Por Pedro Breier, correspondente policial do Cafezinho
A ofensiva conservadora, que acontece não só no Brasil mas no mundo todo, gerou por aqui um grupo denominado “Escola Sem Partido”, cuja proposta pode transformar uma simples aula de literatura em caso de polícia. Há um projeto de lei sobre o tema tramitando na Câmara e outro no Senado, com textos quase idênticos. O discurso oficial é o de que o projeto busca garantir a neutralidade nas salas de aula, evitando que os professores façam doutrinação política, ideológica ou religiosa nos alunos.
O projeto determina que o ministério e as secretarias de educação deverão contar com um canal de comunicação para receber reclamações relacionadas ao tema. Essas reclamações deverão ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade. Uma aula de história pode acabar com o professor sendo investigado pelo MP ou pela polícia por “doutrinar alunos”. Qualquer semelhança com regimes autoritários não é mera coincidência.
Diante do fato de que a neutralidade é um conceito totalmente subjetivo – e para muitos inexistente, já que qualquer ponto de vista deriva do contexto pessoal, social e histórico em que a pessoa vive – seria simplesmente impossível aplicar essa lei sem escorregar para a censura e o autoritarismo. O professor Wilson Gomes faz a pergunta chave, em post no Facebook: “Em que universo social a neutralidade é um conceito que se possa estabelecer com um nível adequado de confiabilidade?”. Ainda o professor:
“Vai ter um neutômetro calibrado na Suíça como equipamento obrigatório em todas as salas, com um alarme ligado à polícia que dispara toda vez que ao expressar um ponto de vista o professor se inclinar para um lado ou para o outro? Ou vai ser no olho mesmo, com uma ficha de “análise de sentimento” preenchida pelos alunos no fim de cada aula? O DCE infiltrará vigias nas salas de aulas de professores de direita enquanto o CA de Direito e a Assembleia de Deus terá a sua polícia ideológica disfarçada de estudante?”
O discurso é o de defesa da neutralidade. Mas é na justificativa dos projetos de lei que está o que os defensores da ideia não têm coragem de encampar mais explicitamente. A justificativa começa assim:
“É fato notório que professores e autores de materiais didáticos vêm se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes à determinadas correntes políticas e ideológicas para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.”
O “especialmente moral sexual” não deixa dúvidas. O projeto Escola Sem Partido tem o DNA das teorias de Olavo de Carvalho, Bolsonaro e afins de que o MEC (do governo pré-golpe, logicamente) e os professores fariam propaganda da “ideologia gay” e incentivariam os alunos à homossexualidade.
Considerando que não pode haver, em uma sociedade civilizada, uma “moral sexual” que não seja a da aceitação de todas as sexualidades e busca da eliminação de qualquer preconceito, a gritaria desses expoentes do pensamento de direita deve ser entendida no contexto da estratégia clássica do conservadorismo: utilizar os preconceitos do senso comum para criar inimigos imaginários (ativistas gays, pessoas de esquerda), desviando o foco dos reais problemas, como desigualdade social e falta de investimento público em educação, nos quais o conservadorismo, como representante do status quo, não quer mexer.
A proposta é tão esdrúxula que foi detonada até mesmo pelo Estadão, jornal assumidamente conservador, em editorial. Um trecho:
O projeto consubstancia o lobby de um grupo que se intitula “Escola Sem Partido”, cujo objetivo oficial – “sem qualquer espécie de vinculação política, ideológica ou partidária”, como diz seu site na internet – é denunciar a propagação de ideologias em sala de aula. Na prática, porém, a maioria absoluta dos casos divulgados pelo grupo diz respeito apenas a professores e intelectuais de esquerda, donde se pode presumir, sem muita dificuldade, que o movimento não faria muito caso – ou talvez nem existisse – se a doutrinação ideológica em sala de aula se prestasse a disseminar ideias conservadoras.
Nem é esse, contudo, o principal problema desse movimento. Por mais que sejam execráveis as práticas de maus profissionais de ensino, cuja fidelidade ao partido supera seu compromisso com a boa educação, está claro que qualquer lei que limite o que se diz em sala de aula está fadada, por definição, a servir a causas antidemocráticas. É claro que um professor não pode pregar a subversão da ordem ou fazer apologia de crimes para seus alunos, mas para esses casos a legislação ordinária já dispõe de instrumentos de punição mais que suficientes. Basta que haja denúncia e se instaure o devido processo.
Ao obrigar que as escolas afixem nas salas de aula um decálogo sobre o que pode e o que não pode ser dito pelos professores para os alunos, o projeto de lei do “Escola Sem Partido” flerta com o autoritarismo, pois constrange a livre opinião, base da democracia.
Quando até o Estadão considera um projeto da direita autoritário é porque a coisa é pesada mesmo. A consulta pública lançada pelo Senado tem quase 130 mil votos, com vitória parcial para os favoráveis ao projeto. Ajude a virar o jogo.