por Marcelo Semer, no Justificando
Entre as inúmeras faixas exibidas nas primeiras manifestações pelo impeachment, bem antes do vocabulário brasileiro ter incorporado a expressão pedalada fiscal, uma despertava particular perplexidade. Embora se dissesse que as críticas contra o governo Dilma fossem lastreadas em supostos atos de corrupção de alguns agentes ou por fracassos na economia, a faixa exigia o fim de algo muito maior. Era ridícula e ao mesmo tempo reveladora.
Teríamos compreendido melhor o que se passava sob nossos olhos se tivéssemos prestado mais atenção aquele esgarçado pedaço de pano em que estava escrito “Basta de Paulo Freire”.
Talvez pudéssemos convencer até os mais reticentes de que não era mesmo sobre corrupção de que tudo aquilo se tratava; muito menos um julgamento sobre a ineficiência econômica. Teríamos nos preparado melhor para o macartismo que estava prestes a ser desfraldado sob o enganoso e mercadológico nome de Escola Sem Partido.
Desvelada a ausência de autoria da presidenta em expedição de atos impugnados, pela perícia da Comissão de Impeachment, e o pouco divulgado arquivamento pelo MP de eventual crime pelas malfadadas pedaladas; ampliado com larga manobra parlamentar o déficit público, a ponto de caber nele todos os pretendidos reajustes salariais e descortinadas conversas que evocavam a deposição de Dilma para estancar a sangria investigatória, é muito difícil quem ainda defenda, de boa-fé, a normalidade jurídica do impedimento.
Mas isso pouco importa para um fato que já se expõe como consumado. Michel Temer é evocado diariamente na mídia como o “presidente”, a despeito de jamais ter sido empossado. O julgamento no Senado até deixou de ser um blockbuster, cujo lançamento se espera com frenesi.
Ninguém estranha mais o fato de um governo interino ter alterado de forma tão abrupta o manejo da política, sem ter sido submetido a qualquer outro crivo das urnas. O golpe perfeito, a mais profunda ruptura ideológica de gestão sem submissão a qualquer eleição, deixou de ser até mesmo uma questão de tempo.
Todos os projetos que o governo eleito evitou ou contra os quais se indispôs expressamente estão agora lançados à mesa; do gigantismo do estado policial à fragilidade das leis trabalhistas. A condução das relações exteriores é o nítido exemplo de um cavalo-de-pau em transatlântico que até o presidente Lula teve receio de produzir.
Não é a ideologia que está em risco, mas uma ideologia específica
Mas nada é tão revelador deste golpe do que o programa-símbolo dos cronistas entusiasmados e dos ideólogos redentores, o tal Escola sem Partido. Sinal de que os novos corsários sonham em conquistar não apenas o poder, mas corações e mentes que paulatinamente perderam no legado ditatorial com que foram por muitos anos identificados.
Desde 2013, temos visto inúmeras manifestações “sem partido” expulsando das ruas movimentos sociais ou integrantes de partidos de esquerda. O Escola sem Partido pretende fazer o mesmo com os professores. E ainda mais.
Hoje já se sabe que aquele tal MBL recebeu dinheiro do PMDB; e se vislumbra sem muito esforço que o Escola sem Partido é, de outro lado, com muita Religião. Tanto faz. O que importa é devastar o pensamento crítico e fulminar a alteridade. O fascismo vê o pensamento e a crítica como inimigos a que deve abater de imediato.
Como não eram os partidos que deveriam sair das manifestações, mas o partido, também não é a ideologia que está em risco, mas uma ideologia –a que enxerga luta entre classes e não vê o mundo róseo, como um grande e irmanado consenso, pronto a afastar condutas dele desviadas.
Ações judiciais contra centro acadêmicos, contra o uso das universidades como campo de discussão política, contra professores que ensinam matérias, textos ou autores críticos. Tudo isso já veio como trailer do trem fantasma que se prenuncia.
Pouco importa se não é possível sonegar revoluções da história, tirar Marx da Economia ou da Sociologia, expungir a censura e a violência dos anos de chumbo ou esconder o genocídio urbano de jovens negros e pobres com que convivemos.
A ideologia que sai dessa nova lousa é, sobretudo, um photoshop da realidade. Um estandarte da falsa neutralidade, com que a aula começa, justamente, por esconder a ideologia.
Chega de estudante que interrompe aula para convocar assembleia, de coletivos que defendem minorias, de professores que acumulam críticas ao que quer que se interponha a uma imediata e profunda imersão do estudante no mercado.
A ideologia da nova escola deve estar apenas recheada de “bons valores”, caros aos “cidadãos de bem”, à pátria e a Deus.
Paulo Freire é hoje o terceiro pensador mais citado em trabalhos acadêmicos mundo afora. Basta, o Escola Sem Partido pretende acabar com tudo isso também.
A hora é da Pedagogia do Opressor.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia. Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.