Dilma, no Senado, escancarou a inexistência de motivos reais para condená-la, exceto o assalto ao poder para destruir a proteção da sociedade contra o mercado
por Saul Leblon, na Carta Maior
Um golpe não começa na véspera; nem define a sua sorte na manhã seguinte a do assalto ao poder.
A participação segura e serena, mas assertiva da Presidenta Dilma na sessão desta segunda-feira, no Senado, surpreendeu os que imaginavam jogar ali a pá de cal em seu mandato.
O que se viu, ao contrário, foi uma chefe de governo no perfeito domínio de suas atribuições.
Dilma Rousseff se agigantou.
Diante de senadores apequenados, a repetir irrelevâncias como subterfúgio, ela escancarou a inexistência de motivos reais para condená-la, exceto o cobiçado assalto ao poder, dos que foram rejeitados pelas urnas.
Longe de ser o fim, a tentativa conservadora de inocular prostração na resistência democrática, marcou ali uma etapa dentro de uma escalada.
Os recados explícitos nas manchetes preparatórias para o ‘desfecho’ frustrado são igualmente ilustrativos dessa progressão.
Faz parte da espiral calcificar um partido de trabalhadores, inviabilizar sua estrutura, reduzir a cinzas as principais lideranças.
A existência altiva de uma organização de trabalhadores constitui um freio inestimável às arremetidas da barbárie em qualquer época, em qualquer sociedade.
Daí o golpe dispensar à destruição do PT – de Dilma e Lula– uma centralidade equivalente a atribuída à revogação do direitos sociais e trabalhistas exigidos pelo mercado.
O seletivo afinco do juiz Moro em atender à primeira demanda é um requisito para viabilizar a segunda.
O estrago já produzido em direitos e garantias deve servir à reflexão de dirigentes do PT, mas também aos que desdenharam das consequências que a caçada acarretaria a todo o campo progressista.
O julgamento do impeachment, insista-se, é só um ponto da espiral regressiva em curso.
O golpe de 1964 levou quase cincos anos para encontrar um chão ‘institucional’ baseado no terror, na tortura e na censura.
O ‘1964 parlamentar’ de agora continuará distante do seu modus operandi, mesmo depois da votação final nesta 4ª feira (31/08), e por uma razão bastante forte.
A raiz da disputa não são obviamente as pedaladas. Mas, sim, a delicada reordenação do desenvolvimento brasileiro, em meio ao esgotamento da ordem neoliberal, o que requisita um poder de coordenação econômica, e de planejamento democrático, rechaçado pelos que sempre enxergaram no Estado a extensão de seus interesses privados.
O jogo, portanto, está em aberto, não sendo temerário prever como inevitável o aguçamento das contradições e dos conflitos no período que se abre.
Com um agravante.
Inabilitadas pela ruptura da legalidade, as instituições mediadoras, a exemplo de uma parte ostensiva do judiciário, estão reduzidas a coadjuvantes do assalto ao poder.
A predominar a lógica do golpe, a aliança da mídia com a escória e o dinheiro vai empurrar a nação para uma ‘noite de São Bartolomeu’.
O epíteto remete à jornada sangrenta de agosto de 1572, em Paris, quando milhares de protestantes, força política em ascensão, foram trucidados pela nobreza católica incrustrada na hierarquia da Igreja.
A matança religiosa escondia a disputa pelo poder na economia e na sociedade.
Após quatro derrotas presidenciais sucessivas, sendo a última, em outubro de 2014, com seu quadro supostamente mais palatável, as elites decidiram não esperar por um quinto revés para Lula, em 2018.
E abriram caminho para a sua ‘noite de São Bartolomeu’.
Fizeram-no, como se constata na escalada vertiginosa do cerco ao PT e do atropelo ao Estado de Direito, convictas de que só escavando um fosso profundo na ordem constitucional teriam o poder necessário para a demolição requerida.
Qual?
Aquela capaz de transformar a construção inconclusa de um Brasil para todos, na recondução da ordem e do progresso para os de sempre.
O golpe apunhala a democracia para atingir o interesse popular.
Não deixam dúvida os recados emitidos para lubrificar a simpatia dos mercados à borrasca.
Vem aí um vergalhão de privatizações de serviços essenciais, informou, domingo, o jornal O Globo, um porta-voz credenciado do assalto.
Em garrafais apoteóticas, o diário dos Marinhos avisa que de creches a prisões, passando por hospitais, saneamento, desapropriações, tudo no Brasil será entregue à gestão privada.
Um pouco mais adiante será a vez de aleijar a soberania nacional no pre-sal, descartando uma alavanca industrializante como anacronismo populista.
Assim sucessivamente.
O Sistema Único de Saúde será descarnado para abrir espaço ao ingresso dos planos populares no mercado; a universidade pública está na fila da guilhotina e os direitos trabalhistas da CLT não terão vida longa se na 4ª feira, 31/08, a votação do impeachment consumar a degradante obra de um congresso contra o povo.
Os acontecimentos em marcha vieram reafirmar a rigidez da fronteira onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado com o projeto de construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta.
‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo pode conceder sem mergulhar a economia em uma crise fiscal desestabilizadora’, martelou diuturnamente o jogral midiática, em todo o ciclo introdutório à ‘noite de São Bartolomeu’.
O mercado entendeu que a crise econômica global –diante da qual o governo esgotou o fôlego dos contrapesos fiscais em cinco anos em resistência– abriu a oportunidade para um acerto de contas.
E quer fazer o serviço completo.
Cortar o mal pela raiz significa estender a sanha regressiva à fonte da universalização de direitos, a Constituição Cidadã de 1988, da qual o PT se tornou o principal guardião
Ter um Estado que trata encargos sociais como estorvo do mercado, por mais que gere uma euforia inicial nos donos do dinheiro, não resolverá as grandes pendências nacionais emolduradas por um pano de fundo desafiador.
O mundo vive a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929.
E o que mais se evidencia dessa arrastada UTI é a falta que faz agora tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho no ciclo neoliberal anterior à explosão das subprimes, em 2008 – regulações, direitos, soberania, garantias trabalhistas, tributação da riqueza, salários dignos, indução pública do investimento etc.
Assim desprovida e descarnada, a economia global não decola. Ficções de livre comércio enfeitam essa cemitério da estagnação, em que o comércio forma um jogo de soma zero, apenas transferindo excedente de um país para outro.
Não só.
O golpismo midiático que critica a ‘irresponsabilidade fiscal petista’, omite a pressão global de gastos em uma crise que levou à queda vertical da receita, elevando de 78% para 105% a relação dívida pública/PIB nas economias mais ricas –ao mesmo tempo em que a participação dos salários no PIB global recuou: hoje é 10% inferior à média dos anos 80.
A conclusão é incontornável.
Falta investimento, falta demanda e emprego no capitalismo globalizado do século XXI. E é esse corner macroeconômico que o golpe quer mimetizar para barrar reformas e retificações de privilégios –tributários, entre eles– necessárias ao passo seguinte do crescimento nacional.
A resposta conservadora para o impasse é a ‘noite de São Bartolomeu’: vinte anos sem crescimento real nos gastos públicos, incluindo-se a escola e a saúde, o que num país jovem em expansão demográfica, significa na prática arrocho per capita por duas décadas em serviços essenciais.
Graças ao monopólio midiático, esse agendamento interditou o debate de uma delicada transição de ciclo econômico para a qual não existe solução fora da repactuação da sociedade.
A manipulação avaliza soluções que privilegiam os mercados, impõe uma verdadeira regressão civilizacional ao país, corrói aquilo que tão arduamente se reconquistou, a autoestima e o direito à esperança no futuro.
O que sobra?
Uma ruptura mais profunda do que a mera destituição de um Presidente da República.
De diferentes ângulos da economia e da democracia emergem avisos de saturação estrutural.
Um novo ciclo de desenvolvimento precisa ser construído. Quem o conduzirá: a democracia ou um regime de força?
Em 1964, a transição rural/urbana impulsionada pela ditadura militar criou uma irrepetível válvula de escape momentânea para as contradições violentas de uma sociedade que já não cabia no seu modelo anterior.
Mesmo com essa válvula de escape, a repressão do regime foi brutal.
Hoje não há fronteira geográfica ‘virgem’ para amortecer a panela de pressão da nova encruzilhada do desenvolvimento brasileiro.
As legiões que não cabem nele serão escorraçadas pela explosiva supressão de direitos que se anuncia, sendo atiradas a uma periferia constitucional coagidas a reagir de forma explosiva ou perecer.
Erra esfericamente também quem imaginar que esse estirão pode ser mitigado com a maciça entrega do que sobrou do patrimônio público, depois do governo do PSDB.
Privatizações concentram ainda mais a renda; definham adicionalmente o já enfraquecido poder indutor do investimento público, reduzem a receita do Estado. Radicalizam , enfim, o que o país mais precisa superar.
A reedição de um novo ‘1964’ em 2016 exigiria, ademais, uma octanagem fascista drasticamente superior à original, para prover o aparelho de Estado do poder de coerção necessário à devolução da pasta de dente que já escapou do tubo.
Não há uma terceira escolha.
Voltar às urnas na esteira de forte mobilização da sociedade; ou entregar a nação a uma ‘noite de São Bartolomeu’ de desdobramentos incontroláveis?
Essa é a disjuntiva.
A farsa do julgamento da Presidenta Dilma Rousseff, não vai muda-la, nem resolve-la.
Essa tarefa cabe à resistência democrática.
E ela terá que ser construída nas ruas, a partir de agora, com a firmeza e a determinação de uma desassombrada volta às origens, para forçar a elite a reconhecer o direito do povo ao país.