Atriz, hostilizada em ato pró-impeachment em Curitiba, diz que “criar bodes expiatórios não é solução para a crise” (Foto: André Stefano)
por Camila Moraes, no El País
Quando discursou contra o impeachment de Dilma Rousseff em um ato organizado por artistas e intelectuais no fim de março, Letícia Sabatella (Belo Horizonte, 1971) expressou sua preocupação com os rumos da democracia brasileira. Fez o mesmo quando se encontrou com o Papa Francisco, que a recebeu no Vaticano e lhe prometeu “orar pelo povo brasileiro”. Mesmo em estado de alerta, a atriz não esperava ser hostilizada e viver na pele reações violentas como as que experimentou no último domingo em Curitiba, onde cresceu.
Letícia Sabatella, que se declara “de oposição ao Governo de Dilma” e há anos é ativa na defesa de diversas causas sociais e ambientais, foi atacada verbalmente e fisicamente por manifestantes pró-impeachment que a cercaram em uma praça no centro da cidade. “Puta”, “vagabunda” e “chora, petista” foram alguns dos gritos histéricos que ouviu enquanto policiais a protegiam do assédio, registrado por ela em vídeo.
Para a atriz, que fez boletim de ocorrência na polícia e nega qualquer provocação de sua parte, os brasileiros são hoje incitados a um discurso de ódio. “É doloroso de ver”, lamenta Leticia – que falou ao EL PAÍS por telefone de São Paulo, onde participa de um espetáculo teatral do grupo Satyros junto com imigrantes haitianos.
Pergunta. Você sofreu agressões no último domingo na rua, em Curitiba. Por que você acha que as pessoas reagiram desta maneira à sua presença?
Resposta. Estamos vivendo um exercício de intolerância e de autoritarismo muito grandes. As pessoas estão sendo incitadas a isso por vários discursos de ódio no nosso país. E acabam achando que esse é um modo de ser cidadão, de ser politizado. Como se fosse uma torcida ensandecida de futebol. É acreditar que, para viver bem, o outro, diferente de você, não pode viver. Isso é o mais doloroso de ver.
P. Como você vê o Brasil hoje?
R. Estou fazendo um espetáculo agora junto com haitianos e o Grupo Satyros. As experiências que eles enfrentam, as dificuldades como estrangeiros no país, são inúmeras. Mas estão trabalhando pelo Brasil também, não estão sugando do país. Tenho refletido muito sobre meu país trabalhando com os haitianos. E minha convivência com índios, com pessoas do campo e de outras realidades me permitem enxergar uma diversidade em um lugar que, para ser governado, precisa de muita sabedoria. Estamos vivendo uma crise dessa sabedoria, da diversidade que é ser brasileiro. Há quem não aceite essa diversidade, quem acha que se pode calar, excluir, oprimir… pisar em cima do outro para existir.
P. A crise brasileira é política, econômica e inclusive institucional. De que maneira ela atingiu as pessoas, fazendo-as agir como pessoas em crise?
R. Para mim, tem a ver com a fomentação de um discurso de ódio. As pessoas que estavam me xingando estão embasadas por inverdades, achando que têm o direito de agir desta maneira. Há um desejo de morte, de aniquilação. O que eu experimentei foi isso, o desejo daquelas pessoas de que eu não existisse. Eu não tinha ido fazer uma manifestação dentro da manifestação deles. Muitas pessoas passaram na rua ali, além de mim. Se você faz um ato na rua, é para chamar a atenção para aquilo que você quer tratar como causa, para que outros possam se interessar por aquilo que tem a dizer. O que leva essa crise às pessoas é querer impor uma solução que faz bem só a si. Para resolver uma situação, em lugar de resolver o problema – fazendo uma reforma política, no caso do nosso país – as pessoas criam bodes expiatórios, desviando o foco. O bode expiatório vai ser aquele que elas vão malhar e destruir, até sentir que fizeram a sua catarse… Mas ninguém resolveu o problema. Não solucionaram a crise. Só destruíram alguém.
P. Entre os xingamentos que você escutou, estava o de “puta”. Por que as mulheres costumam servir de bode expiatório, em qualquer contexto?
R. O que eu vi ali, com os xingamentos diversos – de puta, vagabunda, vadia, ladra… –, foi uma necessidade de desconstruir uma pessoa e, sem importar sua diversidade, de construir um objeto, algo que pode ser estigmatizado. Acho que tem uma ignorância ali, naquele senhor que me disse isso. Não consigo sentir ódio dele, apesar de, claro, ter ficado incomodada. Apontei a câmera para ele, quando estava filmando o que acontecia, até que ele me visse e falasse olhando para mim. As pessoas nem me viam, só falavam impondo o que elas queriam ver. Como se me chamar de puta fosse me tornar menor.
P. Como artista, você teme pelas idas e vindas no atual Governo do Ministério de Cultura? Ele começou como foco de resistência ao interinato e agora balança com demissões.
R. Minha preocupação maior é a hipocrisia. Que se tape o sol com a peneira em relação às coisas nas quais precisamos realmente mexer. Querem empreender uma purificação, longe de ser uma melhoria, algo que traga a plenitude de ser brasileiro, com a cultura, a diversidade e a riqueza que são próprios do nosso povo. Como cidadã e atriz, acho que esse é o momento de eu me posicionar. Claro que eu gostaria de ser aceita por pessoas da minha cidade, mas me seria muito incômodo se isso acontecesse por corroborar um comportamento hipócrita. Prefiro antes ser honesta, ética, e acreditar que, por mais dificuldades, lanço uma semente que irá se fortalecer.
P. É ainda mais importante para você se posicionar sendo uma figura pública?
R. Sempre demandam uma opinião da gente, então acho importante que ela seja verdadeira. Não sou política, sou cidadã, e é a minha posição política que me cabe. Em respeito a tantas pessoas que carecem desse espaço de visibilidade é que exerço minha cidadania. Se me protejo e não em envolvo demais, ficando acima do bem e do mal com meu trabalho, não tenho nada a perder. Se me posicionar, tenho mais a perder – ainda que ganhe em liberdade. Faço isso no sentido de dar a voz a quem precisa dela, porque somos um coletivo.
P. Você é contrária ao impeachment e, ao mesmo tempo, faz oposição aoGoverno de Dilma Rousseff. O que você gostaria que fosse o desfecho da situação atual?
R. O que eu gostaria que acontecesse é que a gente retomasse a democracia, fizéssemos a reforma política e nos preparássemos para uma boa eleição – e uma mudança de quadros no Congresso – em 2018. É o melhor dos mundos, a meu ver, neste momento.
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