Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.
Foto: Beatriz Goulart
Artista sonoro e professor da UFMG, por mais de dez anos Marco Scarassatti vem desenvolvendo um trabalho especial no campo da criação de instrumentos musicais e esculturas sonoras com o intuito de promover uma interação com outras atividades importantes em seu trabalho, como as gravações de campo e a improvisação. Assimilando e aprofundando, de forma integrada, técnicas e conceitos aparentemente apartados no cenário da experimentação sonora contemporânea, Scarassatti vem aprimorando uma aplicação peculiar do termo “experimental” em território brasileiro: não há em suas obras a eventual separação, nem mesmo uma problematização, entre forma e conteúdo, matéria e energia, atividade e pensamento. Suas esculturas e instrumentos inventados emanam as forças telúricas da terra em desdobramentos contínuos e permanentemente inacabados, enquanto suas gravações de campo conferem vozes às forças represadas pelo avanço insano do concreto armado e da especulação imobiliária (no álbum Rios Enclausurados, Seminal Records, 2015).
Nesta atividade, sublinha-se o exercício prolongado de emancipação das formas expressivas de seus respectivos arcabouços formais (estilos, gêneros, expectativas), ainda que, no seu caso, isso se reproduza de forma contraditoriamente bem acabada. Contraditório porque, apesar do acabamento sonoro e visual, persiste um estranho aspecto “processual”, uma experiência que joga com o que está do lado de fora da escuta comum, mas em diálogo pleno com a materialidade do que é comum. Vale dizer, do cotidiano comum a uma imensa comunidade de objetos. A música de Scarassatti toma a própria experiência, o próprio percurso, como matéria-prima, levando consigo toda sorte desses objetos: panelas, reco-recos, ventiladores, objetos de aço, mangueiras de borracha, madeiras, cabaças, plasmados em formas indistintas.
Tomemos, por exemplo, Rumor (Creative Sources, 2015), trabalho no qual improvisa ao lado de Eduardo Chagas, Gloria Damijan e Abdul Moimême em uma sessão gravada em Lisboa, 2014. O disco é composto por duas sessões de improvisação construídas com rangidos, fricções, percussões, estalidos, articulados num cosmos sonoro que, ao mesmo tempo, permite entrever o objeto (o traço pictórico da escultura, do instrumento inventado) e aquilo que não lhe pertence mais (o som desses objetos inserido no contexto “musical”). No texto que acompanha esta edição, Miguel Copón observa que os instrumentos e esculturas criadas por Marco Scarassatti são “concebidas como antenas, onde a inexatidão é substituída pelo poder revolucionário do capricho, uma forma nua de experimentação…” Compreendo que esta “nudez” a que se refere Copón diz respeito à ambiguidade com que podemos tomar esses instrumentos e esculturas, seres que se apresentam ao mesmo tempo como voz subjetiva e objeto imanente.
Após Rios Enclausurados e Rumor, Scarassatti lançou este ano Amoa Hi, também pelo selo português Creative Sources, também gravado em uma sessão de improviso, desta vez ao lado de Ernesto Rodrigues, Guilherme Rodrigues e Nuno Torres. Mais atmosférico e musicalmente direcionado do que os anteriores— percebemos de fato um conjunto de músicos construindo uma estrutura musical, com momentos e progressões — Amoa Hi é também mais diversificado na paleta de sons. Serialismo drone, em que cada linha se entrelaça com a outra, e assim por diante.
Em virtude deste momento de atividade (e criatividade) intensa, O Cafezinho propôs algumas perguntas para Scarassatti por email, o que resultou em uma entrevista repleta de observações originais e ideias instigantes sobre música, som, arte sonora e, sobretudo, política.
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Fale-nos um pouco sobre como começou, sua principais influências.
Eu comecei tocando saxofone na adolescência. Meu primeiro professor havia feito composição na UFBA e sempre me falava de orquestração, composição, colocava a gravação das suas composições pra eu acompanhar a partitura, colocava também peças do repertório clássico e moderno pra eu escutar, sempre analisando, me mostrando as passagens, a distribuição harmônica na instrumentação. Aquilo me encantava como construção. O saxofone, foi ficando em segundo plano e eu optei em estudar composição musical na graduação.
Tem três compositores, que quando eu os descobri ainda estudante, seja por uma música, um pensamento musical, ou até mesmo uma frase, provocaram em mim essa sensação de epifania e modificaram meu modo de pensar a música. O primeiro deles foi o John Cage e num primeiro momento foi simplesmente a descrição da peça “4’33””. Aquilo redefiniu pra mim o que era ser compositor, como alguém que pode interrogar, pensar e reinventar o que é a própria música no ato de criá-la.
O segundo foi o Alvin Lucier, com o “I’m sitting in a room”. Mais do que a obra em si, o desdobramento a partir dela. Na época eu gravei o som de um botijão de gás e o reproduzia num tape, enquanto o re-gravava em outro aparelho. Fiz isso seguidamente, repetindo várias vezes o procedimento. Aquilo que estava entre os dois gravadores era uma espécie de “fora do campo”, que se presentificava a cada regravação. A cada vez, o meio estava mais intensificado e o som do botijão, distorcido. A possibilidade de atuar sobre o gravado, isso ainda era muito novo pra mim.
Sem dúvida, quando eu me deparei com um artigo do Livio Tragtenberg sobre o Walter Smetak, sem uma imagem, apenas descrições de suas plásticas sonoras e a menção à sua ideia de que era preciso novos instrumentos musicais para uma nova música e para um novo mundo; isso foi determinante pra que eu mudasse completamente minha relação com a música, com os instrumentos musicais, com a composição.
Evidente que há outras influências, algumas que advém de processos de escuta e análise musical, descobertas de procedimentos, outras por empatia com um pensamentos musicais, outras até fora da música, seja na filosofia, ou em outras artes, outros contextos culturais. Mas esses três exemplos são realmente aqueles que produziram algo que de alguma forma carrego no que faço hoje.
Agora é interessante falar sobre influência. Na graduação a gente escuta e analisa muita coisa, está diante de autores fortes e isso faz com que muita gente sucumba e fique estudante de composição a vida toda. Esse é um risco. O que é libertador é quando algumas obras, compositores, pensamentos, concepções de música ou de vida, provocam na gente uma espécie de epifania dando uma compreensão sobre um caminho, algo que nos permite alterar completamente o curso do que queremos fazer. Acho que isso aconteceu comigo.
Quais as ideias e momentos que você considera fundamentais em seu trabalho e seus desdobramentos atuais?
Acho que a relação com o espaço permeia um pouco tudo o que faço. O espaço pensado seja na sua dimensão política, poética, vivida, a sua constituição e a possibilidade de construção a partir dos sons. O meu primeiro trabalho nessa direção foi a composição “Defasagem”, de 1995, para 6 pianos e o prédio do Instituto de Artes da Universidade de Campinas (UNICAMP). Era um misto de instalação, happening e performance em forma de composição. Os pianos ficavam dentro das salas de aula e o público do lado de fora do prédio. Quem estudou e conhece o lugar, sabe que como não havia isolamento acústico nas salas de aula, o prédio ressoava cotidianamente escalas, arpejos, vocalizações, estudos de repertório e o que eu fiz foi atuar sobre esse espaço, nas suas próprias características de uso e alterar a percepção sobre ele.
Outro momento e que foi importante pra mim como vivência, foi o grupo de intervenção sonora em espaços públicos, o Stracs de Harampálaga. Com esse grupo, fiz algumas intervenções em espaços públicos, sempre na perspectiva do terrorismo poético. Tomávamos de assalto esses lugares para entendê-los como espaços sonoros. Uma ação política que partia dos modos de ocupação desses espaços, das práticas sociais e interacionais dentro deles, para depois, devolver a esse espaço de convívio, as sonoridades advindas desses aspectos colocados acima. O espaço era questionado, contestado e redefinido pelo som, pela música, pela nossa performance. Normalmente terminávamos a intervenção distribuindo baquetas a todos presentes para que tocassem o lugar, enquanto nós saíamos deixando as pessoas se apropriassem musicalmente dele.
Outro ponto que acho importante e se relaciona com isso que eu procuro formular em relação ao espaço, é a escuta, pois pra mim, é ela que nos posiciona espacial e temporalmente diante do mundo e de suas manifestações acústicas. Talvez, no conjunto fragmentado que é nossa percepção, seja ela entre os sentidos, que tem uma relação mais forte com um senso de sobrevivência, por exemplo, antecipando o contato com algum perigo, dando inclusive uma possibilidade de cálculo de distância. Penso também que ela é nosso primeiro instrumento musical e o trabalho com os capacetes pra deriva sonora carrega essa ideia. Esses capacetes são objetos relacionais, com canos e sifões que se acoplam a eles e aos ouvidos, filtrando e alterando a escuta dos ambientes. O objetivo é utilizá-los em derivas situacionistas pela cidade, quem os utiliza faz um percurso sendo conduzidos pelos sons que os atrai.
Também me interesso muito pela prática da música improvisada, seja ela coletiva ou individual. Pra mim, a improvisação coletiva, livre e não idiomática é uma forma de política e uma encubadora de sociedades libertárias, um jogo de relações que se coloca, ideias musicais se conflituam, atuam sobre dissensos e consensos, o que torna o ato em si, um experimento de uma arquitetura política.
Ultimamente, tenho me dedicado à prática quase diária da improvisação, como um improviso-diário que escrevo sozinho, como forma de tornar extraordinário aquilo que é ordinário, o cotidiano. Não há afetação nisso, é só uma forma de eu me conectar com um estado, em que pra mim todos os sons ao redor passam a atuar num outro regime.
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Como você chegou à necessidade de construir seus próprios instrumentos?
Como eu coloquei na outra questão, o contato com a obra e o pensamento do Smetak provocou uma espécie de epifania e ficou muito claro que o caminho de busca pela música que eu queria fazer, passava por construir meus próprios dispositivos de se fazer música. E havia também um componente muito forte que era em relação ao procedimento, à estrutura de pensamento em relação à constituição desses dispositivos. Algo relacionado a uma estrutura de pensamento e modus operandi bricouler. Reunir a cada empreendimento, os utensílios, peças, fragmentos de objetos e ideias que estavam ao meu redor e deles compor o novo dispositivo, o novo instrumento. Isso ainda me atrai muito e cada vez mais tenho exercitado reunir um conjunto finito de possibilidades e efetuar trocas entre esses elementos, sem me preocupar em desfazer um instrumento que já está consolidado no seu uso.
Tenho tentado fazer novos instrumentos a partir dos instrumentos que eu já tenho, alterando sua forma, rearranjando os materiais. É um exercício de desapego, porque os instrumentos passam a ser formas transitórias de processos composicionais, tomo cada um desses instrumentos como composições plásticas-sonoras voltadas pra improvisação musical.
Como você percebe a relação entre a música e as apropriações características da “arte sonora”?
Eu sei que existe uma disputa epistemológica em torno da Arte Sonora, mas eu prefiro pensar que esse é um território do entre, e deveria ser acessado livremente, sempre que o conceito não dê conta de lidar com a atualização feita pelas práticas sociais e artísticas em torno desse conceito. Eu gosto de usar livremente “Arte Sonora”, porque acho mais inclusivo, inclui a própria música e isso me permite um trânsito no universo das artes visuais, por exemplo. Parecem dois jardins sem cerca que se misturam ali, no campo da fronteira, permitindo algo novo.
Eu gosto muito do trabalho do Christian Marclay e descobri recentemente as instalações do Yutaka Makino. São perspectivas diferentes, mas às vezes operam igualmente como um bug nas nossas fronteiras sensoriais e simbólicas. Essa é a potência do trânsito nesse jardim do entre.
O Smetak em um dos seus manuscritos, escreve sobre um estágio em que suas plásticas sonoras, seriam silenciosas, isto é, não produziriam som como fenômeno acústico. Isso porque o som, seria sim, produzido na percepção interna de quem visse as três dimensões desse objeto, para delas abstrair uma quarta dimensão, que seria esse som.
Isso pra mim é fundante da arte sonora brasileira e, ao mesmo tempo, é um estágio da vivência musical do próprio Smetak, em que ele parece atingir um estado, ou regime de escuta pleno, no qual você prescinde do som como fenômeno acústico, pra acessá-lo, ou produzí-lo a partir de formas, cores, luzes, texturas.
Pensando no trabalho do Christian Marclay com o EP “The Sound of Silence”, do Simon e Garfunkel, há a produção do som ou da música dentro da percepção e memória do espectador, isso é música ou arte sonora?
No ano passado, você lançou Rios Enclausurados, que é basicamente um trabalho de gravação de campo, mas que adquire, à moda de um Chris Watson, um estatuto quase composicional em relação ao material captado e a ideia de dar voz a esses rios represados pelo “progresso”. Fale-nos um pouco dessa experiência.
Eu me mudei pra Belo Horizonte, em 2010 e minha experiência com a cidade sempre foi muito de escuta. Ainda no primeiro ano, fiz uma deriva sozinho, num sábado a tarde. Eu estava ao lado de uma subsestação de energia que produzia uma baixa frequência. Na rua, um ônibus freiou, do meu lado esquerdo, deixou um zunido agudo no meu ouvido. Eu caminhei mais um pouco e entrei à direita. Logo que eu virei, já escutei um som de rio e eu fui pego de surpresa, porque eu não sabia nada sobre rios canalizados em BH. Olhei no asfalto e vi umas grades por onde escapavam os sons. Era incrível perceber o tremor e a vibração do rio, que durante a semana fica imperceptível aos ouvidos de que vive a cidade.
Desse dia em diante eu comecei a ficar atento ao asfalto e descobri que haviam grades espalhadas pela cidade toda.
Comecei a gravar os rios sozinho, com um gravador digital, normalmente a noite, por causa do trânsito. Eu pensava em fazer com que um dia, a cidade escutasse todos esses rios, amplificando essas clausuras do asfalto.
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Em 2013, comecei a trabalhar com o Fernando Ancil e fizemos uma instalação aproveitando o sistema de difusão sonora, da feira de artesanatos da cidade.
Tínhamos mais ou menos 300 metros da avenida Afonso Pena, com alto-falantes distribuídos pelos postes ao longo da avenida. Foi aí que comecei a escutar o audio das gravações e, intensificar as novas gravações já com o Fernando, descíamos o gravador até bem perto do rio, era o seu ponto de escuta. Cada momento e contextos de gravação eram variáveis, os entornos sonoros principalmente. Algumas cenas eram de um certo abstracionismo sonoro, talvez causado pela intensidade e pela complexidade dessa sonoridade entubada. E esse tubo é também um ressonador dos sons do asfalto, o que cria variações quase imperceptíveis desse contínuo. De vez em quando uma sonoridade escapava e se delineava como algo figurativo, identificável.
A instalação ficou por três meses, uma inundação acústica de um rio aéreo. Alguns moradores reclamaram, mesmo com a presença intensa dos sons do tráfego dessa avenida.
Após a instalação, eu me voltei para os áudios e o Henrique Iwao foi quem insistiu para eu lançar em CD, a composição que fiz com esses cantos. O que fiz foi alternar os diferentes planos de gravação e diferentes volumes de água, as escutas da cidade, de dentro da canalização. As transições são bem lentas e as superposições quase imperceptíveis. São cantos de um rio de dentro de sua clausura.
Quais são as particularidades na criação de Rumor? E de Amoa Hi?
Rumor e Amoa Hi são dois trabalhos que eu gosto imensamente e compõe, junto com uma gravação ainda inédita com o Carlos Zingaro, o Pedro Carneiro e o João Pedro Viegas, as mais importantes experiências musicais que eu tive em Portugal.
A proposta do Rumor, partiu do contato encontro meu com o guitarrista português Abdul Moimême, o trombonista também português Eduardo Chagas e a pianista austríaca Gloria Damijan durante o MIA, um festival de música improvisada que ocorre em Atouguia da Baleia. Nos conhecemos num ano e no outro marcamos uma gravação. Foi um encontro, pelas características musicais de cada um, repleto de prenúncios, murmúrios, quase numa microscopia em que o rumor antecipa a ação.
A escolha do nome se deu por isso. Há também muitos espaços, pois são músicos que tem essa característica. O Abdul tem um trabalho muito singular com a guitarra elétrica, dispondo chapas de metal sobre as cordas para explorar sons texturais advindos da manipulação dessas chapas. A Gloria, trabalhou com um toy piano e outros objetos dentro de um piano, ela tem uma forma muito intimista e econômica de expressar cada sonoridade e o Eduardo explora muito bem sonoridades pouco usuais no trombone. Acho que criamos e habitamos um ambiente sonoro imersivo e o resultado musical reflete isso, na minha opinião.
Já no Amoa Hi, eu tenho a sensação de ter participado de uma música e não tê-la feito, ou executá-la. Foi um encontro que eu esperava muito, com o Ernesto Rodrigues, que tem uma estética muito própria, com muitos trabalhos próximos ao “near silence”. Ele, o Guilherme Rodrigues, no violoncelo e o Nuno Torres, já tem consolidado uma forma muito especial de tocar juntos, uma sintonia incrível, mais do que tocar, sinto como se eles cuidassem do som.
Por outro lado, eu estava fascinado com a imagem da árvore dos cantos sagrados dos Yanomamis, é uma imagem muito potente e, durante essa viagem à Lisboa eu iria apresentar num congresso, um artigo sobre o Pindorama, instrumento coletivo do Smetak, que eu estava justamente relacionando a essa árvore dos cantos. Mas isso só se operou no pensamento, não conversamos sobre isso, apenas tocamos.
Quando eu comecei a receber o material gravado que o Ernesto estava mixando, redescobri aquele momento da gravação como no princípio da arte da memória, em que o Simônides recordou-se dos lugares em que os convidados ocupavam durante o banquete em que o teto desmoronou. Todas as situações das improvisações ficaram muito presentes pra mim, a cada som emitido, abriam-se ângulos sonoros, dando a ele profundidade e perspectiva, além de um movimento textural que interligava os diversos momentos da improvisação.
Nessa escuta, o que me vinha de abstração era a descrição pelo Davi Kopenawa, na Queda do Céu, em que as árvores os cantos eram plantadas pelo demiurgo yanomami, Omama, e delas, no ritual de iniciação do xamã, eram retirados os cantos, escutados e colocados em espécies de gravadores.
Como sua trajetória de certa maneira se encontra marcada por este termo, fale-nos sobre o estado da chamada “música experimental” no Brasil. Por que ouvimos falar mais desse termo hoje em dia?
Eu posso estar enganado, mas creio que a música experimental brasileira, com suas idiossincrasias e também guardadas as proporções, diferenças históricas e políticas, vive um pouco o clima que envolveu o punk brasileiro, já na sua segunda geração, em que havia muita troca de cassetes, pequenos festivais, núcleos independentes que aglutinavam pequenas cenas locais. Evidente que sem a animosidade e violência das gangues, tampouco a contundência e posicionamento político, o que é uma pena. Mas há sim um clima de vamos fazer a coisa acontecer, vamos criar uma cena, vamos trocar, tocar juntos e, principalmente criar uns veios capilares de distribuição e circulação de trabalhos, fora do estabelecido.
Eu especulo que alguns fatores convergiram pra que o termo música experimental esteja circulando mais. Um deles é o esgotamento dessa ideia e cadeia produtiva de matriz européia, em que o compositor vai compor algo que será interpretado por instrumentistas, grupos de câmara ou orquestras, e terá sua estréia numa sala de concerto, com palco italiano e tal. Essa importação de modelo, nunca funcionou plenamente aqui. Me lembro que desde a época da minha graduação, era difícil conseguir montar grupos para execução de alguma ideia musical que você tivesse. Além do que, isso está cada vez mais perdendo o sentido. O compositor, foi se metamorforseando em artista sonoro e performer do seu próprio trabalho, não só na veiculação do seu discurso musical, mas na criação dos seus dispositivos para fazer a sua música. E nisso o Smetak foi pioneiro, lá na década de 1960, mais no sentido da prática do que no uso do termo. A ação dele, criando seus próprios instrumentos e improvisando com seu grupo, acho que inaugura essa prática no Brasil.
Os computadores pessoais, a possibilidade de fazer processamento do som em tempo real, assim como o hackeamento dos dispositivos eletrônicos também entram nesse conjunto de vetores que estética e historicamente foram se aglutinando na formação dessa forma de atuação processual, experimental que se opõe à ideia do concerto, do programa, da execução de uma obra. Acho que hoje a ideia da obra é muito mais do opus alquímico, como um processo de transformação dessas matérias no mesmo tempo em que se processa a transformação dos sujeitos que atuam sobre elas.
Sinceramente, eu penso que o experimental vai ao encontro do desejo de estruturar um modo de estar no mundo, que a gente precisaria assumir cada vez mais, o inacabado, a bricolagem e o processo como formas de estruturação do pensamento, da política e das nossas poiesis cotidianas e artísticas, assim como penso que, nas universidades, as músicas e saberes de matriz ameríndias e africanas, deveriam sair do campo da antropologia e etnomusicologia, para serem incluídas como formação musical e do nosso pensamento.
É difícil cercar os por quês do termo música experimental estar sendo cada vez mais falado, seria preciso mais tempo e elaboração, mas creio que passe por algumas dessas questões que eu coloquei.
Para finalizar, conte-nos um pouco sobre seus próximos projetos.
Eu devo lançar ainda esse ano uma parte do Improviso-diário, que são gravações que tenho feito em casa, como um diário mesmo só que de improvisações e escutas dos arredores, moro bem na entrada do Aglomerado da Serra, em BH e é incrível a sonoridade do local.
Outra ideia que quero levar adiante, só que no próximo ano é uma instalação para praças de grandes centros, em que construo totens de caixas de som, como uma floresta de alto-falantes. Quero gravar sons da Mata Atlântica e instalar a floresta nessas praças dos centros urbanos.
Eu faria também agora em agosto um trabalho com o Henrique Iwao, que envolvia a escuta através dos capacetes sonoros e a difusão, discotecagem da captura dos sons dessa escuta, devolvendo ao público aquilo que é filtrado pelos capacetes. Porém o governo golpista que nos obriga a uma incursão à república velha, cortou a verba da Funarte que faria uma programação de música experimental durante os jogos olímpicos.
*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).
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