Foto: Natacha Pisarenko/AP
Por Luis Edmundo Araujo, editor de esporte do Cafezinho
No dia em que o nadador Michael Phelps se tornaria o primeiro atleta olímpico a conquistar a mesma prova por quatro vezes seguidas, ao lado do nosso valente Thiago Pereira; a oito, nove horas da final dos 200 metros medley em que o nadador da casa, nascido em Volta Redonda, largou muito bem, deu esperanças de medalha até quase o final mas terminou em quinto, o presidente da associação comercial, do púlpito em frente às duas ou três dezenas de mesas redondas, sem um lugar vago no salão do alto da sede da entidade com vista para a baía enorme, imunda, dava as boas vindas ao ministro interino de baixa estatura, convidado de honra do evento.
Na ginástica artística, Simone Biles ganhou o ouro na competição individual geral e tornou-se a ginasta mais completa do mundo, e o presidente da associação comercial enaltecia, naquele mesmo dia, a capacidade do país de, vejam só, produzir ao mesmo tempo um processo de impeachment dessa envergadura, falando orgulhoso disso, pomposo, no mesmo tom ufanista com o qual citou a “mais incrível investigação contra a corrupção junto com a mais profunda crise econômica”, mas sem relacionar as duas, claro, falando apenas que tudo isso acontecia enquanto o país fazia a mais bonita, abstrata, cerimônia de abertura jamais vista numa Olimpíada.
No vôlei masculino, o Brasil poderia eliminar de vez os Estados Unidos, mas viria a perder de forma quase tão avassaladora quanto a final de 1984, o que manteve vivo, até demais, o time que os multicampeões brasileiros nunca venceram em decisões, a não ser nas quartas-de-final, na campanha do nosso primeiro ouro olímpico na modalidade, em 1992. Do púlpito, antes de anunciar o ministro de baixa estatura, a cinco, seis horas da derrota para os americanos no vôlei, o presidente da associação comercial garantiu ao convidado de honra, diante de todos os presentes, que a entidade, todos os seus associados estavam formando ao lado dele “uma aliança que não poderia ser maior”.
O ministro interino subiu então ao púlpito, mas continuou de baixa estatura. Sob o tilintar dos talheres a cortarem o medalhão com molho madeira, a garfar a batatinha redonda, empanada, o arroz à piamontesa, o interino errou uma concordância ou outra, se corrigindo em seguida, rápido, também reclamou em aparente tom de brincadeira da miudeza das letras, da falta de cores mais fortes, diferentes entre si, para destacar algum ponto do texto que aparecia no telão ao lado e que ele repetia aos convivas entre críticas abertas à presidenta afastada e o reconhecimento, sim, infelizmente, de que a interinidade causava certa apreensão em possíveis futuros investidores.
Mas era de otimismo, também, o tom do ministro interino. Disse ele que o governo já estava trabalhando, há três meses, como se definitivo fosse, como se não houvesse o menor problema, nenhum dilema nisso, e apostou que tudo iria melhorar, que a economia iria crescer quando, enfim, o governo interino, como ele, se tornasse definitivo, e no mesmo dia a seleção brasileira de basquete feminino daria adeus aos jogos, ainda na primeira fase da competição, após perder para a França.
No dia seguinte, Rafael Silva conquistou a segunda medalha de bronze do judô e do Brasil nos Jogos, repetindo o que já tinha feito nas Olimpíadas de Londres, há quatro anos. À noite, o futebol feminino brasileiro se classificou na decisão por pênaltis, com a goleira Bárbara salvando a pátria depois do erro inesperado de Marta na cobrança dela, e no sábado, na manhã seguinte do dia em que o futebol masculino também confirmaria sua classificação às semifinais, ao vencer a Colômbia por 2 a 0, o presidente da associação de moradores do morro com vista privilegiada para o mar aberto, com as ilhas lá longe, mostrava os painéis de energia solar no teto de um hostel, na parte alta da favela, e dizia que o projeto tocado em parceria com um instituto alemão era, na verdade, “existencial”.
Com a militarização, veio a gentrificação, o encarecimento do custo de vida no morro incrustado em área nobre da cidade que, no caso da conta de luz, chegou combinado com a troca do relógio analógico pelo digital, o que gerou contas de R$ 1 mil, por exemplo, para um simples barraco de dois quartos, sem ar-condicionado, contava o presidente da associação dos moradores da favela no dia em que Andy Murray confirmaria sua classificação protocolar à final do tênis masculino, horas antes de o argentino Juan Del Potro derrotar o espanhol Rafael Nadal num jogaço na outra semifinal, por 2 sets a 1, minutos depois de a seleção argentina de basquete conquistar uma vitória dramática contra o Brasil, após duas prorrogações.
“Esse projeto é político e se chama ‘A Energia é nossa’, porque a energia solar, afinal de contas, é de todo mundo”, afirmava o presidente da associação dos moradores do morro, usando a camisa com a frase bilíngue, em português e inglês, dizendo que favela não é zoológico. Apoiado maciçamente pela grande mídia quando de sua implementação, com as operações policiais para “limpar” as áreas mais violentas tendo cobertura ao vivo, no clima de guerra passado por repórteres e cinegrafistas de colete à prova de bala e capacete, o projeto de militarização já era. Não houve nada das contrapartidas sociais prometidas para logo após a tomada das comunidades pela polícia militar e hoje a diferença em relação ao passado de violência explícita e tiroteios frequentes é que em alguns lugares, como o morro com vista para o mar, o tráfico continua a existir como sempre existiu, mas de maneira mais discreta, sem a antiga exibição de revólveres, pistolas e fuzis nas mãos de traficantes, alguns menores de idade.
O presidente da associação de moradores lembrava que a empolgação inicial com a militarização, há seis anos, provocou um boom no número de moradores e por isso mostrava o outro projeto tocado com a cooperação técnica dos alemães, de hortas comunitárias e reaproveitamento de comida, para evitar o crescimento desordenado, preservar a mata atlântica em volta da favela e, também, ajudar na coleta de lixo. São apenas dois garis no morro para recolher o lixo de 5 mil moradores, diz o presidente da associação, enquanto mostra uma pequena plantação de chá de boldo onde ficava um depósito clandestino de lixo, aleatório. Um projeto anunciado há anos com pompa e circunstância previa, segundo ele, a abertura de duas vias para que minitratores da companhia de limpeza urbana pudessem chegar a pontos de acúmulo de lixo de difícil acesso, no alto do morro. “As obras do projeto jamais foram concluídas, por isso nós é que temos de nos virar da melhor maneira que encontrarmos”.
E entre o otimismo sorridente de empresários, ministros e autoridades ávidos em transformar o provisório em definitivo, a degustarem o sorvete artesanal da sobremesa no topo do prédio no centro da cidade enquanto conversam animadamente, esfregando as mãos, sobre o futuro da nação, e a luta diária contra as mazelas de sempre nas comunidades carentes, mesmo aquelas em área nobre, com vista deslumbrante, a cidade dita maravilhosa segue sediando a Olimpíada que teve, neste domingo, além da derrota do valente Del Potro para o escocês Andy Murray em mais um jogo histórico, na final do tênis masculino, e do tricampeonato olímpico do mito Usain Bolt nos 100 metros rasos, mais duas medalhas brasileiras, dessa vez no solo masculino da ginástica artística com Diego Hipólito (prata) e Arthur Nory (bronze), que, aliás, passou certa vergonha nacional recentemente, com suas brincadeirinhas racistas sendo exibidas pela internet. Tomara tenha aprendido com o episódio. Que a medalha dele seja um sinal disso.
luis.edmundo@terra.com.br
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