(Foto: Journal des Mosquées)
Por Bajonas Teixeira de Brito Junior, colunista político do Cafezinho
Quem derrotou o golpe na Turquia? Certamente não o manifestante que deitou na frente de um tanque, embora esse ato dê bem a medida da exasperação contra os violadores da democracia. Para que tivesse insuflado ânimo à resistência, essa imagem precisaria de tempo para circular, mas tempo foi justamente o que a resistência negou aos golpistas. Não é lícito crer, ainda, que a posição da mídia tenha sido relevante, já que as informações disponíveis dão conta de que as emissoras de TV foram tomadas pelos militares. Há notícias de que a internet também sofreu intervenção e o acesso aos sites e redes sociais (Facebook, youtube, Twitter, Google, etc.) esteve severamente limitado.
Teria sido então a mobilização espontânea da população?
Foi central evidentemente a mobilização da população mas essa mobilização não foi mera combustão espontânea. Ela respondeu à chamada do presidente Erdogan, que assumiu firmemente o comando da resistência, e convocou à população a sair às ruas. O fato de que esse chamado tenha sido respondido de imediato, embora a violência do golpe já estivesse nas ruas, com tanques, soldados e helicópteros despejando chuvas de balas sobre os manifestantes, nos dá uma medida da força da democracia no país.
Ao que tudo indica, portanto, foi a força da democracia – conduzida por um presidente decidido e uma população intransigente quanto à preservação das instituições democráticas – que derrotou nas ruas o golpe. O saldo e a prova dessa defesa implacável da democracia são os 265 mortos e 1440 feridos que resultaram dos confrontos. Independente da islamização ou do autoritarismo crescente do governo de Erdogan, ou, talvez, exatamente por isso, a reação popular contra os militares tem de ser entendida como uma defesa do voto e das instituições democráticas.
E no Brasil? Aqui temos também um golpe em andamento de consequências nefastas para democracia. E nas ruas há uma resistência contra esse golpe, em que direta ou indiretamente milhões de cidadãos estão envolvidos. Algumas com riscos pessoais diretos, para os seus empregos, e até mesmo para suas vidas. Contudo, não há uma força decidida para a condução da resistência. Exemplo melhor não temos que o episódio trágico dessa semana: instado a escolher entre garantir a sua dignidade ou ceder as matreirices da Câmara, o PT correu para enquadrar-se nas engrenagens do golpe, servindo como um dos agentes da eleição de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara.
Com a conversão em vaca de presépio para auxiliar a gang que armou o golpe contra ele mesmo, o PT mostrou o grau da decomposição a que chegou e prestou um inestimável serviço à desmobilização da luta contra o golpe. Se o PT faz acordos com os inimigos da democracia, que credibilidade lhe restará para organizar a resistência? A sensação que fica é que, ao invés de cortar na carne e deixar que os mortos enterrarem seus mortos, se juntou àqueles inimigos para a construção de uma barragem resistente contra a Lava Jato. Não à-toa o primeiro gesto de Maia foi o de prestigiar Aécio Neves, campeão de menções nas denunciações premiadas. E não sem motivo, Temer disse estar “felicíssimo” com a vitória – ele que tem meia dúzia de ministros citados na Lava Jato.
Mas a primeira coisa que essa boiada fará, se instada a preparar uma fuga diante da Justiça, será entregar o PT como boi de piranha para os tribunais fazerem a festa. Por que seriam leais ao PT agora, se não foram antes, quando o partido esbanjava poder e prestígio? Não foram esses partidos que autorizaram em votação relâmpago a prisão do líder do governo Dilma, Delcídio do Amaral? E agora, esquecendo essa lição tão recente, o PT se junta a eles para eleger o presidente da Câmara?
Que o PT tenha se rendido a esse escândalo é um grande desastre. É uma tragédia política mas também moral, já que aponta a tendência do PT de, ao invés de renascer das cinzas, mergulhar em definitivo na lama. Essa não é mais uma daquelas inocentes e desnecessárias partidas de futebol que Lula costumava organizar na granja do Torto. É um jogo político que está sendo jogado justamente para desterrar e liquidar o Partido dos Trabalhadores, e seu programa político, de uma vez por todas.
Um filósofo escreveu certa vez que a maior vulgaridade é não ser capaz de resistir a uma tentação. O PT não resistiu à tentação de se sentir protagonista nos eventos da eleição. Toda a velha cretinice parlamentar, construindo falsos marcos políticos – fim da era Cunha, derrubada do “centrão”, renovação da Câmara –, foi posta a serviço de uma espécie de indulto de faz de contas concedido ao PT. Até então relegado à marginalidade, o partido de repente foi chamado para conversar, articular estratégias, negociar e partilhar as minúsculas vantagens corporativas da Câmara.
Incapaz de se conter diante da chance de se atolar na vulgaridade, o PT assentiu e correu para o abraço. Primeiramente, pensou em apoiar já de partida o DEM e seu candidato Rodrigo Maia, da forma mais desavergonhada possível. Por fim, após alguma pressão, desmentiu que tivesse aquela intenção e declarou apoio a Marcelo Castro, o candidato do PMDB, ou seja, do partido que acaba de ser o seu algoz.
O que leva o PT a agir de forma tão desonrosa quando nada o impedia de resgatar sua dignidade? Muito provavelmente a busca de proteção e impunidade para alguns de seus líderes dentro dos marcos políticos atuais, ou seja, dentro da conjuntura do golpe. Ao invés de derrotar o golpe para, com isso, desmascarar a parcialidade da justiça golpista, o partido preferiu um jogo dissimulado em que, no fundo, ele negocia a traição às ruas. É uma opção pela busca de cumplicidade ao lado dos vencedores e um abandono ao deus dará daqueles que saíram às ruas em nome da democracia.
A democracia sempre foi um regime propício a dar evidência às diferenças e às qualidades de cada coisa. A capacidade de contrastar e diferenciar são essenciais para a vida numa sociedade democrática, porque para decidir é preciso ser hábil em estabelecer distinções. Por isso o grande legislador Sólon introduziu uma lei em Atenas que punia com a perda da cidadania quem, durante uma revolução, não tomasse partido.
O PT, de seu lado, há muito tenta empalidecer as diferenças entre as forças democráticas e seus inimigos, como se isso fosse possível, buscando a simpatia dos poderosos ao preço de grandes agrados – a Globo recebendo 500 milhões de propaganda governamental, os financiamentos bilionários para o agronegócio a cada ano, etc. etc. etc. – não tiveram bons resultados antes, e não terão agora também, quando seu poder foi pulverizado. Nesse momento, mais que nunca, teria a obrigação de não confiar em seus inimigos.
Uma bela diferença, não só em relação ao pântano da Câmara e aos golpistas, mas também ao seu passado de conciliação com os poderosos, teria sido uma resoluta rejeição pelo PT, na eleição do presidente da Câmara, a todos os nomes e partidos vinculados ao golpe. Isso teria dado moral ao partido, estreitado sua união com outras forças da esquerda, e reforçado suas credenciais para conduzir a resistência contra o golpe. Sobretudo, teria criado uma diferença que demarcaria a distância entre o campo da democracia e o do golpe, avivando a identidade das forças que estão mobilizadas pela resistência. Fazendo o contrário, o PT jogou para desbotar e confundir os contrastes, ou seja, para minar as bases de enfrentamento e de defesa da democracia.
É isso que nos coloca muito longe da resoluta resistência ao golpe que acabamos de assistir na Turquia.
Bajonas Teixeira de Brito Júnior – doutor em filosofia, UFRJ, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas, e professor do departamento de comunicação social da UFES.