Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho
O cenário político brasileiro parece caminhar para o encerramento de um ciclo conturbado e o início de outro também de agitação e incertezas, com o golpe praticamente consolidado e a aproximação do afastamento definitivo da presidenta eleita Dilma Rousseff.
Para compreender melhor esse cenário e os novos rumos possíveis para a esquerda, O Cafezinho conversou com a deputada federal Maria do Rosário. Na entrevista, a deputada não poupa críticas ao seu partido, o PT, por ter negligenciado a organização das bases antes que o golpe estivesse em curso, fala sobre a arquitetura do golpe e sobre a necessidade de união da esquerda, independente de siglas partidárias.
O Cafezinho: Deputada, agora o impeachment é uma realidade muito próxima e, apesar de o Eduardo Cunha ter sido afastado da presidência da Câmara, ele ainda é uma figura influente, não é?
Maria do Rosário: O Eduardo Cunha perdeu a presidência, mas manteve grande influência dentro da Câmara, tanto é que ele consegue protelar por sucessivas vezes a sua cassação efetiva. Mas veja: ao mesmo tempo em que ele perdeu espaço dentro da Câmara, ganhou um governo, porque o presidente da República em exercício é refém do Eduardo Cunha e cumpre uma agenda que tem que pactuar. Na minha opinião, o Temer procura ter um espaço pra consolidar uma autonomia maior em relação a Cunha, mas continuará sendo refém porque este golpe custou caro. Custa caro ao país, mas custa caro às artimanhas que eles produziram ao longo desse tempo.
Recentemente, eu vi uma notícia de que os líderes do PSDB estavam aumentando a crítica ao governo Temer, porque ele estaria implementando as medidas impopulares que seria mais ou menos o combinado agora. A senhora não acha que talvez o fato de não ser um governo legítimo, de não precisar prestar contas a um eleitorado, o golpe nesse sentido é mais duro por dar espaço pra vir um PSDB se fingindo de bonzinho mais tarde?
MR: É uma possibilidade concreta. Na minha avaliação, o golpe se estrutura com contradições entre as forças políticas que o coordenam, sobretudo sobre a estratégia que eles pretendem para o país. A disputa de poder permanece existindo, com as representações de classe e de segmento que cada um tem mais detidamente como sua. Mas o governo golpista chega ao poder, a este lugar de governar o país neste momento, já com uma estratégia muito bem montada, que não me parece que saia da cabeça de Michel Temer, da cabeça de um ou de outro. Tem medidas que eles tentaram implementar já por dentro do governo Dilma, projetos que eles tentaram produzir, extremamente conservadores, por dentro do governo Dilma. Outras medidas estruturais sobre o Estado estão sendo votadas agora. Então, isso é impressionante: como há uma estratégia desenhada pelos golpistas, porque enquanto o Senado está debatendo o afastamento definitivo da presidenta Dilma, sem que razões existam pra isso, portanto, numa condição de golpe, na Câmara já existem projetos e emendas constitucionais sendo debatidas e propostas anunciadas que mexem na estrutura do Estado brasileiro por 20 anos. Nós podemos falar da renegociação da dívida através do PLP 257, podemos citar estruturalmente a PEC 241 (que estabelece 20 anos sem novos investimentos, 20 anos de um ajuste fiscal de atendimento exclusivo aos rentistas, aos bancos e de apropriação dos recursos pelos mais ricos deste país) e podemos citar também a mudança no marco regulatório do pré-sal e as reformas já anunciadas: trabalhista e previdenciária. Isso não se organiza depois que Temer chegou ao Palácio do Planalto. Isso é algo pensado, estruturado, planejado. Só quem não consegue perceber isso acha que esse golpe é algo improvisado. Não há improviso nas elites. Talvez o improviso seja da nossa resistência da esquerda, que precisaríamos ter, sobretudo no comando do PT, uma capacidade maior de organizar essas bases importantes que o partido tem em todo o Brasil pra participarem da luta. E o que a direção nacional do PT não faz nos dias de hoje é isto.
Sobre essa atuação não parlamentar, não propriamente sindical, não partidária, o que a gente chama de esquerda social, que na resistência ao golpe se mostrou grande. Aqui no Rio de Janeiro a gente teve manifestações muito grandes contra o golpe. Mas exatamente isso: falta uma organização ou ou um debate maior nesse sentido. Agora, com esse golpe praticamente consolidado, quais são os caminhos fora do parlamento em que a esquerda deve se organizar, quais são as propostas que você tem nesse sentido para o Partido dos Trabalhadores e para a esquerda em geral?
MR: O PT continua, mesmo com todas as dificuldades, sendo um partido essencial para o país pela sua base social e sua representatividade nacional e por ter um projeto nacional de desenvolvimento. Mesmo que alguns setores tenham se afastado, nós precisamos recuperar isso em novas bases. Não se trata apenas de voltar ao passado, mas de pensar que as relações políticas exigem uma horizontalidade maior e que o próprio Partido dos Trabalhadores tem uma responsabilidade maior no enfrentamento dessa crise política do que todas as demais organizações pelo grau de hegemonia e de força política, de comando político como estratégia de poder que ele construiu ao longo dos últimos anos. Então, o que eu vejo é que as frentes cumpriram um papel excepcional. A Frente Brasil Popular, a Frente Povo Sem Medo, os movimentos sociais cumprem um papel excepcional, mas é preciso também comandos políticos na estrutura partidária que estejam a altura. Não nos é permitido e eu não creio que seria justo nós, que vivemos os espaços institucionais, cobrarmos ou pensarmos que a sociedade não reagiu. A sociedade reagiu até acima daquilo que nós oferecemos a ela como possibilidade de continuar confiando no nosso projeto. Ela veio para as ruas, mesmo com críticas ao governo da presidenta Dilma, mesmo observando os limites, a sociedade compreendeu, uma parcela importante da sociedade se contrapôs à direita que amealhou força social também no Brasil. Essa força social da direita encontrou um contraponto muito forte na dimensão democrática da sociedade. O que não esteve a altura disto é que estes espaços não se dão por geração espontânea. É preciso que essa grande força popular das pessoas irem para as ruas seja complementada, tenha uma continuidade pela atuação da direção dos partidos políticos. Então, na medida em que falta direção, falta condição (sobretudo aí, eu realmente faço uma crítica a nós mesmos que somos do PT – nós falhamos em contribuir oferecendo caminhos de direção, tanto no período de governo da presidenta Dilma quanto no atual momento em oferecer alternativas de continuidade e aprofundamento dessa luta popular).
As eleições municipais são um tipo mais tradicional de mobilização, mas elas vão jogar um papel. A direita avaliava que estaríamos mortos, não estamos. Temos candidaturas na esquerda muito consolidadas, que vão disputar um projeto. E o que eu vejo é que o próximo período exige de nós uma transcendência maior das nossas próprias siglas e trabalharmos mais como esquerda.
O Brasil é um dos países que tem um sistema judicial dos mais duros no mundo. A terceira maior população carcerária do mundo, um abuso da prisão preventiva e agora a gente vê esse tipo de abuso – que sempre usaram para os pobres – sendo usado pra manipulação política com muita facilidade e a sociedade aceitando muito. A gente também faz uma crítica ao PT, que nesse tempo todo não promoveu um debate nesse sentido e agora é vítima disso também: vários dirigentes sendo presos sem um processo legal e agora até a presidenta Dilma é engolfada nesse tipo de processo, e é muito difícil disputar isso na opinião pública. Qualquer tipo de debate de direitos humanos nesse sentido é colocado como defesa de bandido. Como você argumenta nesse sentido?
MR: Esse momento de golpe político institucional, parlamentar, que envolve diferentes instituições…é mais adequado, inclusive, falarmos em golpe de caráter institucional. Nós temos uma vertente parlamentar, uma vertente no judiciário, ações no Ministério Público, iniciativas variadas por dentro das instituições, que rompem com a democracia e com o voto na urna, criam instabilidade sobre o resultado das eleições e a certeza de que os eleitos possam governar. Esse momento atual, portanto, tem iniciativas anteriores. E o que é anterior a isto? Foi justamente o ataque aos direitos humanos, às garantias individuais, esse tensionamento permanente pra criar no país uma cultura de perseguição e ódio, de instrumentalização das instituições para o interesse político. Isso não é novo no Brasil, mas todas as vezes que as instituições se organizam dessa forma e são instrumentalizadas por determinadas forças políticas, os regimes de exceção se inauguram. E nós já estamos vivendo um regime de exceção. Um regime que, para alguns é não ter defesa. Ser do PT, é não ter possibilidade de se defender, hoje. Ser de esquerda é não ter possibilidade de se defender. Não há uma defesa igual. Então, não há um Estado democrático de Direito efetivo no país quando nós observamos que determinadas pessoas, por serem de uma organização, são tratadas a priori como parte de uma organização criminosa. O PT é um partido que está sendo perseguido, tanto é que o ministro Gilmar Mendes não tem vergonha de dizer que almeja a cassação do PT e ele é um ministro do Supremo. Nós estamos diante, portanto, de uma movimentação autoritária no país. A posição de ministro do Supremo não lhe oferece o direito de atacar as liberdades democráticas do país. Pugnar pela cassação de um partido político, pelo impedimento da liberdade de organização partidária é buscar um Estado de exceção.
Então, como eu nos defendo disto é que nós estamos em um momento de firme polarização, em que transigir diante dos ataques de dentro ou de fora das instituições, mas que tem caráter autoritário, é romper com a defesa da democracia e essa geração não pode fazer isso. Nós temos que estar dispostos a lutar por ela. Nós não teremos força de fazer essa movimentação pela defesa da democracia só dentro das instituições. Nós precisamos das ruas mobilizadas, nós precisamos de movimentos autônomos, nós não poderíamos ter dado curso uma lei sobre o terrorismo, que acabou abarcando os movimentos sociais no Brasil. Por isso que eu digo que por dentro do nosso governo também existiram iniciativas que nos colocaram numa situação difícil. Iniciativas que nós tentamos colocar emendas dentro do projeto pra retirar dali os movimentos sociais, nós fizemos a nossa parte. Mas como o judiciário utiliza essa lei hoje, se não é contra a luta popular? De forma que eu acho que nós estamos numa encruzilhada histórica no Brasil, onde não é dado o direito à ingenuidade, tão pouco à arrogância política. Nenhum campo da esquerda tem a solução completa. Nós temos que atuar como frente, unificando a nossa disposição de luta com o movimento social e transformar os nossos mandatos, onde quer que estejamos, e a nossa participação nos espaços da sociedade em espaços de resistência e de enfrentamento.