Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.
O trumpetista norte-americano Peter Evans é um daqueles artistas que percorrem muitas searas da música experimental, particularmente ligada ao jazz, sem se comprometer com rótulos ou gêneros. Desde seu primeiro trabalho em 2006, More is More (trumpete solo, com produção do veterano Evan Parker), Peter Evans vem desenvolvendo seu trabalho entre a improvisação e a composição, entre a tradição e a inovação, criando uma música híbrida atravessada por técnicas, sons e estruturas bastante diversificadas. Em seu trabalho como band leader, já passou pelos formatos de trio, quarteto e quinteto, experimentando a cada nova empreitada com esses formatos, sons e estruturas completamente diferentes uns dos outros. Membro de grupos como o Pulverize the Sound, Rocket Science, Premature Burial, parceiro de jazzistas contemporâneos nada ortodoxos, como por exemplo Wessel Walter, Evans também é o fundador do selo More is More Records, através do qual lançou alguns de seus mais importantes registros.
Peter Evans, que se apresenta hoje no Rio de Janeiro (18/07), na Audio Rebel, respondeu a algumas breves perguntas sobre seu trabalho e como ele pensa a música hoje. Reproduzo suas respostas a seguir.
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Ao longo de sua carreira, você tem tocado com uma grande gama de artistas, na maioria das vezes com música improvisada. Por favor, diga-nos: O que a improvisação significa na música? O que você tem aprendido ao improvisar com coletivos e outros músicos?
Para mim improvisação tem sido uma janela, um portal para os mais profundos mistérios da criatividade e do processo de se viver, ponto final. É a forma mais humana de se fazer música e tem me ensinado como reconhecer o que eu valorizo em várias outras áreas da vida e outras experiências, não apenas na música. Mais especificamente, a improvisação é um caminho para o indivíduo existir no passado, presente e futuro, simultaneamente — para ser um indivíduo completo enquanto traz sua própria história e experiência de vida para dentro de uma mistura. E isso em diálogo com outras pessoas. É a unificação entre mente e corpo em tempo real.
Já se passou uma década desde seu primeiro álbum, More is More (2006). Por favor, diga-nos um pouco sobre este processo: O que mudou no seu som e na sua perspectiva sobre música desde que você começou?
Eu nunca escreveria tal resposta para esta pergunta em 2006 (risos). Os últimos dez anos tem me ensinado bastante. Eu continuo crescendo e aprendendo, e eu sou mais humilde frente ao processo criativo do que nunca antes, e certamente mais do que eu era dez anos atrás.
Quais são as características que você enxerga em seu trabalho solo? Você trabalha com efeitos? Explora o som ambiente ou a acústica do espaço?
Eu trabalho de forma acústica com um microfone. Eu não penso em música ou em tocar um instrumento em termos como “efeitos” ou “técnicas estendidas” (extended techniques). Eu estou tentando criar um espaço para que o público experimente alguma coisa, um espaço, um momento, uma realidade sonora multidimensional. Tudo o que eu faço é orientado em direção a esta meta. E, felizmente, existem infinitas formas através das quais isso pode ser alcançado!
Nos últimos cinco anos, você esteve envolvido em, pelo menos, dois projetos que projetavam novas concepções de jazz (e além). Por favor, fale-nos um pouco sobre o processo de composição e gravação do pontilhismo radical de Mechanical Malfunction (com Mary Halvorson e Wessel Walter, 2012) e as mudança de vibração do Rocket Science (com Evan Parker e Craig Taborn, 2013)?
Meu processo de composição muda bastante de grupo para grupo. No Mechanical Malfunction, Mary Weasel e eu escrevemos, cada um, alguns pequenos pedaços, pequenas estruturas que foram orquestradas e improvisadas. Se eu me lembro corretamente, meus trechos neste álbum foram focados em várias formas de ataques uníssonos em relação ao grupo, algo que eu também estava explorando no momento.
A música do Rocket Science é completamente improvisada, ou seja, foi composta no momento. O álbum também é o registro da primeira vez que o grupo tocou junto. (Embora houvesse muitas experiências tocando juntos em pequenas combinações — Evan e Craig, eu e Evan, eu e Sam). A colisão destas pequenas histórias criou uma ótima combinação de situações conhecidas e desconhecidas que eu gosto bastante. Eu penso que a banda tem um som próprio, separado de qualquer outro trabalho oriundo desses subgrupos.
O século XX é marcado por rupturas na política, arte, cultura, que de alguma forma foram relacionadas com uma visão de um futuro melhor – mesmo se este futuro fosse o pior para algumas pessoas… Com a relatividade das visões sobre o futuro nos dias de hoje, ainda há espaço para o pensamento de vanguarda? Qual seria o papel de uma estética radical? Dissonância e ruído continuam representando o “Terror” na música?
Esta é uma preocupação minha constante nos dias atuais. Ontem mesmo eu toquei uma improvisação num festival de música clássica, num duo com o saxofonista Travis Laplante. A peça tocada depois de nós foi Bach, Concerto de Brandenburg 3. Esta peça é incrível, e eu acho que é muito densa e desafiadora para os ouvintes. Eu fui golpeado pelas reações plácidas frente à Bach, e a incredulidade que encontramos durante o improviso. Algumas pessoas realmente não podiam lidar com isso, mesmo que houvessem muitos elementos em comum com a peça de Bach, em particular os contrapontos. Eu fiquei pensando que não foi tanto o som que incomodou as pessoas, foi mais a energia e a entrega. É alguma coisa embutida na sociedade que os faz rejeitar aquilo.
Pelo menos aqui na América, nossa sociedade é tão apática, cheia de distração, prazeres superficiais, assim como ódio, raiva e racismo intenso. É impossível não se conectar a si mesmo e à procura pela verdade na música com um sentido de luta contra esses elementos que nos rondam. É muito difícil. Uma coisa que eu estou convencido é que a verdadeira experiência humana completa, com fragilidade, terror, violência, amor, energia sexual verdadeira, etc., é uma novidade nos dias de hoje. Não é algo que as pessoas experimentem todos os dias ou, sequer, estão interessadas em experimentar. Nossa função como músicos nesta atmosfera é sermos capazes de criar tal experiência. Politicamente falando, isto não é o suficiente para algumas pessoas, com certeza, mas a verdade é que a música ocupa um espaço bem marginal na sociedade neste momento cultural.
Música criativa na América é diretamente ligada à experiência negra e, portanto, ligada a estas questões que você traz: resistência e a imaginação de um futuro melhor. Há tentativas agora, em vários níveis, de apagar esta história e esses elementos definitivamente, mas eu penso que eles nunca foram tão necessários. Músicos tem uma forma bem diversa de lidar com essas questões, mas eu sinto que há algo de renascimento agora, sobre o pensamento a respeito desses problemas. Isto se conecta bem diretamente com a necessidade de ser desafiado, de uma arte desafiadora. Em linhas gerais, eu, no fundo, quero ser um músico honesto. Eu quero o mesmo que os músicos com quem eu toco e experimento. Nós alcançamos um ponto tão baixo agora, que verdadeira honestidade e real expressão humana representam algo desafiador. Todo mundo precisa confrontar estas ideias se utilizando de formas próprias .
*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).
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