Por Bajonas Teixeira de Brito Junior, colunista de política do Cafezinho
Caso aceitemos em silêncio casos como esse dos “terroristas amadores”, com certeza não demorará nada para que toda imprensa alternativa seja varrida do mapa e seus porta-vozes trancafiados. Quem dá suporte a esse tipo de ação midiática é justo aquele grupo – a Globo, a Folha, o Estadão, a Veja, etc. – que, de modo sistemático, vê os blogs como os inimigos públicos N? 1.
Matéria da Folha de hoje, nos informa que a Polícia Federal, usando uma “técnica de monitoramento”, infiltrou um agente num ‘grupo’ e essa foi a base da investigação que levou à prisão do “grupo terrorista”. Esta é uma informação muito preocupante. Não só pelo que nos dá a saber, mas também pela forma naturalizada, acrítica e à vontade com que a Folha a apresenta.
Mundialmente conhecida e repudiada, a técnica do agente infiltrado, que foi celebrizada pelo nome dado na França, “agent provocateur”, isto é, agente provocador, faz parte do acervo de ignomínias criado pelo gênio humano. Seus riscos para os direitos humanos são evidentes, já que a possibilidade de um provocador induzir, ludibriar, injetar suas provocações como sendo a dos acusados, é muito grande.
Todos sabe que, em grupo, as pessoas são muito mais fáceis de persuadir e influenciar.
O uso de infiltrado apenas é tolerado em regimes autoritários, ou em situações muito especiais, e marca as faces mais obscuras dos estados totalitários ao longo do século XX. No Brasil, o exemplo mais notório é o do cabo Anselmo, que à serviço dos órgãos de segurança, insuflou a Revolta dos Marinheiros, que funcionou como um dos pretextos para o golpe de 64.
Além disso, a tradição jurídica repudia esses métodos porque eram os preferidos da Gestapo, da Okhrana, da Cheka e da KGB.
Desde que um agente é infiltrado, o mero desejo de mostrar serviço, de levar aos seus superiores notícias promissoras para a investigação, coisas que podem ter muito significado para sua ascensão na carreira, tendem a fazer com que incite o grupo dentro do qual entrou a agir. Ele não é mero observador neutro e inerte. Por isso o risco de criação de um caso ex nihilo (a partir do nada) é muito grande. Mas ele cresce mais ainda na medida em que as tentações dos superiores de fabricar um caso, quando um agente está infiltrado, são muito grandes.
Na verdade, é profundamente surpreendente que o material produzido pelo agente infiltrado, nesse caso do suposto grupo terrorista brasileiro, em todas as interações que travou com o tal grupo, não tenha vindo à tona imediatamente no dia em que foram anunciadas as prisões. [Aliás, se a relação com o grupo foi apenas por meio digital e à distância, não apenas um agente, mais vários, podem ter representado o mesmo papel de personagem virtual. Diversas personalidades travestidas em uma única personagem.]
Segundo a Folha, “o acesso às conversas rendeu farto material à investigação”. Ora, por que nada desse farto material foi apresentado ao público? É claro que, como justificativa para as prisões, que foram aceitas por um juiz, estamos inclinados a pensar que as conversas (sem a qualquer indução provocada pelo agente infiltrado) demonstram cabalmente as intenções de cometer um ato.
Mas essa nossa inclinação a acreditar no discurso das autoridades não é prova, ao contrário, é índice da facilidade com que o estado, ao qual damos crédito pelo respeito à credibilidade concentrada nos agentes do estado, pode nos enganar. Hoje, na era da dessacralização geral, cremos mesmo que não só o público, mas os próprios agentes públicos, costumam cometer erros.
Nós, como público, estamos de boa vontade inclinados a aceitar quando o estado fala através da voz das autoridades. No caso, nos é dito que havia um “grupo” (com que grau de unidade, já que o próprio juiz recusou aceitar tratar-se de uma “organização terrorista”?), que esse “grupo” iniciava “atos preparatórios” (quais atos? Onde e quando? Com que meios?). No entanto, há vários buracos não preenchidos nessa narrativa. Ou melhor, tudo nela é buraco. Não sabemos que motivações teriam para o ataque, quais eram seus alvos preferenciais, que fontes de financiamento (reais, possíveis ou imaginárias) dispunham, de onde tirariam suas armas.
O ministro da Justiça, e também o da Defesa, afirmaram que as prisões foram feitas quando começaram os atos preparatórios de uma ação terrorista. No G1:
“Mas obviamente que não podemos – nenhuma força de segurança – ignorar isso. […] Só o fato de começarem atos preparatórios, não seria de bom senso aguardar para ver, e o melhor era decretar a prisão deles”, afirmou o ministro [da Justiça].
Bem, o fato é que na lei antiterrorismo (LEI Nº 13.260, DE 16 DE MARÇO DE 2016) o caput do Art. 5?, referente aos atos preparatórios, ao que tudo indica para evitar os riscos de erros do estado em assunto tão grave, punido como penas tão elevadas, tem uma redação muito clara: “Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito”.
O ministro deveria ter apresentado à opinião pública as provas desse “propósito inequívoco de consumar tal delito”. Por que nada foi mostrado de forma a não deixar pairarem dúvidas? Ele fala em atos preparatórios. E, contudo, diz que se tratava de uma “célula absolutamente amadora”, porque não tinha “nenhum preparo”. O que mais precisamos para ver crescerem as interrogações?
A matéria na Folha diz que a PF possuiria esses dados relevantes:
“A Folha apurou que, com essa técnica de monitoramento [agente infiltrado], as forças de segurança reuniram elementos suficientes para comprovar que os simpatizantes das facções extremistas migraram de meras manifestações de apoio ao Estado Islâmico aos chamados atos preparatórios, o que sustentou a realização das prisões na última quinta (21).”
Por que nenhuma informação foi divulgada sobre isso? É necessário dar publicidade aos documentos (diálogos, fatos, encontros, etc.) que compõe a materialidade do crime. Não só por transparência, mas principalmente para que não restem dúvidas de que não estamos diante de um caso de indução artificial. Os dados tem que comprovar “o propósito inequívoco de consumar tal delito”.
Portanto, ao que parece, sem ter como perfurar os códigos do Telegram e do WhatsApp, quebrando seu bloqueio, caminho insuperável no nível ainda incipiente da técnica local, usou-se um meio mais modesto, uma espécie de ponte, de prótese, o agente infiltrado para executar os fins da operação Hashtag. Tão sutil como o antigo tratamento por eletrochoque.
Na época em que chegaram ao Brasil as dentaduras, as próteses, eram vendidas como solução segura para um sorriso perfeito. Foi nos anos 40, quando se popularizaram. Não se notava na época, contudo, que esse sorriso denunciava o usuário, justamente por ser perfeito. Perfeito demais.
O ministro da Justiça, na sua gestão à frente da Secretaria de Segurança de São Paulo, era chamado de Kojak em alguns meios policiais, ao que parece em razão de sua paixão midiática. O juiz do caso, pelo que ele mesmo declarou, assistiu a filmes sobre o EI, e até fez uma exibição do seu conhecimento para a repórter Bela Megale (durante a entrevista feita com ele perguntou à repórter: “Sabe o que Isis significa?” e ele mesmo respondeu: “Islamic State in Iraq and Syria”). E, claro, o policial infiltrado representou o seu papel, fazendo-se passar por um extremista. Tudo, portanto, às vésperas de do maior evento televisivo mundial, traz os traços de show e de exibição midiática.
Mas e os figurantes nessa fita de baixo orçamento e péssima direção? Os figurantes, involuntariamente contratados para esse show, tem nome, família, alguns têm filhos, empregos, enfim, uma vida. Como fica tudo isso? Quem vai endireitar o que a hashtag está entortando, se ela estiver entortando?
Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas, e professor do departamento de comunicação social da UFES.