Bem-vindo ao deserto do real
por Patrick Mariano, no Justificando
Em 15 de junho de 1971, o Parlamento inglês aprovou o decreto da então ministra da educação, Margareth Thatcher, que visava cortar o fornecimento de leite para as crianças acima de 7 anos em todas as escolas públicas primárias da Grã-Bretanha.
A medida fazia parte de um conjunto de ações de cortes de despesas. Thatcher, e isso só se soube depois, cogitava outras iniciativas singulares como a de cobrar pelo empréstimo de livros de bibliotecas, aumentar as taxas de ingressos de museus e das refeições escolares (esta última integrou o pacote). Anos depois, já como primeira ministra, Thatcher perseguiu sindicatos, privatizou estatais e implantou políticas de austeridade.
A medida de cortar o leite das crianças talvez tenha sido a mais representativa da racionalidade neoliberal daqueles tempos. Pífia do ponto de vista econômico, saídas como essa demonstram o perverso lado deste pensamento ideológico. O mantra “cortar gastos” e reduzir o tamanho do estado (palavras chaves para justificar ataque a políticas públicas), tem produzido estragos por aqui também.
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O governo interino pode cortar até setembro a internet de 740 unidades de universidades do interior do país [1]. A verba destinada à Rede Nacional de Pesquisas caiu de R$ 258 milhões em 2015 para R$ 126 milhões em 2016, o que representa um corte de 51%. Presente em todos os estados brasileiros, o cabeamento de alto desempenho é responsável por levar conectividade a mais de 1.200 campi universitários. É o que possibilita aos alunos das federais terem aulas por videoconferências e contato direto com a comunidade acadêmica internacional.
Na última terça, o ministro interino da cultura exonerou 81 servidores comissionados da pasta com a justificativa de “desaparelhar” o órgão e reestruturá-lo. Dentre as medidas de “desaparelhamento” e reestruturação do órgão está a troca da diretora da Cinemateca Brasileira, Olga Futemma, por Oswaldo Massaini Filho.
Desaparelhar, na linguagem do neófito ministro, significa substituir indicados a cargos de assessoramento por razões “políticas” e colocar no lugar servidores de carreira.
No entanto, uma pesquisa rápida nos jornais revela que o recém nomeado diretor da Cinemateca responde a processo pelo crime de estelionato, quando geriu investimentos da apresentadora Márcia Goldschmidt. Para o ministério público, Massiani Filho falsificou extratos de investimentos com dados falsos para subtrair recursos financeiros da apresentadora. [2]
A ironia é que Olga Futemma, a exonerada na ação de “desaparelhamento”, é servidora de carreira, tendo se dedicado à Cinemateca desde 1984, enquanto o indicado pelo ministro para o seu lugar não é servidor público, muito menos atua no campo da cultura audiovisual [3]. Logo se vê, de pronto, que o neoliberalismo golpista tem como faceta o desapreço à ética e a moralidade pública. Sequer é capaz de sustentar o próprio discurso.
Na prática, as medidas do ministro interino são puro embuste e, para além da desastrosa troca na Cinemateca, a exoneração dos servidores terão como efeito concreto a paralisação de relevantes políticas públicas de acesso à cultura.
Outra face desse neoliberalismo aético e imoral é a seletividade nos cortes. Recentemente, em plena chamada “crise econômica”, o governo interino autorizou a aprovação do aumento salarial de 41,47% para os servidores do judiciário e de 12% para analistas e técnicos do Ministério Público da União, com impacto somente este ano nas contas do governo de 2 bilhões.
42,04% da riqueza brasileira vai para o setor financeiro em juros e amortizações da dívida pública, 4,11%, em saúde, 3,49%, em educação e, pasmem, 1%, no Bolsa Família.
Aos delegados da Polícia Federal que irresponsavelmente ameaçaram greve durante as Olimpíadas, foi firmado acordo com o Ministério do Planejamento para um reajuste de cerca de 35% a 40% a depender da classificação do servidor. O documento previa que o salário de um delegado da categoria especial passaria de R$ 22.805,00 para R$ 30.936,91. Já a remuneração de um que está na base hierárquica da corporação saltaria de R$ 16.830,85 para R$ 23.692,74.
Enquanto Judiciário e Polícia Federal reajustam seus salários, a CNI defende jornada de trabalho de 80 horas semanais, a reforma da previdência e o projeto que flexibiliza a terceirização só espera o recesso parlamentar para retirar direitos dos brasileiros. No neoliberalismo golpista, patrões, delegados e integrantes do Judiciário se refestelam com as benesses do dinheiro público, enquanto as massas de trabalhadores sentem o peso de decisões perversas e pífias do ponto de vista da macroeconomia. Sintomático que empresariado, Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal atuaram, seja por inação ou ações concretas, pela derrubada do governo Dilma.
Em editorial, o jornal O Globo defendeu, assim como Thatcher defendia cobrar pelos empréstimos de livros, a cobrança de mensalidades na universidade pública. A receita, como se vê, é antiga, mas, após o desastre do neoliberalismo na Inglaterra e na américa latina, havia certo constrangimento na defesa da sua implementação. Agora não há mais.
Contribuiu para esse descaramento a desastrosa opção feita pelo governo Dilma, no início do ano passado, em nomear Levy para gerir a economia e defender um patético “ajuste fiscal”. Refrescando a memória, Levy chegou a dizer, publicamente, sem qualquer reprimenda da chefe: “Precisamos fazer o que fez a Inglaterra, por exemplo”.
Por óbvio, havia tensões e contradições dentro do governo Dilma que impediam ou constrangiam o aprofundamento da implementação da cartilha neoliberal. Com o golpe, essas tênues e desgastadas resistências internas na gestão pública se esvaíram.
Atacar o leite de crianças, cortar a internet de universidades, cobrar pelo ensino público, reduzir o número de ministérios e servidores são ações demagógicas, mas pensadas cuidadosamente para encobrir aquilo que Atílio A. Boron revela como fratura exposta da nossa economia.
Neste estudo [4], o professor argentino aponta que 42,04% da riqueza brasileira vai para o setor financeiro em juros e amortizações da dívida pública, 4,11%, em saúde, 3,49%, em educação e, pasmem, 1%, no Bolsa Família. Mas isso não se discute. É mais fácil deixar crianças sem leite e estudantes sem internet.
Bem-vindo ao deserto do real.
Patrick Mariano é escritor. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.