José Carlos Moreira da Silva Filho[1], especial para O Cafezinho
Por mais frágeis que os movimentos de resistência política possam parecer, eles sempre estão alimentados pela memória e pelos sonhos daqueles que no passado tiveram a coragem e a ousadia de nadarem contra a maré, de afirmarem as liberdades públicas, o respeito à diversidade e à pluralidade e os projetos de sociedades mais justas, igualitárias e fraternas.
O Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, ocorrido nos dias 19 e 20 de julho de 2016 no Teatro Casagrande em pleno Leblon, alimenta-se da memória dos célebres Tribunais Russell. O primeiro deles foi instalado em 1966 a partir de uma iniciativa do Nobel da Paz Bertrand Russell e do filósofo Jean Paul Sartre que reunindo um invejável time de intelectuais e notáveis do mundo todo colocou a Guerra do Vietnã e os crimes internacionais praticados pelos Estados Unidos da América no banco dos réus.
Quase uma década depois, nos anos de 1974, 1975 e 1976, por iniciativa e protagonismo dos exilados brasileiros e chilenos e do humanista italiano Lelio Basso, que também havia participado ativamente do primeiro Tribunal Russell, aconteceram em Roma e em Bruxelas os Tribunais Russell II para a América Latina, que com a presidência de Jean Paul Sartre e a participação de um outro igualmente invejável time de jurados, colocou as ditaduras latino-americanas no seu devido lugar: o banco dos réus[2].
Tais tribunais integram um tipo de evento internacional chamado de “Tribunais de Opinião”, que atuam à margem da institucionalidade, organizados e realizados pela própria sociedade civil organizada. O que se julga é um evento de grandes proporções que tenha implicado na violação de direitos básicos da sociedade, frequentemente comandado e executado pelo Estado, que atua de modo ilegítimo, irregular ou ilegal em ações massivas de violações de direitos.
Os participantes do Tribunal de Opinião têm um lado, pois já partem do pressuposto da inexistência de paridade de armas e da completa instrumentalização das instituições públicas e da violação das cláusulas mais elementares do Direito Internacional dos Direitos Humanos ou do Direito Internacional Humanitário. Se os Tribunais de Opinião acontecem é justamente por não existirem espaços justos, isentos e democráticos na institucionalidade dos Estados violadores para o conhecimento amplo dos fatos e das violações que estão sendo praticadas, como ocorre por exemplo quando se tem um Supremo Tribunal Federal que procura atribuir um verniz de legalidade a um golpe de Estado parlamentar e abre mão do seu papel de limitar o poder desvirtuado em benefício da soberania popular e da cláusula democrática.
De todo modo, não se elimina a possibilidade de que o Tribunal de Opinião apresente a defesa de quem está sendo julgado. Esta defesa se apresenta com a exposição da narrativa oficial adotada pelos governos e grupos que estão praticando as violações em questão na tentativa de negá-las, explicá-las ou justifica-las, evidenciando as razões jurídicas, políticas e econômicas que estão sendo arguidas pelos violadores.
Neste Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil, coube a mim, juntamente com @s grandios@s juristas Luis Moreira, Magda Barros Biavaschi e João Ricardo Dornelles, tod@s testemunhas de defesa do impeachment da Presidenta Dilma Roussef e conduzid@s e orientad@s pela advogada de defesa, a magnífica Margarida Maria Lacombe Camargo, fazer o papel de Advogado do Diabo.
Ao encarnar a canhestra lógica jurídica dos golpistas, tendo lido todas as peças de acusação que tramitam no Congresso Nacional, beneficiei-me duplamente. Permiti a mim mesmo um exercício de desprendimento e compreensão do outro , mesmo que ele me ameace e me violente. E ao fim e ao cabo me deparei com uma miragem, com uma farsa jurídica insustentável, raciocínios mirabolantes, uma completa perversão e vilipêndio da legalidade democrática e das mais elementares regras do Direito.
A denúncia e as alegações finais escritas por Hélio Bicudo, Janaína Paschoal e Miguel Reale Jr, além do relatório do Senador Antonio Anastasia, constroem uma doutrina absolutamente permissiva do impeachment no Direito brasileiro, que abre espaço a uma indevida fiscalização ordinária dos atos d@ President@ eleit@, quando deveria ser um processo excepcionalíssimo e rigoroso, adstrito às hipóteses constitucionais.
Como bem frisou a Dra. Margarida em sua manifestação no Tribunal, o próprio ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que quanto à Lei 1.079 de 1950, que trata dos impedimentos por crime de responsabilidade, “cabia tudo ali”, que ela poderia servir de pretexto para criminalizar qualquer ato d@ President@ da República se assim o Congresso Nacional o desejasse.
Margarida também lembrou que esta lei de 1950 foi redigida pelo gaúcho Raul Pilla, conhecido por ser o “papa do parlamentarismo”, e que havia sido previamente derrotado em sua campanha para que a Constituição de 1946 adotasse o sistema parlamentarista. Interessante notar que foi Raul Pilla quem redigiu a emenda que adotou o sistema parlamentarista pra retirar os poderes presidenciais de João Goulart em 1961 diante da pressão dos inumeráveis grupos golpistas daquela época, militares e civis.
Vê-se que o espírito que animou esta lei foi o parlamentarista. É curioso notar que sempre que quando algum governo no Brasil começa a desenvolver políticas populares voltadas ao combate da desigualdade social ele sofre golpes adornados por propostas parlamentaristas. Dada a história do nosso sistema político, é fato que o nível de representatividade popular no Poder Legislativo não condiz com a realidade da sociedade, e que é muito mais factível a vitória representativa do voto popular para eleger os chefes do Executivo no sistema presidencialista.
Ora, submeter @ President@ da República a dispositivos de constante fiscalização dos seus atos de gestão com poderes de interromper o seu mandato é perverter por completo o valor da soberania democrática resultante do voto direto, universal e periódico. É diminuir o valor do voto justamente onde ele é mais forte e poderoso: nas eleições para President@ da República. Não é à toa que esta foi a bandeira que unificou todo o país no período da redemocratização durante as Diretas Já.
Anular esse poder desfazendo o seu resultado em favor dos parlamentares ou de outros agentes públicos que nem sequer são eleitos, como é o caso de procuradores e juízes, significa simplesmente perverter a cláusula democrática, verdadeira pedra de toque do Estado Democrático de Direito, significa favorecer os interesses oligárquicos, plutocráticos, elitistas, gananciosos e autoritários, historicamente hábeis em manipular esses espaços institucionais.
O jurista mexicano Jaime Cárdenas Garcia, um dos jurados no Tribunal, observou em sua manifestação que o golpe no Brasil é a terceira etapa de uma nova estratégia do imperialismo na América Latina, já testada em Honduras e no Paraguai, o de interromper o processo soberano popular de construção de projetos sociais de igualdade, justiça social e aprofundamento democrático fazendo uso dos mecanismos jurídicos formais instrumentalizados pela exacerbação da esfera dos poderes institucionais em desfavor do princípio da soberania democrática. É a prevalência autoritária do projeto elitista, segregador e predatório do capitalismo neoliberal, que por razões óbvias encontra maiores dificuldade em chegar ao poder pelo voto.
Cárdenas também assinalou que na América Latina o impedimento não deveria estar previsto nas Constituições, pois ele se presta às manipulações institucionais da soberania popular. Deveríamos ter apenas a possibilidade de revogação do mandato, operada pelo mesmo princípio : o voto popular, de que tal decisão não deveria jamais ser terceirizada aos funcionários do Estado.
Em vez disso, o Brasil alarga ainda mais a brecha sabotadora da soberania popular ao submeter a Constituição de 1988 à lógica parlamentarista de uma Lei editada em 1950, e mesmo após o sistema parlamentarista ter sido rejeitado no plebiscito de 1993 por quase 70% da população. Como se não bastasse isto, mesmo considerando a existência da Lei de 1950, o processo ora em curso não consegue de modo consistente identificar qualquer crime de responsabilidade. Ter lido as peças da acusação de modo detalhado mostrou isto de maneira inconteste.
No caso das célebres “pedaladas fiscais” o malabarismo é bisonho: o inciso VI do Art.85 da CF de 1988 afirma que são crimes de responsabilidade atos que atentem contra a “lei orçamentária”. As peças da acusação no processo de impeachment afirmam que nesta expressão dever-se-ia incluir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ora, a questão fiscal é uma coisa, a orçamentária é outra, ainda que estejam relacionadas. Querer incluir uma lei que não é orçamentária em um dispositivo excepcional e com consequências drásticas para o mandato presidencial é dar uma amplitude que o constituinte não quis dar.
Mas não para por aí o alargamento. Indo além, o Senador Anastasia afirma que como a Lei de Responsabilidade Fiscal diz no seu Art.73 que as infrações a esta lei serão punidas com base, entre outras leis, na Lei de 1950, daí ele opera um mortal triplo carpado para afirmar que violar qualquer dispositivo da Lei de Responsabilidade Fiscal implica em crime de responsabilidade. É quando surge resplandecente o Art.36, que veda a realização de empréstimo entre o ente da federação e instituição financeira por ele controlada. No entanto, em nenhum lugar da lei se diz que a infração a este artigo é um crime de responsabilidade! Ah! E outro salto triplo carpado: atrasar o pagamento de recursos aplicados para subvenção de programas que garantem direitos sociais, como ocorreu no Plano Safra, transformou-se magicamente em uma operação de crédito. Digo magicamente porque até então no Brasil nenhum livro de Direito Financeiro ou jurisprudência havia assim considerado.
Com base na fantasia criada, partiu-se para a identificação do que seria outro crime de responsabilidade: a edição de decretos de crédito suplementar fora da meta fiscal, já que se a fantasia fosse considerada realidade não haveria superávit a autorizar os créditos, condição prevista na Lei de Orçamento de 2015. Deixando a fantasia de lado, a edição desses decretos seguiu rigorosamente as condições exigidas em lei, e é recurso comum utilizado costumeiramente pelos governos anteriores.
Pra agravar ainda mais esta farsa, é estarrecedor notar que todos os atrasos de pagamentos do tesouro às instituições financeiras federais foram quitados em janeiro de 2016 e que 2015 fechou com a meta compatível aos gastos realizados, tendo a meta sido alterada em dezembro diante dos efeitos recessivos da crise econômica mundial. No entanto, isso parece não ter qualquer relevância para os denunciantes do impeachment e os que os apóiam, sob o pretexto de que se a Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei que protege a precaução, então qualquer ato considerado temerário vira um crime de responsabilidade, ainda que não tenha havido prejuízo aos cofres públicos e os passivos tenham sido saldados. É um “crime formal de mera conduta”, dizem eles, não interessa o resultado.
Então vejamos, amplia-se o que não deve ser ampliado, transforma-se orçamento em fiscal, qualquer violação ao fiscal passa a ensejar impedimento, atraso no pagamento de subvenção operada por bancos vira operação de crédito e resultado sem violação ao orçamento do ano dá lugar à crime de mera conduta. Como registrou no Tribunal Internacional o jurado Carlos Augusto Galvez Argote, especialista em Direito Penal e ex-juiz da Corte Suprema de Justiça na Colômbia, em homenagem aos princípios mais elementares do Direito Penal e da cláusula democrática, exige-se que o crime ensejador da perda do mandato presidencial popular seja estritamente previsto na Constituição ou a partir dela, restando vedado qualquer juízo de analogia ou alargamento. Querer afastar essa condição para que o Parlamento decida o que quiser, com a desculpa de que se trata de um juízo eminentemente político é violar a lógica e rasgar a Constituição. Impeachment sem crime de responsabilidade é golpe.
Não só o crime identificado é fruto de um verdadeiro estupro hermenêutico à Constituição e à legislação financeira como também não se consegue apontar sua autoria com clareza e coerência. A Presidenta Dilma é ao mesmo tempo acusada por ato omissivo e comissivo. Ora, ou alguém praticou um crime por ter agido ou por ter se omitido. Como afirmou o advogado de acusação no Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil[3], o magistral Geraldo Prado, um dos maiores penalistas brasileiros, os autores da peça inicial do impeachment teriam sido reprovados sumariamente caso fossem seus alunos. Somente restou aos defensores do impeachment invocar a “personalidade enérgica e controladora” da Presidenta para afirmar que ela foi autora dos crimes criados, ou atestar que a Presidenta era “íntima” do Secretário do Tesouro, a ponto de não se saber “onde começava um e terminava o outro”.
O processo de impeachment da Presidenta Dilma é, portanto, uma rotunda farsa, desnudada em detalhes por este Tribunal Internacional, disponível a quem assistir o vídeo ou ler a já divulgada sentença, da lavra do inigualável Juarez Tavares, juiz do tribunal. Esta sentença é seguramente a peça escrita mais forte até o momento em demonstrar que, na verdade, não temos um processo constitucional de impedimento da Presidenta, mas sim um golpe de Estado. Os jurados internacionais (da França, Espanha, Estados Unidos, Colômbia, México, Itália, Argentina, Costa Rica, todos pessoas respeitadas e reconhecidas por seu trabalho acadêmico e institucional) foram unânimes e suas manifestações foram verdadeiras aulas de Direito e conjuntura internacional, reveladoras do crescimento ameaçador da sombra neoliberal que mais uma vez assombra o nosso continente, comprometida em golpear a soberania popular, extinguir direitos, aumentar os fossos da desigualdade e submeter nossas sociedades às vontades de um capitalismo predatório e excludente.
Parabenizo a todos os que se envolveram nesse importante ato de resistência democrática, em especial à Carol Proner e ao Ney Strozake, também Conselheiros da Comissão de Anistia como eu, e que de modo incansável e competente foram decisivos para que este evento histórico ocorresse, com o apoio de inúmeros movimentos sociais, em especial a Via Campesina e o Movimento de Trabalhadores Sem-Terra.
Participar do Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil foi uma experiência que me deu ainda mais forças e ganas de resistir e lutar sempre pela democracia e um projeto popular para o Brasil. Temos que resistir sempre, continuar lutando pelo retorno da democracia. Não importa quanto tempo leve. Guardem bem as pessoas que hoje resistem, mas ainda mais aos que se omitiram e aos que estão patrocinando esse golpe. Não surpreendem os autoritários de sempre, mas não nos enganemos novamente com esses golpistas que imaginávamos serem democratas. A história não esquecerá o papel ao qual cada um se prestou.
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[1] Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Brasil.
[2] A editora da Universidade Federal da Paraíba em parceria com a Comissão de Anistia traduziu e publicou em 2014 os três livros sínteses produzidos nos Tribunais Russell II, intitulados: “Brasil, violação dos direitos humanos”, “As multinacionais na América Latina”, “Contrarrevolução na América Latina”.
[3] As testemunhas de acusação que apoiaram o trabalho do Geraldo Prado foram excepcionais: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Ricardo Lodi , Tania Oliveira e Marcia Tiburi.
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