Não há mais palavras para descrever a situação do Brasil, milhões já foram escritas por articulistas, jornalistas, acadêmicos e outros mostrando surpresa e incredulidade, dando suas versões, explicações e perspectivas para o futuro. Nada é capaz de nos chocar mais e tudo está dentro dos planos da farsa que vivemos.
Não nos abalam mais cálculos, vazamentos articulados que saem nas horas certas, veiculados em dias combinados para que seja tudo engolido pela parte da população que quer acreditar nessas maquinações, pois para quem quiser abrir os olhos, já está tudo escancaradamente explícito.
Já nem se importam mais em trazer – a isso que chamam de notícias – qualquer tipo de credibilidade, comparando os alegados R$2 milhões de favores feitos a Lula, com as dezenas e centenas de milhões (contabilizados em dólares) dos outros, cujas denúncias não ficam mais de meio dia nas páginas dos jornalões.
Fomos muito bem preparados: a acachapante lavagem cerebral começou no dia em que se descobriu o tal do mensalão – um fenômeno que a história virá, um dia, nos revelar o que foi. O que é certo, é que são mais de dez anos do PT como o “Partido Mais Corrupto da História do Brasil”.
Não é pouco tempo: uma geração toda se tornou adulta e não tem experiência de outra coisa que não os governos do PT e as imagens passadas da administração petista. Geração essa que não tem ideia do significado do passado recente. Meu sobrinho, por exemplo, muito politizado, não sabia da existência das greves do ABC. Em outras palavras, muitos não conhecem que Lula é mais do que o “Mais Corrupto Presidente que Este País Já Teve”.
Dez anos, não é pouco, cansa. Dez anos de GloboNews vomitando pessimismo, dez anos de capas escandalosas de Vejas e Istoés, dez anos de Folhas anunciando vazamentos, de Estadões martelando opiniões e – talvez mais importante – dez anos em que o noticiário policialesco-judicial tomou o lugar de reportagens sobre políticas públicas. Tenho certeza que mais pessoas sabem enumerar os 11 ministros do supremo do que conhecem os titulares das principais pastas do executivo, seja deste governo ilegítimo ou das gestões de Dilma ou Lula.
Não é à toa que os leitores e espectadores da nossa tão educada classe média já não veem a hora de tudo isso acabar para tocar suas vidas, já que não serão em nada afetados pelo desmantelamento das políticas sociais. Por isso não têm interesse em saber se o principal vilão não é o PT, e que os ‘Interinos’ têm até doutorado em vilania. Já não veem a hora do juízo final onde o bem vence o mal, e todos os nós se atam em apenas dois capítulos para, finalmente, passarmos à novela seguinte.
Por isso, o indiciamento do Lula vem junto com o julgamento final do impeachment e a conclusão da Lava-Jato: todos os nós serão atados nos dois últimos capítulos da novela, é claro.
Não é que a Globo e seus comparsas do cartel midiático queiram só controlar os caminhos do país, fazer fantoches e destruir heróis. Não, o objetivo é até mais simples: ‘novelizar’ a realidade política. Destruir a complexidade de ideias (pois o povo, coitado, tão burro, não seria capaz de entender) e interpretar os fatos em fofocas sobre quem disse o quê, para quem, estabelecendo relações promíscuas entre os personagens.
Porém, ainda assim, não está tudo perdido. Por alguma razão o PT se manteve no governo por mais de dez anos. Apesar de não divulgadas e debatidas, pelo menos algumas políticas públicas tiveram um grau de êxito e o Brasil não é mais o mesmo.
Uma nova geração surge aberta à política, sensíveis às questões de raça, gênero, sexualidade e até classe. Uma geração de negros que não mais aceita a posição de inferioridade na sociedade. Uma geração de mulheres que não se submete ao machismo passivamente e novas gerações LGBT que não têm vergonha de serem o que são e não querem passar a vida dentro do armário. Toda uma geração de indivíduos que acreditam na igualdade, no direito de ter e participar igualmente de uma sociedade ainda extremamente desigual.
Apesar de surtir efeitos práticos, o PT errou em sua narrativa e a consequência disso foi que, em termos de participação política, no seu auge, o PT só levou à apatia e ao descaso, não se preocupou em formar novos atores. Não trouxe novas concepções que não fosse a inserção e total submissão ao consumo. A ideia geral era incluir a população na sociedade como ela é, sem conscientizá-la ou alertá-la para os problemas inerentes da sociedade capitalista, que inevitavelmente acabam florescendo.
É verdade que a mobilização dos jovens começou antes das tramas do impeachment, já em 2013. Mas, graças aos golpistas e suas desprezíveis táticas, alimentaram ainda mais a nascente politização, e em vez de deixar a todos alienados e estonteados, conseguiram consolidar o interesse desta geração de jovens para a política. E isso, o governo Temer – e qualquer outro que nos seja imposto não-democraticamente depois do impeachment – não conseguirá extinguir.
Além de reacionário, em seus 100 dias, este governo se mostrou retrógrado e repressivo e, assim, só pode fomentar a reação de atores que não foram ‘criados’ para ser subservientes, como mostrou o filme ‘Que horas ela volta’ de Anna Muylaert.
Em outras palavras, misturando Sérgio Buarque de Holanda com Freyre, o homem cordial brasileiro, aquele que nasceu da miscigenação para se acomodar às situações e conseguir as coisas individualmente através da malandragem, é o fruto da cultura e não do caráter. Tem mais a ver com a educação do que com a genética. E as coisas estão mudando, mas cedo ou mais tarde, o povo brasileiro reagirá.
Está mais do que claro que o impeachment é inevitável – e este será o momento mais ignóbil de nossa história recente -, mas o Brasil de 2016 não é o mesmo de 1964 e por mais que tentem, a história não se repetirá. Temos uma sociedade civil infinitamente mais consciente e capaz.
A resistência inclusive pode ser definida em números. Algo em torno de 12%-25% da população, que não se rendeu aos abusos, às falsas retóricas da mídia. Pessoas críticas e inteligentes que sabem ler as entrelinhas, pessoas bem acompanhadas de artistas e acadêmicos. Pessoas que não se compram e não se vendem.
Porém, o que é realmente triste, o que me inspira mais do que nada a continuar lutando contra o desmoronamento de nossa democracia, o que traz urgência às ações, o que impele à negação de um também visível conformismo e a tristeza de ver muitos jogarem a toalha agora, é de não deixar que a outra geração – aquela que lutou em 66, em 76, e que impulsionou o renascimento da nossa democracia em 86 – não deixem esta Terra desolados ao ver o resultado concreto de toda uma vida e trajetória de luta jogado no lixo da história.
Podem ter sido poucos os que lutaram por nós nos anos 60 e 70, muito mais numerosos foram os que se juntaram à luta nos anos 80. Alguns já se foram, e não tiveram o desprazer de ver esta reviravolta da nossa democracia. Para alguns, a saúde os ajudará a ver dias novos, mas outros talvez não alcançarão ver um desfecho melhor para o Brasil.
Temo pelo retrocesso, pelos direitos que já estão ameaçados. Temo fazer permanente um Ministro da Saúde cujos interesses particulares estão pondo em perigo o ainda tão jovem SUS. Temo deixar a Educação nas mãos de alguém que não entende a diferença entre política e politicagem. Temo ter um Ministro da Justiça que acha que justiça se faz com armas.
Mas mais do que isso, me dói pensar que algumas daquelas pessoas – algumas conhecidas outras não – que lutaram e deram de tudo para a democracia do Brasil, aqueles que passaram a vida sonhando, planejando e participando para trazer mais justiça social ao nosso povo – possam não ver o ressurgimento do país após a pilhagem feita por Cunha, Temer, Serra e seus cúmplices. Por isso, mais do que por qualquer outra razão, a restituição da nossa democracia se faz urgente.
Julia Spatuzzi Felmanas é filósofa e tradutora e Mestre em Políticas Públicas