O problema bilionário do Brasil
Para entender a desigualdade global, você precisa entender a desigualdade brasileira
por Patrick Iber, na New Republic / Tradução: Maria Clara Pecorelli
Há mais de dois anos, em abril de 2014, o livro “O Capital no Séc. XXI”, de Thomas Piketty, foi publicado em inglês e chegou ao topo da lista de best sellers do New York Times.
O livro de Piketty tocou num nervo, ajudando a disseminar várias ideias – entre elas a de que o capitalismo não gera automaticamente uma distribuição razoável ou igualitária de renda, e que, para entender a política, é necessário prestar atenção ao 1% mais rico. Piketty focou nas concentrações de riquezas na França, no Reino Unido e nos Estados Unidos dos séculos XIX e XX, lugares onde havia a maior parte dos dados disponíveis para tais períodos.
Mas se Piketty tivesse sido – em vez de um economista – um repórter buscando entender o mundo que os extremos da desigualdade produziram hoje, não teria olhado para esses ricos países. Poderia muito bem ter escolhido se concentrar no Brasil, como Alex Cuadros fez em seu novo livro Brazillionaires: riqueza, poder, decadência e esperança num país americano.
Cuadros, correspondente da Bloomberg, chegou ao Brasil em 2010 com uma missão digna de um Piketty: investigar as vidas não do 1%, mas do 0,0001%. Parte do seu trabalho era elencar os bilionários do Brasil para a Bloomberg’s global wealth list (lista de riqueza global da Bloomberg) – uma espécie de classificações dos super-ricos do “U.S. News & World Report” – bem como relatar sobre seus negócios e suas vidas pessoais. Em Brazillionaires, ele consolidou e modelou esses perfis num retrato avançado e envolvente do Brasil moderno.
Cuadros usa o retrato do falecido magnata da imprensa, Roberto Marinho, por exemplo, para discutir como a grande mídia do Brasil retrata a raça, e através disso, suas ideias e ideologias de raça. Seu capítulo sobre Edir Macedo, um pastor na tradição do “evangelho da prosperidade”, o permite discorrer sobre as práticas religiosas em mudança.
Embora cada capítulo seja construído em torno do perfil de um bilionário particular, Cuadros inclui considerações a partir de suas próprias leituras, como também batendo perna em suas reportagens. Ele visita comunidades nas favelas, e voa em viagens de helicóptero de 1.500 dólares a hora, que seus entrevistados utilizam para evitar o emaranhado do trânsito.
O livro pode ser bem mais revelador que seus entrevistados gostariam que fosse. De fato, ele não estará disponível no Brasil: um dos bilionários em questão ficou aborrecido com o que viu na edição preliminar e as editoras brasileiras se assustaram (nota do editor: Alex Cuadros contou ao jornalista Glenn Greenwald que o bilionário em questão foi Jorge Paulo Lemann, homem mais rico do país segundo a Forbes).
O mais importante bilionário para o livro é inquestionavelmente Eike Batista.
Eike, como é conhecido, subiu tão alto quanto a 8ª posição global na lista de bilionários da Bloomberg, avaliada em mais de 30 bilhões de dólares. Ele era sincero sobre suas ambições de se tornar o homem mais rico do mundo. Eike é um piloto campeão de corridas de lancha, tem implantes de cabelo de última geração e já foi casado com Luma de Oliveira, uma modelo da Playboy e rainha do carnaval.
Um dos seus filhos, Thor Batista, costuma registrar seu enorme peitoral musculoso no Instagram e, até não muito tempo atrás, dirigia uma Mercedes-Benz SLR McLaren avaliada em mais de um milhão de dólares americandos. Eike e sua família dificilmente poderiam ser mais representativos do estilo de vida de playboy bilionário dos ultrarricos globais.
Eike também serve como símbolo dos problemas do Brasil de hoje, e cerca da metade dos capítulos de Brazillionaires é dedicada a ele.
A despeito do que poderiam parecer diferenças fundamentais em aparência e ideologia, Eike forjou uma relação pragmática de trabalho com os governos de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores. Até o momento em que Dilma Rousseff foi afastada do seu cargo por legisladores hostis no último maio, o país vinha sendo governado pelo Partido dos Trabalhadores, de centro-esquerda, desde 2003, primeiro pelo metalúrgico e sindicalista Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) e, depois, por Dilma (2011-2016).
Antes de Lula tomar posse, os ricos do Brasil se preocupavam sobre o que aconteceria quando Lula, um ex-socialista, assumisse o poder. O próprio Eike descreveu a situação como um retrocesso. Mas Lula estava determinado a quebrar a associação de governo de esquerda com caos econômico e construiu alianças com os oligarcas brasileiros.
Lula abraçou um programa desenvolvimentista que Cuadros descreve como “querendo trazer a nação não tanto para o séc. XXI, com tecnologia e altas finanças, mas para o séc. XX, com portos, barragens e grandes companhias brasileiras”.
Como Eike controlava um conjunto de companhias interligadas, a maioria nos setores de petróleo e gás, e tinha feito grandes apostas em perfuração offshore, ele recebeu grandes empréstimos concedidos pelo banco de desenvolvimento controlado pelo Estado brasileiro.
Ele cresceu próximo de Lula.
Se a desigualdade do Brasil choca a consciência, devemos reconhecer que, como uma comunidade humana global, somos todos Brasil.
A corrupção é quase uma parte esperada das negociações empresariais e políticas no Brasil, e Eike, embora muitas vezes retratado como um empresário “estilo americano”, “self made”, não era de modo algum uma exceção.
Ele ajudou a financiar um filme biográfico lisonjeiro sobre Lula e gastou um quarto de milhão de dólares em um leilão para comprar o terno que Lula tinha usado em sua posse. Mas, a despeito de provas de corrupção e conflitos de interesse atravessando o sistema político, por um tempo todo mundo parecia estar lucrando.
A economia do Brasil fez enormes progressos.
A classe média cresceu e a qualidade dos padrões de vida entre os pobres melhorou dramaticamente. A desnutrição foi cortada à metade. Um dos programas emblemáticos de Lula, o Bolsa Família, proporciona transferências de dinheiro em espécie, parcialmente em troca de frequência escolar infantil.
Muitos dos bilionários que Cuadros entrevistou justificaram sua riqueza com alguma versão do argumento de que “o que é bom para a GM é bom para o país”. Muitos brasileiros acharam o enfoque aceitável: Lula deixou o cargo com uma taxa de aprovação de mais de 80%.
Mas surgiram problemas a partir de 2013.
O governo do Brasil e seus consumidores haviam contraído dívidas em demasia. Os preços das commodities estavam caindo. As previsões de produção para os campos de petróleo offshore de Eike acabaram por se mostrar insuficientes para cobrir seus custos e suas companhias começaram a declinar. Seu valor líquido estimado caiu de 30 bilhões para um bilhão negativo em apenas dois anos, e ele se viu diante dos tribunais, acusado de insider trading – crime de informação privilegiada.
Em 2012, seu filho Thor bateu e matou um ciclista pobre com aquela McLaren de um milhão de dólares. Seus processos pareciam testes sobre se os poderosos podem ser responsabilizados por suas ações, numa época quando o povo comum estava sofrendo com a deterioração das condições e a frustração das esperanças.
Ao longo dessa história, Cuadros é crítico com seus entrevistados bilionários, mas não os denuncia. Encontra em vários deles qualidades admiráveis. Mas, tem consciência de que os mitos contados sobre eles e que os próprios falam de si mesmos são profundamente danosos.
O mais próximo que chega a um comentário maldoso é quando ele pede a funcionários do escritório de Jorge Paulo Lemann (que se tornou o homem mais rico do Brasil depois da queda de Eike, dono do Burger King, da Budweiser e parte da Heinz), para nomear algumas “coisas novas” que ele teria criado, como um “empreendedor” deve adequadamente fazer.
Não souberam dizer nenhum exemplo e ele escreve: “uma recente apresentação de um investidor da Heinz apontou inovações que incluíam mostarda amarela e molhos quentes. É como ter destruição criativa sem a parte criativa”.
Uma boa quantidade de brasileiros pobres, entretanto, admira seus ricos, como Cuadros deixa claro. Muitos nas classes médias direcionam sua ira, ao contrário, para os pobres. “Alguns de nós, como você e eu, precisam trabalhar”, uma vez lhe disse sua dentista: “Mas, temos essas pessoas que não fazem nada e vivem na boa”.
“Quando lhe perguntei se ela colocava seu dinheiro em CDBs – certificados de depósito com altos juros – ela disse que sim. E ficou surpresa quando apontei que este também era um subsídio público, um muito maior, já que o governo paga somas enormes para os bancos segurarem suas obrigações. Eu deveria ter mencionado que três quartos dos adultos do Bolsa Família também trabalham para viver”, escreve Cuadros.
Se Cuadros tem uma agenda política, ela poderia ser descrita como enfatizar a contingência dos resultados econômicos, bem como os obstáculos para a mobilidade e o acesso, tudo isso tornando a ideia de meritocracia pouco mais do que um meio de justificar extremos da desigualdade.
Tais assuntos – e esses tipos de conversas sobre mérito, bem estar social e distribuição de riqueza – estão, evidentemente, muito longe de ser exclusivos do Brasil. E se Brazillionaires trata superficialmente do Brasil, também almeja ser mais do que isso.
O Brasil , em aspectos importantes, é mais representativo do mundo do que qualquer outro país. Tem estado, nas últimas décadas, entre os países mais desiguais do mundo. Se você juntar toda a população mundial e medir desigualdades de renda, você obtém um nível ainda mais elevado de desigualdade do que o que existe em qualquer nação sozinha. Ainda assim, é o perfil do Brasil que chega mais perto de igualar a situação global: uma classe alta pequena, rica e dominante, uma classe média modesta e uma maioria pobre que luta tanto por renda como por direitos efetivos.
O Brasil é incomum entre países de alta desigualdade no que seus cidadãos estão espalhados por todo o espectro – nos Estados Unidos, por contraste, em termos puramente econômicos os pobres têm renda média segundo os padrões mundiais.
O Brasil tem pessoas que são tão pobres como qualquer um, em qualquer lugar, e ainda assim tem pessoas que são tão ricas como qualquer outra, em qualquer lugar.
Somente um dos entrevistados de Cuadros expressa algum remorso sobre isto: Guilherme Leal, cofundador de uma companhia sustentável de cosméticos, disse a Cuadros que era desconfortável para ele ser um bilionário num país pobre. “Acho que as sociedades mais felizes são as menos desiguais. Onde todo mundo pode ter uma qualidade bem decente e razoável de vida. Se eu tivesse que me desfazer de uma parte significativa da minha riqueza, trinta porcento, quarenta porcento, para impostos mais altos, mas ao mesmo tempo pudesse viver num país com menos desigualdade, eu seria mais feliz”.
Mesmo assim, quando sua empresa foi solicitada a pagar centenas de milhões em impostos não pagos e multas, ele disse: “aqui no Brasil, se você não tentar lidar de forma inteligente com a carga tributária, você vai falir”.
Se a desigualdade do Brasil choca a consciência, e leva a óbvias injustiças, então temos que reconhecer que, como uma comunidade humana global, somos todos Brasil.
Cuadros não torna explícita a comparação global, mas espalha migalhas de pão rumo a uma terceira interpretação do seu livro.
Mesmo o subtítulo da sua edição dos Estados Unidos: “Riqueza, Poder, Decadência e Esperança num país americano”, visivelmente não diz “um país latino americano”, mas “americano”.
O ponto, com certeza, é que tais problemas não são só do Brasil, mas também são dos Estados Unidos.
Ambientalistas nos EUA podem chorar em desespero à medida que são abertas enormes faixas na Amazônia para soja e gado – os ambientalistas brasileiros também. Mas tais atividades trazem de fato ganhos de curto prazo para áreas pobres do país – e, como Cuadros indica, os EUA fizeram o mesmo cálculo com o método de fracking (injetar líquido em rochas subterrâneas para obter petróleo e gás) nos últimos anos.
Ambos os países são antigas sociedades escravagistas que lutam para confrontar seu legado de racismo institucional, e a violência que acompanha a patologização da pobreza racializada. Ambos são lugares onde os ricos possuem os meios de assegurar que seus filhos se mantenham prósperos e se beneficiem ao máximo, mesmo de bens públicos como educação.
A corrupção institucional tem sua cultura particular no Brasil, onde pode ser tanto uma frustração cotidiana quanto completamente ultrajante – o juiz, encarregado do processo do Eike Batista por manipulação de mercado e insider trading, apreendeu algumas de suas propriedades pessoais, e mais tarde foi pego dirigindo o Porsche Cayenne de Eike.
Mas, e a nossa prática totalmente legal de lobbying, na qual a experiência de governo pode ser transformada em riqueza privada, e as corporações e os ricos têm influência maior sobre os resultados legislativos?
A história de nossos próprios bilionários poderosos não é simplesmente da produção de valor social, mas também de bolhas, monopólios, negócios internos e violência estatal e privada sobre os trabalhadores. Os Estados Unidos são mais ricos, e sua democracia mais antiga, mas não é tão diferente.
Devido aos Jogos Olímpicos, o Brasil está agora no centro da atenção mundial. Que os jogos aconteçam num momento de turbulência política e recessão econômica é certamente desapontador para os líderes do país e muitos de seus residentes. Mas as legiões de jornalistas estrangeiros caindo de paraquedas para rápidas visitas serão sem dúvidas arrastadas para o exótico: a beleza da paisagem e das pessoas, futebol, carnaval, favelas e assim por diante.
Brazillionaires é uma lembrança de que os espectadores dos Estados Unidos seriam bem servidos em não olhar para o Brasil como um lugar exótico com problemas exóticos. Contemplar a sua condição é contemplar um retrato alarmante, apenas para perceber que o nosso olhar não é dirigido a uma pintura, mas a um espelho.