(Foto: Cova da Louca).
Análise Diária de Conjuntura – 22/07/2016
Como já vínhamos prevendo há várias semanas, a Lava Jato prepara o terreno para a consolidação do golpe, oferecendo carne nova aos abutres da opinião publicada, através da delação premiada de João Santana e Monica Moura.
A “força-tarefa”, na qual deveríamos também incluir a mídia, não escondeu por nenhum minuto que se tratava de tortura prisional. A colunista Monica Bergamo, candidamente, chegou a se gabar hoje no Twitter, de que havia divulgado semanas atrás que a delação ocorreria, e que a Lava Jato somente aceitaria a delação de Mônica se esta viesse junto com a de seu marido.
Do jeito que fizeram, é uma coisa muito fácil. Pode ser feito até aleatoriamente. Prenda-se um marketeiro político qualquer e deixe-o apodrecer na cadeia até que ele dedure algum cliente para o qual tenha prestado serviço. Se quiser ser mais eficaz e mais rápido, prenda-se também seus familiares.
Naturalmente, em se tratando do sistema judicial brasileiro e, em especial, da Lava Jato, operação coordenada pelo premiado Sergio Moro (prêmio da ultradireitista Times, americana, e da Globo, que dispensa apresentações), o marketeiro tem que ser do PT.
Os números fraudados do Datafolha geraram protestos. O ganhador do Pullitzer, Glenn Greenwald, assinou reportagens cheias de perplexidade. Seus colegas correspondentes internacionais manifestaram incredulidade no Twitter: como é possível, indagavam uns aos outros, um cinismo tão grande, não pode ser, deve ser apenas um erro gigante, incompetência.
Mas a mídia brasileira há tempos parou de se importar com sua “reputação”. Ela calcula que o poder vale mais que isso. E Michel Temer é a mídia no poder.
A Folha fraudou sua própria pesquisa e tudo ficou por isso mesmo. Ponto final.
33 parlamentares norte-americanos, em conjunto com importantes organizações sindicais, protestam contra o golpe. A imprensa brasileira simplesmente ignora.
A população brasileira é vítima de uma manipulação monstruosa, só vista em romances de ficção científica.
Já é tempo inclusive de pararmos as brigas contra “coxinhas” e entendermos isso. A coisa saiu, há tempos, do campo do proselitismo ideológico.
É bandidagem midiática explícita. Os coxinhas são vítimas. Um dia, mais próximo do que imaginamos, eles serão nossos parceiros na luta contra os delinquentes da mídia.
Vejam o ódio aos blogs, por exemplo. Por que isso, se os blogs evidentemente não tem nenhum poder de fogo financeiro para fazer frente à máfia da mídia, formada por bilionários, nem alcançam as massas, do jeito que faz a televisão?
Ora, é o ódio da ditadura. Em 1964, os intelectuais perseguidos também não chegavam às massas. A troco de que perseguir intelectuais que protestavam contra o golpe através de jornalzinhos impressos em mimeógrafos? Era óbvio que não se derrubaria a ditadura com esse tipo de material, e, mesmo assim, o aparelho do Estado mobilizava uma quantidade inacreditável de recursos para monitorar e reprimir qualquer tipo de oposição.
Distribuir um zine na faculdade era uma subversão digna de tortura e morte!
Não acredito que a coisa chegará a esse ponto dessa vez. Mas o novo governo tem uma personalidade autoritária, isso é inegável. A decisão de cortar a publicidade de todos os veículos que não pertencem ao consórcio golpista, e logo na primeira semana, mostrou que a perseguição se concentrará na tentativa de asfixiar financeiramente a dissidência.
O golpe tentou se disfarçar de legal. A censura vai pelo mesmo caminho.
A ditadura militar também fez isso. Não houve apenas repressão. Houve também perseguição econômica. Além disso, as décadas 80 e 90, com a abertura política, foram muito duras para o jornalismo independente, porque o cenário econômico adverso impedia qualquer tipo de empreendimento de pequeno porte, e não havia financiamento para nada que não fosse chancelada pela grande mídia.
Por outro lado, não dá para negar que o status quo é coerente. A imprensa golpista defende… o golpe. O governo golpista só tem aprovado medidas que beneficiam a classe média que o apoiou. Reduziu o percentual do imposto do envio de dinheiro ao exterior de 25% para 6%, ampliou o crédito da Caixa para imóveis de até 3 milhões de reais, e está liberando todas as emendas de parlamentares que apoiaram o golpe.
É também um governo incrivelmente vingativo, como se esperaria de um governo ilegítimo. Os governadores que tentaram impedir o golpe, como o do Maranhão, estão sendo discriminados sem dó. Que diferença de Dilma Rousseff, republicana até a raiz dos cabelos!
O judiciário, setor essencial ao golpe, recebeu reajuste de 41%, sancionado agora por Michel Temer. Enquanto isso, funcionários públicos de outras categorias permanecem à míngua.
Há uma justiça poética nessa coerência golpista. Uma beleza brutal e sangrenta. A militância antigolpe até conseguiu mobilizar uma quantidade impressionante de gente, que saiu às ruas para protestar. Mas é sabido que o Estado, quando se junta ao núcleo da elite, não liga para nada. E o setor golpista conseguiu, enfim, construir uma massa de apoio substancial na sociedade.
É justiça poética porque a esquerda brasileira cometeu erros, que se aprofundaram até o limite no segundo governo Dilma. Erros que perduram até hoje. Em meio à maior crise de sua história, o PT não consegue produzir quase nada em termos de mobilização intelectual ou social. Setores esparsos da militância de esquerda lançam livros, promovem alguns debates e encontros, mas o PT mesmo não faz nada. Contam-se nos dedos de uma só mão os parlamentares que fazem a batalha diária de ideias. Onde estão os outros?
Em cada operação midiática, como esta delação de João Santana, tínhamos que ver as lideranças do partido vindo à público, às redes, para conversar por horas com a militância e a sociedade, para defender o partido, o projeto, e denunciar as violências judiciais. Não há nada porque não há lideranças. Nem esforço para formá-las.
Nos últimos anos, o PT realizou festas de 35 anos, de 36 anos, realizou eleições internas, e não conseguiu mostrar nenhuma energia criativa.
Com a luta contra o golpe, pudemos ver que a esquerda conta com um patrimônio intelectual poderoso. São milhares e milhares de cérebros querendo ajudar o Brasil, querendo vencer a reação conservadora. Por que essas pessoas não foram mobilizadas antes? Por que não há um esforço concentrado, institucional, para manter essa mobilização no cenário pós-golpe?
O PT tornou-se um partido incrivelmente fechado. O conceito de comunicação mostra isso. Por exemplo, ao invés de investir num portal aberto a todas as forças de esquerda, canalizando as energias intelectuais dispersas pelo país, ele criou a “Agência PT”.
Você entra no site do PT, no oficial e no não-oficial, e são sempre os mesmos nomes a dar opinião sobre todas coisas. É uma panelinha medíocre, totalmente incompatível com a magnitude das forças progressistas do país. E não há uma saudável e necessária auto-crítica.
Tudo isso explica o golpe, porque onde não há crítica, não há inteligência, nem criatividade, nem mudança.
Os petistas, porém, não querem “lavar a roupa suja em público”, e fazem suas críticas em grupinhos fechados, e aí nada muda, porque os mesmos capas pretas se beneficiam da pasmaceira. O pretexto de que “não é o momento” é usado ad infinitum, desde que o partido chegou ao poder e passou a sofrer ataques pesados da mídia e das castas burocráticas.
A crise representa, como no ideograma chinês, um perigo e uma oportunidade. A esquerda brasileira não vai morrer, porque ela renasce necessariamente das contradições do nosso sistema econômico e político. Mas os partidos podem morrer, ou perder o seu sentido histórico, sendo substituídos por outros, o que não é de todo mal, desde que isso seja um processo relativamente rápido – mas não é. À direita interessa que o PT sangre lentamente, impedindo tanto que o partido se renove quanto que acabe de uma vez e surja um novo.
As eleições deste ano testemunharão, possivelmente, um forte declínio da esquerda. Mas a consequência disso é que as forças que sobreviverem brilharão com uma luz mais forte, justamente por causa da escuridão ao redor.
Em política, todavia, nada morre. Tudo se transforma. O golpe, por exemplo, é uma grande oportunidade oferecida ao PT. Talvez a última, porque o golpe é uma derrota histórica muito grande para a direita. O partido deveria usar essa conjuntura para rever todas as suas estratégias. Oxigenar sua direção. Aperfeiçoar suas diretrizes. Atualizar slogans, cores, linguagem, semiótica. Sobretudo, abrir-se ao país e ao mundo!
Por que o PT nunca abrigou seminários políticos internacionais abertos, com presença de intelectuais de toda a América Latina, do mundo inteiro, para discutir o futuro das lutas da classe trabalhadora? E isso é coisa para ser feito regularmente, com a criação de fóruns permanentes.
A questão da corrupção deve ser enfrentada sem medo, através de um debate ético de alto nível. O golpe permite levar adiante o que o partido talvez não conseguisse se continuasse à frente do governo.
Sobre o impeachment no Senado, está claro que não é uma questão apenas dos senadores. O golpe não vem deles. O golpe é uma ação concertada entre todos os setores dominantes: capital, burocracia, mídia. Os senadores são o elo mais fraco e mais instável do golpe, porque são políticos, e como tais, vulneráveis às mudanças da opinião pública. Mas também são vulneráveis em outros sentidos. As castas burocráticas, aliadas à mídia, cercam os senadores de todos os lados, com todo o tipo de ameaça, enquanto o grande capital lhes oferece dinheiro sem limite. Como lutar contra forças tão poderosas?
As famigeradas “ruas” estão desmobilizadas por causa dos erros da esquerda e do próprio governo. Desde o início da segunda gestão, as lideranças dos movimentos sociais alertavam Dilma e sua equipe de que todas a mensagens políticas emitidas pelo governo, num momento em que já era possível antever o golpe, eram desmobilizantes. Não havia a mínima inteligência política. Logo no início de 2015, Mercadante liderou uma coletiva de imprensa em que anunciava medidas conservadoras. Ora, algumas até eram justas, mas a forma como tudo foi comunicado ao público, era tão estúpido! O governo só usava a TV para alardear o ajuste fiscal, ao invés de usá-la para anunciar coisas positivas, que melhorassem o astral econômico do país e contribuíssem para a retomadas das atividades e dos investimentos.
O governo queria fazer papel de malvado, porque entendia que era a melhor maneira de seduzir o mercado.
Esse vinha sendo o modus operandi do PT há tempos, na verdade. Conquistar o setor progressista com resultados concretos na economia, e o “mercado” com mensagens políticas claramente submissas ao mercado. A tática de despolitizar o debate era uma estratégia aparentemente astuta, que visava não criar antagonismo com as forças do capital.
Hoje o PT se vê numa armadilha. Com os ataques midiáticos-judiciais pesadíssimos que vem sofrendo há tempos, que afetaram terrivelmente sua imagem, a legenda, sofrendo uma debandada de apoiadores, tenta segurar o núcleo duro de sua militância mais aguerrida com uma linguagem radicalizada que, no entanto, não combina com sua história, nem com o seu comportamento real até hoje, nas prefeituras, nos governos estaduais e nos parlamentos.
A direita, cujo núcleo orgânico está na mídia, conseguiu encurralar o PT num cantinho radicalizado, fazendo o partido perder as relações amigáveis que ele havia construído, por todos esses anos, com setores estratégicos do capital nacional. Aliás, a violência das conspirações midiático-judiciais contra Marcelo Odebrecht, por exemplo, não é pela a corrupção, e sim pela relação de empatia que havia sido construída entre o grupo e o PT. Esse parece ter sido o principal crime dos empreiteiros: financiar o PT! Daí a vingança do sistema, com ares de sadismo.
Entretanto, o papel de esquerda radicalizada, voltada para a linguagem incendiária de luta de classes, já foi ocupado pelo PSOL, que cresceu de maneira significativa não apenas nos legislativos, mas sobretudo no que é a antessala das vitórias eleitorais para candidatos de opinião: a classe média progressista.
Daí que PSOL e PT se encontraram na esquina de suas respectivas aflições. O PSOL sofre também com a direitização do debate político, porque até então ainda conseguia obter o voto moralista da classe média antipetista. Hoje não mais. Hoje essa classe média vota em Bolsonaro, não mais no PSOL. Para sobreviver e crescer, o PSOL precisa conquistar também o voto popular, sobretudo se tem ambições maiores do que eleger vereadores.
Os vereadores do PSOL, contudo, e toda a sua arraia-miúda, ainda transita nesse universo radicalizado, onde a maneira mais fácil de obter apoio é bater na direita, de um lado, e no PT, de outro.
É assim que um nome forte do PSOL, como Marcelo Freixo, por exemplo, pré-candidato à prefeitura do Rio, faz sinais de distensão política para o PT, mas é travado por sua própria militância partidária.
Mas o PT tem tanta culpa quanto o PSOL por essa divisão na esquerda. Há sectarismo de ambos os lados, e talvez o caso do PT seja ainda mais lamentável, porque a sua direção e seus parlamentares tem um papel muito mais determinante nos acontecimentos políticos do aqui e agora, e demonstram uma inacreditável apatia política.
Enfim, é o velho clichê: a noite deve ficar ainda bem mais escura antes de chegar a aurora.
Mas ela, a aurora, chegará!