(Pintura: Thomas Agnew and Sons, 1892)
Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho
Esta é uma proposta de texto para Dilma ler diante dos senadores, e também uma carta aberta ao escritor cubano Leonardo Padura. Vou escrever na primeira pessoa, como se o autor fosse a própria presidenta, para lhe conferir um tom mais dramático.
Excelentíssimos senadores, respeitosamente me dirijo a vossas excelências para lhes apresentar, em pessoa, a minha defesa. Esta é minha última oportunidade de reverter este processo de impeachment. A única coisa que vos peço, portanto, é que me escutem com a atenção e a mente aberta.
Entretanto, não me dirijo somente aos senadores, mas a todos os brasileiros, e mesmo aos não-brasileiros, visto que uma agressão à democracia num país com nossa magnitude atinge, em verdade, o mundo inteiro. Gostaria de externar alguns pontos-de-vista que, em função de um processo midiático que muito se aparenta a campanhas fascistas de outros momentos históricos, têm encontrado enorme dificuldade para virem à luz.
Não irei abordar em meu discurso nenhum aspecto técnico do meu impeachment. Sobre isso, os debates foram exaustivos. Seria impossível negar que minha defesa apresentou argumentos e testemunhas bastante consistentes sobre minha inocência no campo do “crime de responsabilidade”. Tanto é que vários senadores vem admitindo, com frequência crescente, que não estou sendo removida da presidência por causa de nenhum crime, mas pelo “conjunto da obra”, e por um processo “político”.
Um eminente ministro do supremo tribunal federal chegou a viajar a Suécia para afirmar que havíamos nos tornado um parlamentarismo, que eu havia perdido o apoio no parlamento necessário para continuar à frente do governo, e que isso justificaria o impeachment.
Outro exemplo, mais recente: o senador Cristovam Buarque teve, dias atrás, um entrevero com um ex-eleitor nas redes sociais. O ex-eleitor, num acesso de irritação contra a postura pró-impeachment do parlamentar, disse que tinha vontade de devolver os livros de Buarque.
Reproduzo, textualmente, as palavras do eleitor:
Novamente honestamente não quero queimar nem jogar fora. Apenas devolver os livros q tenho.
O senador tentou rebater com uma pegadinha supostamente astuta:
você não pensou em queimá-los, em uma fogueira, como se fez em outros momentos na história? Nem pensou que sua filha possa pensar diferente de você, um dia? Abraço Cristovam. PS: Quando li sua mensagem, pensei que de fato é preciso o impeachment para impedir o obscurantismo.
Observe que o ex-eleitor não falou em queimar livros. Ao contrário, ele afirma: “não quero queimar nem jogar fora”.
O senador é que, em sua resposta, menciona o incêndio de livros, e ataca o ex-eleitor pondo-lhe na boca um argumento que ele – o eleitor – nunca falou. Numa estranha pirueta retórica, Buarque diz que a queima de livros é um obscurantismo que ele pretende combater através do impeachment.
Perdão, senador! O impeachment não é mais para punir a presidente da república pela prática de um crime de responsabilidade? Agora ele serve também para “impedir o obscurantismo”?
No dia em que eu tive a oportunidade de ler esse post, no Facebook de Cristovam Buarque, também me deparei com a notícia de que o governo Temer havia suspendido o programa nacional de combate ao analfabetismo.
Confesso, caro Cristovam, que não posso entender o pensamento de vossa excelência: obscurantismo não seria votar uma questão jurídica de suma gravidade usando tal argumento, tirado de um bate-boca na internet, e ainda por cima com um eleitor de vossa excelência que lhe escreveu um apelo desesperado para não votar pelo impeachment?
Mas não quero antagonizar com vossa excelência, até porque tenho a obrigação de buscar, até o último segundo, o voto de todos os senadores, então prefiro acreditar que estamos diante de mais um mal entendido, mais um que eu gostaria de esclarecer ainda nesse discurso que vossas excelências tão generosamente me permitiram fazer.
Eu apenas queria dar alguns exemplos – e poderia trazer aqui muitos outros – de manifestações, vindas das mais importantes autoridades, que desmerecem os aspectos jurídicos do impeachment, tratando-os como sem importância, e exaltam o seu aspecto político, lançando mão de qualquer argumento, mesmo os mais pueris e absurdos, para justificá-lo.
Excelentíssimos senadores, eu queria trazer a vocês uma história do Antigo Testamento, conhecida como Daniel na cova dos leões. Antes de prosseguir, porém, e para evitar que algumas sobrancelhas se ergam desconfiadas, esclareço que não pretendo compará-los aos leões. Isso não é mérito nem desmérito aos senadores porque, de qualquer forma, os leões não são os vilões dessa história.
A história de Daniel, em resumo, é a seguinte. Dario, rei da Pérsia, havia entregue o comando de seu imenso império para uma centena de príncipes, os quais, por sua vez, deveriam responder a três presidentes. Um dos presidentes era Daniel, um hebraico temente a Deus, a quem costumava orar três vezes ao dia.
Então o mesmo Daniel sobrepujou a estes presidentes e príncipes; porque nele havia um espírito excelente; e o rei pensava constituí-lo sobre todo o reino.
Tem início uma crise política, movida pelo ódio dos “príncipes” contra um hebraico de origem simples que havia se tornado mais popular que todos eles e poderia se tornar o presidente único, indicado pelo Rei, de todo o império persa.
Os golpistas de então começam a vasculhar a vida e os atos de Daniel, em busca de alguma falha que pudessem usar para convencer o Rei a depô-lo.
Não encontram nada.
(…) mas não podiam achar ocasião ou culpa alguma; porque ele era fiel, e não se achava nele nenhum erro nem culpa. Então estes homens disseram: Nunca acharemos ocasião alguma contra este Daniel, se não a acharmos contra ele na lei do seu Deus.
O que fazem os intrigantes? Qual maliciosos ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), inventam um crime que até então nunca existira, criado especialmente para pegar Daniel: eles convencem o rei a baixar uma lei pela qual qualquer um que fizesse uma petição a um deus ou a um homem que não a ele, Dario, seria lançado na cova dos leões.
Baixada a lei, os golpistas dizem ao rei que Daniel continua rezando três vezes a seu Deus, e que, portanto, deveria sofrer o castigo.
Pois bem, senhores. Aqui estou eu, presidenta da república do meu país, dentro da cova dos leões. Os leões, repito, não são vocês, senadores. Os leões são animais inocentes, ferozes por instituto natural, não por cobiça ou qualquer outro vício. Tanto é que os leões poupam Daniel.
Quando o Rei volta ao buraco onde deixara Daniel trancado junto às feras, e encontra-o intacto, ele fica tão impressionado que decide pela inocência de Daniel. Os intrigantes, por sua vez, são lançados todos na cova, onde são imediatamente estraçalhados pelos animais.
Uso esta metáfora para comparar os leões à história.
A história, assim como os leões da bíblia, poupará os milhares e milhares de brasileiros e estrangeiros que lutaram contra esse golpe, e será impiedosa com todos aqueles que o apoiaram, por ressentimento, vileza de espírito, interesses escusos, ou simplesmente por acreditarem numa tramoia costurada pelas castas burocráticas e mídia.
E por falar naqueles que lutam contra o golpe, eu também gostaria de usar esta tribuna para fazer um agradecimento especial ao escritor cubano Leonardo Padura, que escreveu um artigo belíssimo contra o impeachment, publicado no blog O Cafezinho. Em nome dele, agradeço a todos os artistas e intelectuais do Brasil e do mundo inteiro, pessoas que vivem de suas ideias e sonhos, e que, por isso mesmo, tem uma imensa capacidade de sentir a dor silenciosa de todo um país.
Eu gostaria de comentar dois ou três pontos do artigo de Padura.
Um deles é a questão da dor.
Padura repete que os acontecimentos no Brasil lhe provocam imensa dor. Dor por assistir a uma presidenta eleita pelo povo de seu país, uma presidenta que tocou um projeto que beneficiou milhões de pessoas, ser removida num processo sobre o qual se lançam tantas suspeitas.
No início de seu texto, o escritor quase se desculpa por se intrometer em assuntos da política brasileira. Padura diz que não pode mais conter sua dor e indignação, apensar de entender que apenas aquele que vive no Brasil, que sofre aqui, poderá descrever, com inteira legitimidade, sobre a nossa situação política.
Creio firmemente que para ter uma ideia de uma sociedade determinada e atrever-se a expressá-la publicamente é preciso ser parte dela, não como observador e sim como participante. Mais ainda, como sofrente.
Não concordo inteiramente, querido Padura. Tudo que acontece no mundo, seja qual for o seu país, deveria interessar o homem. E o que nós, brasileiros, pedimos é apenas que nos ajudem a quebrar o império da mentira.
Nos dias de hoje, estamos tão reféns de instituições transtornadas pelo golpismo, tão desamparados, tão órfãos de estruturas políticas realmente democráticas, compromissadas com o interesse da maioria da população, que sentimos necessidade de sermos vistos e ouvidos por olhos estrangeiros. Precisamos de mais espelhos, que não aqueles distorcidos da mídia nativa, para vermos a nós mesmos.
Temos recebido, por essa razão, com imenso alívio, reportagens da imprensa internacional que quebram o discurso golpista único da nossa imprensa monopolizada.
Mas concordo que somos nós, os “sofrentes”, é que temos de assumir a vanguarda da luta contra o golpe.
Diante dessa dor profunda que atravessa milhares de quilômetros e atinge até mesmo um escritor de sucesso em Cuba, um intelectual que, em virtude de seu esforço e sacrifício, não precisa mais se preocupar com mais nada, como negar que esta mesma dor que atinge, em seu grau máximo, milhões de brasileiros?
No entanto, a nossa grande mídia, intoxicada pelo fácil sucesso de seu banditismo, finge não ver essa dor. Os correspondentes da Globo em Brasília aparecem rindo ao lado dos senadores pró-impeachment.
Os comentaristas de TV estão eufóricos.
Entendemos que as empresas privadas têm opinião e interesses próprios. O que nos choca é o sadismo, vindo sobretudo de concessões públicas, que sempre ganharam bilhões e bilhões de recursos do Estado, e essa indiferença chocante em relação à dor de milhões de brasileiros que assistem seu voto, sua campanha, sua energia, seus sacrifícios, serem jogados no lixo.
Sentimos dor também porque nos sentimos humilhados, despersonificados.
A grande mídia trata um setor social inteiro, com toda a sua imensa diversidade, complexidade, profundidade, como “setores petistas”, “blogs petistas”, movimentos sociais petistas”.
Não importa para eles se as pessoas não tem qualquer vínculo com o Partido dos Trabalhadores (e se tem, qual o problema?).
É como se, de repente, um pedaço enorme do tecido social não tivesse mais direitos: sua opinião não é respeitada, seu voto não vale.
O novo governo anuncia, com orgulho, que fará uma devassa nos aparelhos do Estado para caçar e demitir “petistas” ou “simpatizantes”. Essas manifestações explícitas de fascismo, assim como tantas outras (depredação de partidos políticos e sindicatos), não são criticadas pelas concessões públicas de TV, únicos instrumentos que poderiam, de fato, produzir uma campanha eficaz contra esse tipo de sectarismo irracional, que está literalmente desmontando a máquina pública. Mas não o fazem, e com isso estimulam o avanço de um autoritarismo de tipo reacionário, que visa proteger os interesses da elite dominante e retirar direitos das classes subalternas.
O escritor cubano, ao final de seu artigo, arrisca-se a comentar a questão da culpabilidade do crime de que me acusam. Diz Padura:
“Enquanto o processo contra a presidenta constitucional Dilma Rousseff avança em seus labirintos, o que mais me interessa saber, como o espectador interessado que sou, é se realmente a mandatária cometeu os pecados que se lhe atribuem. Como muitas pessoas no mundo, espero que ela não os tenha cometido, pelo bem do Brasil e da verdade. “
O comentário de Padura toca, sem querer, em algumas questões jurídicas centrais. Em primeiro lugar, ele fala sobre seu interesse, quase ansiedade, para saber se a presidenta do Brasil cometeu mesmo algum crime de responsabilidade fiscal, e acrescenta, logo em seguida, que “como muitas pessoas no mundo, espero que ela não os tenha cometido”.
Ora, aí temos uma situação interessante do ponto-de-vista da política, do Direito, e da História. Assim como Padura “espera que ela [Dilma] não os tenha cometido [os crimes de responsabilidade fiscal]”, temos, no Brasil, poderosos setores políticos que tem a esperança contrária: esperam que eu seja culpada. Quer dizer, não só esperam: trabalham com afinco para que eu seja culpada. A tal ponto que chegam a culpar-me por assinar decretos que eles tornaram ilegais meses depois de eu tê-los assinado. É uma situação absurda, evidentemente. O sujeito olha a placa de trânsito que sinaliza velocidade máxima de 50 km por hora e daí dirige, com todo o cuidado, sem jamais ultrapassar os 50 km por hora. Chega em casa e confere o código de trânsito atualizado, apenas para confirmar: de fato, naquela rua a velocidade máxima era 50 km por hora.
Seis meses depois, o Detran muda as regras e a velocidade máxima naquela rua passa a ser 45 km por hora, e emite uma multa retroativa contra aquele motorista por ter passado dos limites e dirigido, seis meses atrás, a 50 km por hora!
A opinião de Padura, portanto, é sinal de que a história está farejando uma grande injustiça. Os elementos estão todos aí: a dor, essa dor profunda que os homens sentem quando pressentem um arbítrio; a dúvida, essa enorme dúvida que rói os corações quando eles intuem que há excessos, desvios, mentiras, em processos de acusação demasiadamente brutais e seguros de si; a esperança, que ele enfatiza ao final, de que haverá justiça de uma forma ou de outra, ou seja, que as violências criminosas cometidas contra a democracia brasileira sejam julgadas com o mesmo vigor com que eu, Dilma Rousseff, fui.
Muito se fala em julgamento da história. De fato, a vitória na história é a única esperança dos derrotados. Derrotados não pelas urnas, é bom lembrar, pois eu, Dilma Rousseff, ganhei todas eleições de que participei. Refiro-me à derrota imposta por um processo político baseado numa violentíssima campanha, orquestrada por setores golpistas incrustados em posições estratégicas do Estado e mídia. É uma derrota, de qualquer forma, e tanto mais dura por ser injusta, e por ter usado métodos escusos e por sabotar o processo democrático.
Os nobres senadores e mesmo setores da mídia já demonstram preocupação com o processo histórico, como se vê, por exemplo, por discursos e matérias que tentam agredir ou restringir o trabalho de documentaristas que registram o julgamento do impeachment.
Não podemos esquecer que esse golpe é sobretudo um golpe contra o nordeste e contra os pobres, que votaram em massa em nosso projeto.
Não podemos esquecer igualmente que o nordeste jamais cresceu, em toda a sua história, tanto como nos últimos 13 anos. É claro que isso se transformará, em algum momento, num movimento muito forte contra o golpe e seus desdobramentos políticos.
Esses fatos são já a História.
Que tipo de país, por exemplo, inicia uma perseguição tão virulenta, cretina, mau caráter contra um indivíduo que, ao sair da presidência há alguns anos, detinha uma aprovação popular olímpica, perto de 90%? Que tipo de país é capaz de levar adiante uma violência simbólica e política tão grande, de perseguir até mesmo a esposa desse indivíduo, mesmo sabendo que foi ele o principal responsável por um processo de elevação de renda das classes mais humildes que raramente o mundo assistiu?
Eu quero falar também sobre os meus erros.
Eu, Dilma Rousseff, errei sim, muitas vezes, repetidamente.
E não vou me refugiar na desculpa fácil de que sou humana e, portanto, erro.
Errei sim e não há desculpas.
Nomeei um ministro da Fazenda, Joaquim Levy, que trabalhou contra a economia nacional.
Escolhi um vice que era informante da CIA e depois se tornou conspirador contra meu governo.
Não levei adiante uma política criativa, democrática e inteligente de comunicação. Aliás, neste sentido, fui positivamente estúpida, talvez porque não tenha nunca levado à sério o que todos me alertavam, inclusive representantes da ONU, de que a informação é um direito humano e uma necessidade vital para o regime democrático.
Pior ainda: tive medo de fazer o debate sobre a questão da mídia. Tive medo de falar e tive medo de ouvir e estudar sobre o assunto.
Errei também ao não promover um debate sobre Direito. Cedi ao punitivismo mais rasteiro. Durante meus governos, o campo punitivista – a direita penal retrógrada – avançou, com meu apoio. Foram aprovadas leis que ajudaram a lotar nossas prisões de cidadãos sem sentença. Aprovei iniciativas como a lei da delação premiada, sem discutir com os juristas do campo progressista, que sempre foram contra ela. Eles me alertariam que a lei da delação, tal como foi aprovada, apenas transferia um poder imenso ao ministério público, um poder infinito para conspirar e inventar narrativas de acusação. Nomeei ministros do Supremo covardes, que não demoraram a se submeter aos interesses dos poderosos da mídia.
Tudo que aprovei no campo do Direito veio da pressão de setores conservadores que me odiavam. Tanto que, assim que as novas leis foram aprovadas, esses mesmos setores passaram a usar os novos instrumentos de repressão exclusivamente contra o campo progressista, contra o meu próprio governo, contra mim mesma!
Prezados senadores e senadoras, muita fofoca foi dita sobre o meu comportamento agressivo com subordinados. Admito que não talvez não seja mesmo uma santa, mas vossas excelências terão de admitir que jamais defendi qualquer tipo de violência. Sempre vim à público, nos momentos mais tensos que qualquer presidente tenha enfrentado, defender a paz, o equilíbrio, a harmonia e a democracia.
Meus ministros da justiça, com todos seus defeitos, jamais diriam o que disse o atual ministro interino, de que temos pesquisa demais e poucas armas.
Meu governo jamais discriminou ninguém. Governadores de oposição recebiam tantos recursos quanto aqueles da base aliada. Órgãos de mídia alinhados à oposição recebiam muito mais dinheiro em publicidade do que aqueles com os quais o governo tinha mais afinidade política. As acusações que sempre pesaram contra mim, neste sentido, era de ser republicana demais.
À luz do que faz o atual governo interino, perseguindo abertamente blogs com os quais não sente afinidade, sob aplausos da imprensa plutocrática, sinto-me tentada da concordar que, realmente, fui republicana demais – e isso foi um erro justamente porque o excesso, em diversas coisas, leva a seu contrário. Ao ser republicana demais, acabei por me tornar, na prática, republicana de menos.
Os erros políticos na montagem do meu segundo governo, sem promover nenhum diálogo com os movimentos e os setores que me dariam a sustentação política que me permitiria governar, me levaram até onde estamos agora.
Quantas vezes os movimentos sociais, os blogueiros, me alertaram sobre a cretinice de entregar a política econômica a um mercadista neoliberal como Levy? E que isso apenas resultaria em esvaziamento político do governo, que perderia apoio das bases, perdendo as condições de ganhar qualquer batalha na opinião pública ou no parlamento e, com isso, cavaria sua própria cova? Inúmeras, incontáveis vezes!
Mea culpa, mea culpa, mea culpa!
Os senhores hão de admitir, porém, que eu estava disposta a mudar. O ministro da Fazenda foi substituído e, aos poucos, começou-se a desenhar um processo de recuperação econômica no horizonte.
Mas aí precisamos falar sério sobre dois fatores interligados que impediram completamente a criação de um ambiente político minimamente estável: a Lava Jato, uma investigação que, rapidamente, assumiu, numa parceria espúria e promíscua com a mídia, uma agenda abertamente política, visando derrubar meu governo.
Não vou repetir aqui platitudes contra a corrupção. Todos somos contra a corrupção, e até mesmo os senadores que mais demonstram hostilidade contra minha pessoa, não tem coragem de admitir que eu esteja envolvida em qualquer ato de corrupção. Saio do governo tão leve como entrei, sem ter acumulado nenhum bem.
Mas é evidente que há corrupção no Estado, nas estatais, nas instituições, no meu governo. Eu lutei, nós lutamos, contra essa corrupção. Os nossos governos foram os primeiros a implementar sistemas de transparência dos gastos públicos, que ajudaram muitas autoridades a encontrar desvios.
Já falei aqui dos exageros punitivos que eu, quase como um desafio a meus adversários, tentando provar infantilmente minha sinceridade na luta contra a corrupção, deixei que fossem aprovados, sem debate, durante minha gestão.
Entretanto, o que vemos acontecer no Brasil não é mais um processo de combate à corrupção, e sim um movimento de vingança política, tocado por autoridades movidas por uma clara agenda partidária. Uma série de garantias legais estão sendo desprezadas, às vezes mesmo vilipendiadas publicamente por aqueles mesmo que deveriam ser seus maiores guardiões.
E daí entramos na questão da mídia. A mídia corporativa, até então decadente em função de tantas inovações tecnológicas, de repente voltou ao centro do poder político, quando estabeleceu parceria – a Lava Jato a defende como “estratégia contra o crime” – com setores repressivos do Estado.
O Brasil hoje, caros senadores, tem cinco poderes. Temos o Legislativo, o Executivo, o Judiciário – os três clássicos poderes oficializados em nossa Constituição – e também o Ministério Público e a grande mídia. Esses dois últimos já podem ser considerados poderes independentes.
Não quero negar a realidade. Se o Ministério Público e a grande mídia se tornaram poderes de fato, não adianta pretender que eles não o são. Precisamos, portanto, impor-lhes os mesmos freios e contrapesos que atuam – ou deveriam atuar – em todos os outros poderes. Precisamos de regulamentação democrática para o Ministério Público, que não pode permitir o surgimento de núcleos de conspiração golpista e perseguição política, de tendências autoritárias e fascistas.
E precismos de regulamentação democrática para a mídia, visto que um país com 205 milhões de habitantes não pode continuar refém de uma única visão política. Há regiões inteiras do Brasil em que o único sinal de TV é da Globo. É evidente que isso provoca uma distorção brutal no processo democrático.
O Brasil precisará escolher se prefere a democracia ou a Globo.
Na verdade, a concentração da mídia, como se dá no Brasil, é um entrave não apenas cultural e político, mas também econômico. Os canais de publicidade estão asfixiados pelo monopólio. Se o cidadão brasileiro for à Holanda, potência industrial, verá que, em cada região, restaurantes e bares locais podem fazer publicidade na TV, porque existem tvs locais com boa audiência. Aqui, não. Na Alemanha, outra potência industrial, berço do capitalismo europeu, a tv pública é onde se faz o principal jornalismo do país: o que permite, evidentemente, um elevado grau de estabilidade política. A tv pública alemã é elogiada por todos os espectros ideológicos: comunistas, socialistas, verdes e capitalistas defendem-na e elogiam sua importância para o sistema democrático do país.
Queria endereçar algumas palavras ao povo brasileiro, em especial aos milhões de cidadãos que foram às ruas, não apenas no Brasil, mas em várias cidades do mundo, para defender o meu mandato presidencial, mesmo não aprovando o meu governo.
Sei que o momento é duro, e não tenho ilusões de que enfrentaremos ainda momentos muito difíceis nos próximos anos. Há um aspecto que torna esse golpe mais doloroso do que o de 1964. Em 1964, também houve uma construção paulatina na opinião pública de um sentimento hostil a políticas de cunho popular. Empresários e serviços estrangeiros investiram em think tanks e jornais para defender ideias e atacar o governo. Investigações contra corrupção também foram manipuladas, transformando-se em conspirações políticas.
Mesmo assim, como o golpe foi sobretudo militar, ele aconteceu meio que de repente. Houve pouco tempo para sofrer. A cirurgia promovida pelas elites econômicas para remover o órgão democrático foi rápida e, por isso mesmo, quase indolor. A dor veio depois, quando começamos a dar falta daquele órgão.
No caso atual, porém, as mesmas elites, os mesmos donos de jornal, as mesmas castas burocráticas, dão um golpe mais sofisticado, sem militares. O corpo democrático encontra-se como que deitado num leito de CTI, paralisado politicamente pelas conspirações midiático-judiciais, enquanto os golpistas fazem uma cirurgia sem pressa, sem anestesia. Simultaneamente, organizam um teatro midiático, um circo, um simulacro de julgamento, mímicas vazias emulando o rito democrático, para enganar a opinião pública.
Em 1964, conforme o blogueiro Miguel do Rosário escreveu, João Goulart era um presidente que chegara ao poder com 5 milhões de votos. Eu cheguei lá duas vezes, com 54 milhões de votos na última eleição.
É evidente que arrancar o voto de 54 milhões de eleitores é infinitamente mais doloroso que fazê-lo em 5 milhões de eleitores.
Não tenho como dizer a todos vocês, que hoje sofrem com essa violência contra a democracia, com este odioso assalto ao voto, que não sofram.
Infelizmente, a história do nosso país nos legou mais um desafio, talvez o maior de toda a nossa história, uma vez que jamais testemunhamos um movimento fascista tão entranhado no Estado e, dessa vez, num Estado de grande porte, não mais na pequena, frágil, desorganizada máquina estatal da década de 60.
No entanto, também jamais testemunhamos, em nossa história, uma sociedade tão mobilizada. Em todas as periferias, geográficas, políticas, culturais, midiáticas, desse imenso, misterioso, Brasil, organizam-se sociedades, criam-se novos movimentos, discute-se estratégias de resistência democrática.
A luta contra o golpe que empreendemos nos últimos dois anos, para tentar não chegarmos até o dia de hoje, quando os senhores senadores enfim decidirão pelo meu afastamento definitivo, ou não, foi épica, no mesmo estilo épico da vitória eleitoral de 2014.
Aprendemos com a luta e aprenderemos também com uma eventual derrota na votação do Senado, assim como aprenderíamos ainda mais com uma vitória surpreendente nesta Casa.
Como presidenta eleita do país onde nasci, estudei, lutei, amei e tive filhos, eu quero dizer uma coisa ao povo brasileiro.
Eu vos respeito e vos amo profundamente, em todos os seus momentos, mesmo aqueles de fraqueza e hesitação.
Respeito o seu silêncio misterioso, tímido, sua resistência calada, como quem espreita, cuidadoso, o momento certo de contra-atacar.
Em minha vida, já experimentei derrotas e vitórias. Em alguns momentos, a derrota era tão acachapante que parecia ser a única realidade, o único horizonte. Mas também foram tantas e tão emocionantes vitórias!
Por isso eu vos digo, queridos brasileiros e queridas brasileiras: com suas intrigas intermináveis, os golpistas nos lançaram dentro da cova dos leões, mas serão eles que serão devorados.
O ódio infinito que eles – os golpistas – direcionam contra nós, do campo progressista, esse ódio irracional, que flerta com a insanidade, o fascismo, o patético, tem uma explicação: no fundo, eles sabem que a história nos pertence, porque não é verdade que a história seja escrita pelos vencedores. A história é escrita pelos que nunca pararam de lutar, pelos que resistem, pelos que precisam lutar porque a luta, para eles, não é um hobby, mas uma necessidade de sobrevivência, de soberania, de existência.
Com o golpe, eles nos deram uma bandeira de resistência que tremulará por muito tempo no horizonte de nossas utopias. Tiraremos todas as armas mentais que tínhamos guardado no armário e voltaremos às ruas, às ruas físicas e às ruas espirituais. Iremos recuperar a nossa democracia, corrigir todos os estragos e retrocessos que eles tentarão nos impor. Estamos muito mais experientes e fortes do que em 1954, 1964 e quando vencemos novamente as forças da reação, em 2002.
Quando voltarmos, seremos mais numerosos, mais decididos, mais astutos.
E a nossa vitória, isso é bom lembrar, não se inicia quando a esquerda voltar ao poder. A nossa vitória terá início quando a esquerda voltar a lutar.
Votem contra o impeachment, senadores!
Ou então, aguentem as consequências, porque o poder político é necessariamente transitório. Todo o mal que vocês fizerem, toda a violência que promoverem, apenas apressará o seu fim.
Saudações democráticas a todos!