Atracada à minha pasta de couro, corri para casa a toda velocidade que pude.

Ao chegar à Praça Cesário Alvim, a principal da cidade, parei estarrecida na beira da calçada. O comércio havia cerrado as portas e as poucas pessoas que estavam na rua olhavam tão espantadas quanto eu, o desfilar ruidoso de caminhões do Exército lotados de sacos, vasilhames, armamentos.

Sentados sobre aquela bagagem bélica e até um tanto caótica, iam os soldados, de uniforme de campanha, rostos pintados de preto, galhos secos amarrados aos capacetes, empunhando metralhadoras que apontavam para nada, para a paisagem cinzenta que passava por eles.

Eram as tropas de Barbacena e de São João Del Rey – cidades próximas – que avançavam em direção a Juiz de Fora, onde se juntariam ao general Mourão Filho. Passaram por dentro da nossa cidade, para arregimentar a 4ª Companhia de Intendência, unidade do Exército, em Santos Dumont.

Sob o comando do general Mourão, as unidades militares desceriam para o Rio de Janeiro, onde pretendiam derrubar o presidente da república, João Goulart. Jango, como é sabido, estava hospedado no Palácio das Laranjeiras, residência oficial do presidente, quando de passagem pela cidade do Rio de Janeiro.

Cerrando fileira, logo atrás dos caminhões, vinham os tanques de guerra. Faziam um barulho enorme, como se de repente muitas pessoas ao mesmo tempo resolvessem arrastar correntes. Era um som metálico, seco, o das sapatas dos tanques esmagando lentamente os paralelepípedos da Avenida Getúlio Vargas.

Miúda para os meus 10 anos, de pé na calçada, via a cena ereta, como se me mexer fosse muito perigoso. Fiquei assim, esticadinha e atenta para não perder nada daquela visão inusitada. O meu campo de visão ia apenas até o meio das “rodas” que faziam mover os monstros verdes, com forte cheiro de óleo. Para ver os soldados, erguia os olhos, tomada pelo medo.

Impressionada com aquele desfile cheio de rangidos e ritmos totalmente fora do meu cotidiano, em dado momento olhei para o chão. Como nunca vira um tanque antes, não podia imaginar que eles rodavam movidos por uma enorme corrente, como a que havia na bicicleta do meu pai. Giravam subindo e descendo, um dente após o outro, como se eles fossem tragar o caminho por onde se moviam. Percebi estarrecida que aquele giro fazia o chão tremer e as pedras se empurrarem, igualzinho aos meninos na escola, quando se amontoavam na fila da entrada.

Fiquei ali, na beira da calçada, com a sensação de que algo havia me transportado para dentro da televisão, e eu estivesse participando de um episódio de Combate, esperando com o peito arfante de onde viria o primeiro estrondo, o primeiro tiro, a primeira bomba. Em seguida olhei para o céu. Não havia ruído de aviões. O único som era o daquele comboio exótico que se arrastava pelas ruas da cidade. Havia medo e espanto em todos os rostos. Talvez mais espanto, mas como definir, aos 10 anos, o turbilhão de sentimentos daquele momento?

Um desfile sem fanfarras

Não saberia dizer quanto tempo levou aquele desfile sem fanfarras, sem tambores, sem fogos de artifício, sem estudantes e sem palanque. Só sei que quando o último tanque virava no final da avenida, em direção à saída da cidade, para pegar a estrada rumo ao Rio de Janeiro – como se sabe, hoje, ser o destino deles – eu e as poucas testemunhas daquele momento ainda estávamos coladas ao chão, incrédulas. Os comerciantes levantaram novamente as portas dos seus estabelecimentos e retomaram o dia, enquanto o comboio serpenteava rumo ao golpe.

Demorei ainda alguns minutos para recomeçar a correr para casa. Agora as pernas já não tinham o mesmo vigor, a mesma agilidade. Estavam bambas, e quase se recusavam a obedecer à ordem de ir adiante, rápido, para fugir do perigo. Mas que perigo? Haveria mesmo uma guerra?

Na cabeça, porém, uma convicção: se ia ter uma guerra ela haveria de passar na televisão. E eu não a perderia por nada.

Por sorte, morava pertinho do Centro da Cidade, em um bairro típico de classe média. Nossa casa ainda cheirava à tinta, recém-pintada com os aumentos que meu pai, da Rede Ferroviária Federal, vinha obtendo do governo. À época, ele tinha uma boa colocação e nossa vida era confortável.

Cheguei gritando “mãanhêee!” E enquanto jogava a pasta de couro sobre a cama, no quarto, dava o recado de forma atropelada, sem muito cuidado. Minha mãe se agitou, queria detalhes. Logo de mim, uma criança!

Sem muitas informações, ela andava de um lado para o outro, dizendo coisas do tipo: “vamos ter que comprar comida e água para estocar. Não! Talvez fosse melhor ir para o sítio da tia Arminda” (a tia do meu pai, que morava a uns quinze quilômetros do perímetro urbano da cidade). Na cabeça da minha mãe, distante o suficiente do alcance das bombas!

Enquanto ela percorria a casa atarantada, eu me aboletei diante da televisão, pois sabia que nada seria resolvido sem que meu pai chegasse. Essa, pensei, era uma decisão importante demais para ser tomada assim, de uma hora para outra.

A vizinha, D. Ana, veio bater em busca de amparo. Aos prantos, contou que o filho mais velho, Elizeu, desceu com as tropas para um confronto que ela não sabia no que ia dar. Bateu em porta errada. A minha não era do tipo que tivesse equilíbrio para confortá-la nessas horas. Tinha medo de chuva, de trovões, de cachorros, mas tentou. Serviu café com bolo, e com isso parou um pouco de abrir e fechar armários jogando em malas as roupas e alimentos que encontrava à frente.

Dali a pouco chegou a tia Elza, com o marido. Ele estava na rua e vira também a movimentação das tropas. Preferia que ficássemos juntos. Tivéssemos, nós, que fugir para algum canto, melhor que fôssemos todos. Faltava o meu pai se juntar a nós, o que não tardou. Notícia em cidade pequena corre logo e o expediente, naquele dia 30, acabou mais cedo.

Enquanto o destino da família era discutido na copa, eu não arredei pé da sala, de frente da nossa Semp, pés-palito, que continuava com a sua programação normal. Nada de guerra.

As conversas passaram a ser feitas em tom de quase cochicho. Ninguém se importava comigo e meus dois irmãos. Neste dia dormimos tarde sem que nenhum adulto se opusesse, envolvidos que estavam em colar os ouvidos no rádio e discutir sobre os últimos acontecimentos.

Como eu previra, meu pai decidiu que ninguém iria para sítio algum. Não deveríamos nos preocupar, pois se algo mais grave acontecesse o melhor era ficar na cidade, que tinha mais recursos. No caso de bombardeios e confusão, aí sim, iríamos para o sítio. Foi o que ele resolveu. Com o meu total apoio interno. Vibrei. Assim poderia continuar acompanhando tudo, fosse o que fosse, pela televisão e o rádio. No sítio, só o rádio pegava. Não havia televisão.

O dia seguinte teve cara de domingo. Acordamos tarde. As aulas foram suspensas e não houve trabalho para nenhum membro da família. Por uma questão de prudência, em nossa cidade tudo parou.

Cedo voltei à TV, sintonizada no canal da TV-Rio, que agora tinha quase a função de rádio. Mantinha apenas uma câmera fixa voltada para a entrada principal do Forte de Copacabana, no Posto Seis, e lia informes sobre o deslocar das tropas e decisões tomadas entre os militares. A programação normal foi interrompida. A única coisa que fazia lembrar em que canal estávamos era a figura do boneco malandrinho atravessando a tela com o seu pandeiro ao som do gingle: “Fique na Rio, é o programa, fique na Rio…”

Um forte tomado a tapa

Em Santos Dumont, pegávamos apenas dois canais: a TV Tupi e a TV Rio. Naquele dia, apenas a TV Rio, vizinha do Forte, passava ao vivo toda a movimentação do entorno. Não existia o vídeotape, e a Rio levou vantagem em estar localizada ali.

Foi assim, guardada em casa e sentadinha no sofá da sala, que assisti a um dos episódios mais prosaicos do golpe militar de 1964. A tomada do Forte de Copacabana. A tapa.

A câmera focalizava a entrada, enquanto um locutor comentava o desenrolar dos fatos. As informações não eram muito precisas, mas as notícias giravam sobre a situação das tropas que se deslocavam e das novas adesões e negociações.

Em determinado momento, um carro preto, modelo Ford, estacionou diante de uma fileira de soldados que, postados na posição de descansar, fechavam a pista na entrada do Forte de Copacabana. Em traje civil, mais exatamente um terno escuro (como se sabe, a televisão nesta época só transmitia em preto e branco), o general Montanha (César Montanha de Sousa) caminhou para o centro da fileira de soldados. Ato contínuo arrancou a metralhadora do soldadinho que estava postado no meio da pista e, depois de lhe dar um tapa na cara, entrou com a arma na mão, apontada para baixo, como se estivesse conduzindo uma sacola de supermercado.

Foi o primeiro dos muitos tapas e atos de violência que aquele governo cometeria ao longo dos seus 21 anos de duração. E tudo se passou ali, diante dos meus olhos.

O general Montanha – guardei o nome porque era estranho para uma criança que alguém se chamasse assim – caminhava a passos largos, mas sem pressa. Entrou Forte adentro com firmeza e sem que nenhum dos soldadinhos postados na frente da unidade esboçasse nenhuma reação. Detalhe: todos estavam armados.

Em seguida, a televisão saiu do ar e nos restou o rádio, que passou a transmitir em tom ufanista as notícias das marchas e contramarchas de um golpe de estado que eles chamavam de “revolução”. Naquele dia esta palavra entrou para o meu vocabulário, até que eu descobrisse, mais tarde, seu verdadeiro significado: golpe.

Não houve a guerra, como a professora havia previsto. Não houve bombardeios, nem tampouco batalhas como as da série Combate, mas as notícias se alternavam entre adesões e prisões, que começaram a ser feitas naquela mesma tarde, em todo o país.

Os que eram filiados aos partidos simpatizantes do governo de João Goulart passaram a ser cassados e torturados como animais. A censura tirou do ar a Rádio Mayrink Veiga, por dar apoio ao presidente recém golpeado. Passamos a ouvir a Rádio Nacional, com entrevistas e comentários elogiosos aos generais que salvaram a pátria dos comunistas. Outra palavra cujo significado, àquela altura, eu ignorava. “São pessoas perigosas”, me disseram em casa, seguido do alerta: “e não se fala mais nisto”.

Uma das muitas perguntas que eu fazia era: onde estará o compadre Wilson? Deputado pelo PTB? Eram seus filhos as crianças com quem eu brincava nos finais de semana, quando ele estava na cidade, no casarão virado para a praça. Onde estava a Fatinha? O Zezé? O Francisco? E a filha mais velha, Dora Ilka, a minha madrinha? Eles costumavam almoçar lá em casa, aos domingos. Enquanto as crianças corriam os adultos colhiam as notícias da política, de Brasília, se empanturrando de vinho, macarronada e frango frito. “Nunca mais repita o nome deles”, foi a ordem que recebi. Engoli aquela ausência, o desaparecimento dos meus amiguinhos e a minha infância roubada.

Dali por diante, só meu pai e o meu tio Leopoldino podiam falar no nome do compadre Wilson, à noite, aos cochichos, depois do jantar. Os almoços de domingo continuaram tendo macarronada e frango frito, mas eram feitos em silêncio, sem o tempero da política e a companhia festiva da família Modesto Ribeiro. Nunca mais soube deles, até a anistia, em 1979, quando a família retornou da clandestinidade.

Só então soubemos que eles ficaram o tempo todo no país, como sitiantes, no interior do Nordeste. Conseguiram fugir da cidade de Santos Dumont, graças à ajuda de um médico influente e amigo, o Dr. Dionísio, que solicitou uma ambulância ao hospital, em plena madrugada, para atender a um “paciente agonizante”. O veículo, uma Kombi, pegou outro rumo. O deputado e sua família escapou da prisão e, sabe-se lá, da tortura. Porém, nada o livrou do banzo de viver isolado numa paisagem árida, de uma região que não era a sua. O deputado morreu por lá, de infarto, antes da anistia. Sua família voltou desfalcada, para Minas.

Como se sabe, durante uma geração inteira não se pôde ler, assistir ou cantar o que se desejava. Apenas o que os generais deixavam. Proibiram tudo, menos o sonho de se ser o que se quer. Tal como aquele comboio, eu transpus os morrinhos que cercaram a minha infância e vim ver de perto o horizonte aberto, com o mar que encontra o azul do céu onde a vista alcança.

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