O Poder Judiciário no epicentro da crise política

Manifestantes contrários ao governo Dilma fazem ato em frente ao Supremo Tribunal Federal, em março de 2016 (Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil)

por Roberto Amaral, em seu blog

Os destinos da República se assentam sobre Poderes fragilizados. Esta é a grande crise, por revelar-se de corpo inteiro. Sua fonte é a carência de legitimidade que se abate, a um só tempo, sobre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

Não obstante havermos conseguido, até aqui, e ainda que a duras penas, preservar a ordem institucional, são graves e seguidos os ataques ao pacto constitucional de 1988, do qual nos distanciamos dia a dia e quanto mais nos distanciamos, mais nos apartamos da democracia representativa, do povo e da nação. Presos a uma História que teima em não se libertar do passado, sempre visitado, adiamos, sistematicamente, o sonho de uma sociedade comprometida com o combate às desigualdades econômicas, sociais e políticas, e nos deixamos esmagar pela realidade perversa do catecismo neoliberal, cujos princípios estão no projeto e na ação do governo interino (interino e ilegítimo) que luta por prorrogar-se, para, ainda mais desenvolto, levar a cabo as políticas de restrições sociais. É a recidiva do modelo neoliberal que, após haver fracassado em todo o mundo, nos ameaça com a concentração de riqueza, o desmantelamento do Estado, a desorganização econômica e o comprometimento de nossa soberania, já em adiantado curso.

Repita-se mil vezes: o golpe de Estado que visa à destituição de Dilma Rousseff não é um fim em si, mas o instrumento, até aqui necessário, de que se valem os setores hegemônicos da classe dominante para impor a regressão neoliberal, em sua versão ultraconservadora e antinacional, anunciada pelo governo títere. Ele se finca na aliança fática e ostensiva dos três poderes, em crise, costurada pelos interesses do grande capital, que se estrutura na Avenida Paulista e se expressa mediante o monopólio ideológico da mídia oligopolizada, a seu serviço.

Não é por serem marionetas que mal camuflam os cordéis que os comandam à distância, que esses poderes são menos responsáveis, pois nos governam em nome do grande capital financeiro, em nome da elite econômica, antidesenvolvimentista e antinacional, antipovo e antiprogresso, elite alienada que pensa poder sobreviver à destruição do país, cuja pobreza não a assusta e em cujo desenvolvimento não investe, por dele não depender.

Desgraçadamente, estamos à mercê de um Executivo sem legitimidade, de um Legislativo sem representação (ademais de dominado por procurados pela Justiça, como o ex-presidente da Câmara dos Deputados) e de um Poder Judiciário que não cumpre adequadamente o dever de julgar, e nele de um STF que atropela as competências dos demais poderes e desrespeita a Constituição, que seus membros juraram cumprir e fazer cumprir. Como o Executivo, hoje mais do que nunca, e como o Legislativo, o Poder Judiciário, em todos os seus escalões, está a serviço dos interesses de classe dominantes. Este é o fato objetivo; o resto, são suas consequências.

Mais do que nunca o país precisa ser ‘passado a limpo’, e a proclamação de Darcy Ribeiro mais se torna atual, e inadiável, na medida em que mais se enraízam os valores negativos representados pela dupla Cunha-Temer. Segundo as mais variadas premissas e de acordo com os mais distintos objetivos, a comunidade de juristas, constitucionalistas, analistas políticos e políticos concordam com a defesa das reformas, que no entanto não se realizam. Mais do que nunca precisamos de uma reforma política que restabeleça a legitimidade dos mandatos e nos aparte da falência do presidencialismo de coalizão, e de uma reforma tributária que privilegie impostos sobre a renda e o patrimônio e não, como são hoje, atrelados ao consumo e a serviços, uma reforma que estimule a produção e aponte para um novo equilíbrio da Federação. A mais importante das reformas de que carecemos, porém, nela pouco se cogita. Refiro-me à inadiável reforma do Poder Judiciário, porque sem ela não sobreviverá a opção democrático-popular de que resultou a Constituição de 1988, o alvo preferencial do golpismo conservador, que se vale do processo desse escabroso impeachment sem crime de responsabilidade, em curso, para impor um regime autoritário já em ensaio.

Em meio ao golpe de Estado de novo tipo, consagrado ele, ingressaremos em uma ‘ditadura constitucional’.

Já hoje o próprio STF agride a Constituição, seja julgando contra sua letra e seu espírito, seja imitindo-se de forma autoritária, prepotente e inconstitucional, no papel de legislador constituinte. Ei-lo legislando sobre fidelidade partidária, sobre culpabilidade sem trânsito em julgado e autorizando o encarceramento antes da decisão final. Ei-lo discutindo regimentos internos do Legislativo, ei-lo decidindo sobre união estável e aborto. Não se discute o mérito; denuncia-se a invasão de competência que agride a ordem constitucional, à qual todos os poderes estão submetidos. Agressões que o STF perpetua dizendo-se ‘instrumento do clamor das ruas’, um populismo de cabo de esquadra.

O STF, aliás, é, em nosso ordenamento constitucional, o único dos poderes sem raiz na soberania popular, alheio que está à esfera política, cumprindo-lhe, sem o poder de iniciativa (atributo dos demais poderes) a função eminentemente técnica de vigiar a constitucionalidade das leis. Assim a letra constitucional. Sua transformação em contrafação de poder politico, como pretende a maioria de hoje e como anuncia orgulhoso seu presidente (“CNJ, transparência e diálogo”, Folha de SP, 25/7/2016), sua aspiração de transformar-se em poder moderador, um anacronismo monárquico, é, pois, mais do que uma exorbitância, uma agressão à história do direito brasileiro e uma aberração constitucional cuja sobrevivência deriva da anemia político-moral do Congresso.

De outra parte, o Poder Judiciário é poder auto-blindado, que refuga a transparência e a responsabilidade, fugindo a qualquer sorte de fiscalização da sociedade, na contramão dos demais poderes, políticos e animados em sua gênese pela sopro da soberania popular. E de forma pouco ética: quando os funcionários públicos sofrem as consequências do ‘ajuste fiscal’, impõe o reajuste dos altíssimos salarios (considerada a realidade brasileira) de juízes e ministros. Desses não pode o contribuinte saber quanto percebem de outras fontes, e não são poucas, e é negado aos advogados conhecer a intimidade do processo eletrônico que orientaria a distribuição dos processos no STF.

Perseguindo o protagonismo político que não está em sua alçada, o STF, olímpico, inalcançável, leva alguns ministros mais afoitos (e à lembrança vem sempre o inefável Gilmar Mendes – aquele que ‘não disfarça’ como bem observa o jornalista Bernardo Mello Franco), a esquecer a circunspecção, a discrição, o recato e a moderação – exigências do Código de Ética da Magistratura – para aderir ao exibicionismo, à verbosidade irresponsável, à incontinência verbal, em episódios seguidos de prejulgamento, de pronunciamentos políticos que desvendam preferências politicas expressamente vedadas pela C.F. (Artigo 95, parágrafo único, inciso III). A velha máxima de que ‘juiz só fala nos autos’ foi revogada entre nós. Lamentavelmente.

Na sua desmedida ânsia de protagonismo – que o leva a tomar partido na crise política–, o STF termina por perder a aura de isenção e respeitabilidade que seu papel constitucional exige.

Por tudo o dito e o sabido, resulta um STF feito agente da insegurança jurídica, pois destrói o primado da ordem constitucional e altera sua jurisprudência, seguidamente, em função de maiorias ocasionais. Assim age principalmente quando – por razões político-policiais – rasga o inciso LVII do art. 5º da C.F. (“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”); quando assim procede, a Corte diz que, sob o pretexto de interpretar o que não carece de interpretação, assume contrariar o texto da Constituição. E dito isto e feito isto o cidadão ofendido, vítima do abuso de direito, não tem a quem recorrer, a quem pedir proteção. É inadmissível que um ministro claramente associado a um partido político (seja feita justiça ao Sr. Gilmar Mendes, ‘ele não disfarça’), tenha condições de interromper um julgamento já decidido (já se haviam pronunciado seis ministros no colégio de 11), pedindo vistas dos autos e trancando-os em suas gavetas por mais de um ano, com o único e confessado propósito de evitar a eficácia da decisão, que, no seu entender faccioso, beneficiaria um determinado partido politico. É igualmente inadmissível que, em pleno presidencialismo, a presidente da República seja impedida de nomear o ministro chefe da Casa Civil, sob o pretexto insustentável, porque subjetivo, de que a nomeação teria a intenção de proteger o ex-presidente Lula com o foro privilegiado.

Essas observações chamam para a necessidade de uma profunda reforma judiciária (e nela do STF), pois, sem poder judiciário íntegro e democrático, não há a menor possibilidade de exercício real da democracia. Essa reforma – quando seu objetivo é o fortalecimento da democracia – deverá compreender, no que tange ao STF, entre muitas outras medidas mais ou menos profundas, o fim da vitaliciedade, substituída pelo mandato não renovável de 10 anos. Qualquer reforma deverá construir instrumentos eficazes de fiscalização do Poder Judiciário (que está longe de ser cumprida pelo Conselho Nacional de Justiça), e nele do STF e dos demais tribunais superiores, e dentre essas reformas estará a facilitação dos julgamentos dos ministros por crimes de responsabilidade, hoje dependentes da coragem ou da tibieza de um presidente do Senado ameaçado de processo pelo próprio STF.

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