Quem vigia os vigilantes? (trecho retirado da graphic novel, Watchmen)
por Carlos Eduardo, editor do Cafezinho
Imagine você humilde funcionário público se houvesse no governo um órgão capaz de testar a sua integridade, a qualquer dia e hora, sem motivo aparente.
Um órgão acima dos três poderes, composto apenas por burocratas sem o aval das urnas, com o poder de simular o crime de corrupção ativa para descobrir se você é honesto, ou não.
Não seria assustador?
Pois esta é uma das ‘inovações jurídicas’ propostas pelo Ministério Público, nas 10 Medidas Contra a Corrupção.
Impossível não lembrar de Watchmen, obra-prima dos quadrinhos, cuja célebre frase diz: ‘quem vigia os vigilantes?’.
Conhecendo a justiça que temos, tal questionamento torna-se fundamental, imprescindível.
Até onde sei — me corrijam se estiver errado, por favor — em nenhuma democracia do mundo é concedido a um órgão do Estado o direito de chantagear funcionários públicos com o intuito de testar sua integridade.
Por uma questão muito simples.
Como garantir que os membros desse órgão não irão abusar de tal prerrogativa, seja para falsificar evidências, perseguir adversários políticos, e até vingar-se de desavenças pessoais?
Se não bastasse termos o Judiciário mais caro e ineficiente do mundo, a Operação Lava Jato revelou ao brasileiros que muitos procuradores não sabem — ou não querem — trabalhar de verdade, investigar e reunir provas concretas. Ao invés disso elaboram a acusação baseada única e exclusivamente em delações premiadas, na maioria das vezes a partir de depoimentos sem provas.
Agora os procuradores querem o direito de plantar falsas provas, montar armadilhas ou situações hipotéticas para desvendar os corruptos infiltrados na máquina pública.
Uma ideia absurda!
Prerrogativa assim só existe em ditaduras e governos autoritários.
Entre todas as legislaturas que já cruzaram minha vida, creio que esta seja a pior de todas, a mais deplorável, corrupta e hipócrita. Mas não tenho outra saída, senão seguir com meus princípios. Imaginar que algo de produtivo possa vir desta legislatura me dá náuseas, entretanto, os deputados têm razão quando dizem que o ‘teste de integridade’ é inconstitucional.
“O teste é incompatível com a Constituição de 1988. Trabalha a ideia de presunção de culpa superveniente. No Código Penal não se pune a preparação do crime, apenas o crime tentado ou consumado. No Brasil não se condena o crime antes de esse ser praticado. Não é questão de afrouxar ou não as 10 medidas anticorrupção, mas criar regras concernentes à Constituição”, argumentou um deputado do PDT.
Triste é constatar que a maioria de nossos representantes na Câmara não dá a mínima para a Constituição Federal, de fato estão pouco se lixando. Tenho certeza absoluta de que o dispositivo será vetado, não em respeito à Carta Magna ou aos direitos fundamentais do cidadão, mas porque a maioria dos parlamentares legisla em causa própria.
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Debatedores divergem sobre teste de integridade de servidor nas medidas anticorrupção
Teste simula oferta de vantagens sem o conhecimento do servidor público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos. Os testes poderão ser aleatórios ou dirigidos e os resultados usados para fins disciplinares e para instruir processos de improbidade administrativa e criminais
A aplicação de testes de integridade foi debatida, nesta segunda-feira, durante audiência da comissão especial que analisa medidas (PL 4850/16) contra a corrupção. Um dos dispositivos incluídos no projeto de lei prevê que os testes de integridade devem fazer a simulação de situações sem o conhecimento dos agentes públicos, com o objetivo de testar a conduta moral deles e a predisposição para cometer atos ilegais contra a Administração Pública. Os testes poderão ser aleatórios ou dirigidos e os resultados usados para fins disciplinares e para instruir processos de improbidade administrativa e criminais.
A medida foi criticada pelo presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado, Rudinei Marques, que considerou absurda a sua adoção. “Em determinados momentos, a psique humana é sujeita a conflitos. Em determinado momento, pode estar predisposta a cometer um crime, mas isso não quer dizer que aquilo seja a natureza absoluta do ser humano. Eu acredito que não é. Então, colocar na lei um teste de integridade para largar uma mala de dinheiro e ver se ele estende o braço, eu acho um absurdo. Não sei como alguém, em sã consciência, tenha colocado isso num projeto de lei.”
Mais debates
Um dos autores do pedido para realização da audiência, o deputado Rubens Bueno (PPS-PR) defendeu a ampliação do debate sobre a questão do teste de integridade: “Do ponto de vista administrativo, eu acho que é até cabível, mas, do ponto de vista criminal, não. Tem desdobramentos legais que têm de ser mais bem apurados. Daí a polêmica estabelecida em cima de um item apenas das 10 medidas de combate à corrupção. O que nós queremos é dar uma resposta adequada à sociedade”.
Rubens Bueno lembrou que o projeto de lei em análise teve como base as medidas propostas pelo Ministério Público Federal para combater a corrupção e a impunidade no País.
Autorização judicial
Para o relator da comissão especial, deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS), o teste de integridade poderá sofrer alterações como necessidade de autorização judicial para ser aplicado.
Onyx Lorenzoni disse ainda que não sofre qualquer pressão quanto às medidas anticorrupção e que os pontos polêmicos serão extensamente debatidos.
“Eu sou cara casca grossa. Então, as pessoas conversam comigo, eu vou ouvir todo mundo, vou ouvir, inclusive, muitas pessoas que são contrárias à maior parte das medidas que já foram aprovadas aqui e sugeridas por vários parlamentares, sem problema nenhum. Vamos dialogar, vamos debater. Agora, nós vamos enfrentar a corrupção no Brasil, e o Brasil vai sair melhor desse episódio”, afirmou Onyx.
Presidente da comissão especial, o deputado Joaquim Passarinho (PSD-PA) disse que o texto do projeto não deve ser afrouxado, mas sim adequado à legislação em vigor. A perspectiva, segundo o deputado, é não perder os 10 eixos propostos pelo Ministério Público.
Pontos questionáveis
Além das críticas à adoção do teste de integridade, Rudinei Marques destacou que outros pontos do projeto são questionáveis, como a relativização da prova ilícita, a adoção de novas modalidades de prisão preventiva, alterações nas regras de concessão de habeas-corpus e a exclusividade do Ministério Público para firmar acordos de leniência.
Entre as sugestões, ele citou mais empenho na prevenção da corrupção, como o fortalecimento do controle interno, fortalecimento das carreiras dos órgãos de controle e o reforço das ouvidorias. “O projeto de lei é robusto, bem legalista e punitivo. Vamos ter que ouvir muitos especialistas por conta dos pontos polêmicos”, concluiu.
Já o auditor do Tribunal de Contas da União (TCU) Paulo Martins, que também preside a União dos Auditores Federais de Controle Externo (Auditar), disse que os órgãos de controle, entre eles Polícia Federal, TCU e Ministério Público, precisam de mais instrumentos para atuar. Como exemplo, ele defendeu que os tribunais de contas deveriam ter competência para quebrar sigilos bancários. “Reconhecemos que essa matéria veio num momento oportuno, em que o país vive uma crise institucional em virtude da corrupção. Mas precisamos debater bastante com as entidades que representam as carreiras essenciais para o funcionamento do Estado e com a sociedade”, afirmou Martins.
Banalização e conformismo
A psicóloga Denise Ramos falou sobre a corrupção no Brasil e destacou que a banalização da prática é seguida de um certo conformismo. “A corrupção se origina no complexo cultural de inferioridade, no sentimento implícito de inferioridade, e que o jeitinho, levar vantagem a qualquer custo, compensa o sentimento de inferioridade”, herdados de questões culturais como a escravidão e a colonização extrativista vivida pelo País. Ela também destacou que as medidas propostas têm a qualidade de combater o vírus da corrupção, mas apenas o deixará latente.
Acordos de leniência
Lucieni da Silva, auditora federal de Controle Externo do TCU e fundadora da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil, avaliou que é preciso regulamentar a destinação dos recursos originários dos acordos de leniência.
Ela sugeriu que, para harmonizar o ordenamento jurídico, sejam ouvidos técnicos do Tesouro Nacional, por exemplo. Ela também sugeriu a criação de um Fundo Nacional de Combate à Corrupção, com destinação de recursos para áreas como a capacitação e aperfeiçoamento de profissionais que atuam na área de controle.