Deltan Dallagnol, procurador da Lava Jato que já se manifestou publicamente contra os acordos de leniência (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
por Luís Nassif, no Jornal GGN
Em entrevista à repórter Patrícia Faermann, do GGN, o Procurador da República Vladimir Aras explicou as vulnerabilidades da cooperação internacional, especialmente a extraordinária facilidade com que o Brasil envia a outros países informações que servirão para instruir processos contra empresas brasileiras.
Fecham-se acordos de trocas de informação. Ao MPF (Ministério Público Federal) compete solicitar ou enviar informações solicitadas. Há regras internacionais claras para impedir a remessa de informações que, de alguma maneira, possam atentar contra direitos humanos. Mas não existe nenhuma lei ou regulamento interno visando brecar informações que possam atentar contra o interesse nacional. Aliás, sequer há discussões nos três níveis de governo sobre o que venha a ser interesse nacional.
Trata-se de um vácuo criado pela própria Constituição Federal. Na ânsia de eliminar qualquer vestígio do regime militar, aboliram-se até normas de defesa das empresas, como geradoras de competitividade, inovação e emprego, porque inseriam-se no conceito de Brasil Grande.
A reação contra o fechamento e a autocracia promoveu conceitos como o de tratar qualquer empresa instalada no país – independentemente da origem do capital ou do comando – como empresa nacional.
O capítulo referente ao MPF também foi restritivo. Conferiu-se pioneiramente ao MPF a defesa dos direitos difusos e dos direitos humanos em geral, mas não o papel de guardião do interesse nacional – que, mesmo sendo um conceito vago, obrigaria espaço a discussões aprofundados para melhor conceituar. Mais que isso, conferiu-se autonomia em relação ao Executivo, cortando, assim, os últimos laços do que deveria ser uma ação concatenada em temas em que estivesse envolvido o interesse nacional.
A notável incapacidade brasileira de entender temas contemporâneos impediu que Ministério da Justiça, Procuradoria Geral da República, Ministério de Relações Exteriores sequer tangenciassem o tema.
É curioso que os preclaros procuradores, que se orgulham de seus mestrados e doutorados no exterior, brilhantes diplomatas, que alçaram a diplomacia brasileira a um lugar nobre, esforçados governantes empenhados em criar multinacionais brasileiras, as próprias multinacionais brasileiras, jamais tenham pensado no alinhamento com a cooperação internacional, através da clara definição de interesse nacional. Mesmo depois das espionagens da NSA, das ações da Lava Jato contra a diplomacia comercial, ainda não caiu a ficha de corporações burocratizadas. É o preço do subdesenvolvimento.
A revisão desses conceitos passa pelas seguintes peças.
Peça 1 – a redefinição do conceito de empresa e interesse nacional,
A visão do andar de cima brasileiro sobre empresa é similar ao de dom Pedro 2 no século passado. Há um preconceito claro contra as atividades comercial e industrial, em favor das atividades financeiras, do rentismo ou do capitalismo familiar.
O único tema que une parte relevante das esquerdas, mídia e economistas liberais brasileiros é a ojeriza às formas tradicionais de empresa. A única forma nobre são as startups. Prova disso é Henrique Meirelles ser tratado como salvador nacional por Lula, Temer, mídia e mercado.
No entanto, são o comércio, a indústria e os serviços que empregam, inovam e recolhem tributos.
A desconsideração sobre a importância das empresas é da mesma natureza da minimização de conceitos civilizatórios, como o direito ao trabalho e ao emprego. Talvez seja o mais renitente traço do subdesenvolvimento brasileiro.
Peça 2 – as diferenças entre o empresário e a empresa
A ignorância atávica brasileira não consegue separar a empresa da figura do dono ou acionista. A não ser aquelas criadas para transações criminosas, empresas não cometem crimes: seus proprietários e gestores, sim. Mesmo as empresas privadas, têm que ser tratadas como ativos do país.
Não se trata de preservar os autores de crimes.
Na luta contra as organizações criminosas, é princípio consagrado que o melhor caminho é a asfixia financeira do criminoso. Impede-se a operação retirando do criminoso o poder de gestão sobre a empresa e não matando a empresa.
As mentes mais sofisticadas do MPF precisarão explicar aos seus penalistas que empresas não podem ser tratadas como templos de corrupção, que precisam ser queimadas como eram queimadas os livros pela Inquisição.
Peça 3 – as diferenças entre empresas abertas e paradas
Outro princípio basilar é que empresas paradas valem muito menos do que empresas em atividade. Exemplo maiúsculo foi dado pelo juiz Italo Morelli, quando caiu em suas mãos a fabricante de carrocerias CAIO. A empresa empregava 3 mil trabalhadores. Fechada, seus galpões não seriam suficientes sequer para garantir indenizações trabalhistas. Itálo manteve a empresa em operação, arrendou partes dela. Ao final de um determinado período, a empresa tinha conseguido pagar todas as indenizações trabalhistas, preservado os empregos e ganhado valor.
Esse princípio básico ainda não foi assimilado pela chamada opinião pública culta, especialmente a que é refletida nos veículos de mídia. A própria aprovação do instituto da recuperação judicial esbarrou no desconhecimento desses princípios.
Peça 4 – as penalidades a serem aplicadas
Não significa que empresas são intocáveis. Toda empresa envolvida em falcatruas merece punições monetárias, multas pesadas, de acordo com o crime cometido.
As empresas geram dois valores: seus resultados próprios e o valor de suas ações. Havendo as multas, se a empresa tiver condições de quitá-las, que pague. Se não tiver condições, caberá aos controladores vender o controle da empresa e, com o valor arrecadado, pagar as multas, preservando a empresa.
Exemplo simples:
1. A empreiteira A fatura R$ 10 bilhões ano.
2. É autuada em R$ 20 bilhões. Pela desproporção de valores, não conseguirá quitar a multa com recursos próprios.
3. Mas ela vale, digamos R$ 30 bilhões. Seus proprietários ou vendem uma parcela do capital ou toda a empresa e, com o dinheiro apurado, quitam a multa. A operação preservará completamente a empresa.
Peça 5 – os modelos interdisciplinares de análise das infrações
Aí se esbarra nos múltiplos ângulos de análise das empresas envolvidas em ações criminosas.
1. O lado penal está apto a definir as penas e as estratégias contra as organizações criminosas.
2. Há um lado econômico, de avaliar a relevância das empresas (e respectivas cadeias produtivas) assim como pesar os impactos das punições sobre sua solidez e buscar as alternativas que melhor preservem a empresa, sem moleza com os controladores.
3. Há o lado social, dos impactos das medidas sobre a geração de emprego na empresa e na região. O desmonte dos estaleiros, e seus impactos sobre o desenvolvimento regional, foi um dos crimes da Lava Jato.
4. Há o lado do chamado interesse nacional, uma avaliação da maior ou menor importância estratégica da empresa, seja para sua manutenção, seja para instruir as normas de cooperação internacionais.
Em outros países, criaram-se tribunais especiais acolhendo especialistas nesses quatro campos e para a definição dos acordos de leniência. E definição clara de instâncias de julgamento para empresas brasileiras, evitando ações geoeconômicas de países, ou predadoras, de fundos abutres.
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