por Roberto Tardelli, no Justificando
Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964
Assim se iniciavam as Disposições Gerais e Transitórias, fecho da ópera bufa da Ditadura Militar, a Constituição de 1967, que ainda receberia dois anos depois uma espécie de reforço de penhora ditatorial, no AI-5. Nas disposições transitórias se alojam as falcatruas todas que pretendi combater com a lei que acabaram de publicar. É o lugar da sombra, normalmente não lidas, normalmente desprezadas, porque estamos com a boca torta. Revogam-se as disposições em contrário… alguém já pensou em algo mais amplo, genérico e deliciosamente arbitrário do que isso? Em tempos mais modernos, diria que nas disposições transitórias se acomoda a sub-net da lei.
Era uma ditadura. Pronta e acabada, na medida em que uma norma com força constitucional proibia o acesso ao Poder Judiciário. Negava-se, portanto, a jurisdição, como forma de expressão da soberania estatal, sempre que se buscasse do Judiciário a apreciação de ato do Comando Supremo da Revolução. Gizuis!
Nossa Ditadura tinha uma espécie de base legal, coisa de maluco, num país que endoideceu ninguém sabe exatamente em que dia, sabendo-se apenas que foi depois da chegada da Família Real.
Isso foi há cinquenta anos. Éramos apenas bi-campeões mundiais, não sabíamos o que eram as Olimpíadas, Miami ficava em outro planeta, o Fusca era um carro para toda a família. O pau cantava solto em casa, o marido mandava em tudo, ser virgem era obrigação feminina, o Corinthians não se cansava de perder para o Santos, a bossa-nova encantava o mundo, mas era ouvida por umas cem pessoas no Brasil. A Guerra-Fria dividia o mundo e a China só seria inventada décadas depois. Putz, claro, como esquecer? Não havia nem sombra da possibilidade de previsão da internet e caçar pokemon não era sequer um delírio. Nesse estado da arte, precisávamos ser explícitos e dizer claramente que aqui era, sim, uma ditadura.
Cinquenta anos depois, saímos da literalidade para a sutileza. A ditadura já não se faz nas leis, mas no juridiquês próprio da jurisprudência dos tribunais, que se asseguram de negar análise de direitos todos os dias. Queria poder contar as vezes em que leio a jurisprudência dessa Corte já deixou assentado que não cabe a discussão de mérito nas estreitas vias do habeas corpus*.É fantástico: para se reconhecer a nulidade apontada, é preciso verificar o prejuízo sofrido pelo paciente, o que importaria em revolvimento da prova, impossível nas vias estreitas do habeas corpus. Aquela, ótima: o remédio heroico não pode ser conhecido em hipótese de substituição de recurso cabível. Não, não há cereja nesse bolo, comido envenenadamente por uma enorme parcela de negros e quase-negros de tão pobres, que teve seu apogeu na antecipação da execução pena.
Tanto na Constituição da Ditadura, quanto na exegese da democracia, o objetivo era um só: combater a impunidade de criminosos que abalavam o sossego da sociedade ordeira, religiosa e trabalhadora. Os dois, curiosamente, partiram de portos distintos para chegar à mesma praia, a da negação dos direitos individuais e, via de consequência, à da negação dos Direitos Humanos.
Nas suas peculiaridades, na Ditadura, os perseguidos são os que incomodam politicamente; na democracia, ou melhor, na indigitada e quase ilegal democracia, os perseguidos são os criminosos comuns, ainda que ideologicamente enjaulados. Comum é o crime, ideológica sua perseguição; inaugura-se um puxadinho perto do estado de exceção quando o julgador nega a lei que deve aplicar, quando, por exemplo, miseráveis aos milhares são presos diariamente acusados de tráfico de drogas. É dialético o processo em que o depoimento dos policiais militares merece crédito, diante da função pública que envergam? Como provar que mentiu o policial, cheio de veracidade e alcance probante, que afirma ao juiz que o réu, em conversa informal, admitiu sua condição de traficante? Como fazer a prova negativa?
Vivemos em uma democracia seletiva. Não podemos afirmar que ela não existe em Moema, Jardins e adjacências; temos que procurá-la com lupa no Grajaú, Guaianases e cercanias. Na blitz, o policial me deu um show de educação e esmero, desculpando-se pela vida terrível na metrópole. A dois metros de mim, dois rapazes estavam de mãos para trás e respondendo a um questionário tão interminável que parecia nunca mais fosse acabar. Por que estavam ali? Para onde iam? De onde vinham? De onde ganharam o dinheiro que traziam? Quanto custou a moto? Quem pagou? Trabalha onde? Por que não está com a carteira de trabalho para provar? Que tatuagem é essa no teu braço? O que significa? Cadê os documentos da moto? Porque estavam em dupla? Cadê a arma? Jogou fora? Responde! Já viu, né, Doutor, deixar esses caras andarem por aí, coisa dos Direitos Humanos! Qualquer coisa que tivessem que encontrar, eles sabiam e tinham a exata noção dessa certeza, nenhum juiz deixaria de acreditar neles. Nenhum juiz acreditaria nos rapazes, na verdade, dois ajudantes de pintura, que saíam de uma obra. Subiram na moto, meio humilhados, meio aliviados, muito mais aliviados e seguiram seu rumo.
Eu, sem querer, ainda ouvi o policial se lamentando ao colega, sem conseguir disfarçar sua frustração: “Quase, quase”.
Roberto Tardelli é Procurador de Justiça aposentado (1984/2014), onde atuou em casos como de Suzane Von Richthofen. Atualmente é advogado da banca Tardelli, Giacon e Conway Advogados, Conselheiro Editorial do Portal Justificando.com e Presidente de Honra do Movimento de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. *Em itálico, as expressões repetidas à exaustão em sentenças e acórdãos todos os dias.