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Machine Gun: um dedo de prosa com Peter Brötzmann e Marino Pliakas (Full Blast)

Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho. Olhando para o retrovisor, é possível notar que o pensamento jazzístico mais radical, aquele que emerge a partir do trabalho de Coltrane em sua última fase e se prolonga pelos aspectos mais politizados da Fire Music, se ramifica de maneira própria na atividade de alguns músicos europeus. Me refiro […]

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Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.

Olhando para o retrovisor, é possível notar que o pensamento jazzístico mais radical, aquele que emerge a partir do trabalho de Coltrane em sua última fase e se prolonga pelos aspectos mais politizados da Fire Music, se ramifica de maneira própria na atividade de alguns músicos europeus. Me refiro ao improviso livre (free improv), ao improviso radical e enraizado em preocupações política característico de artistas como Han Bennink, Lou Gare, Keith Howe, Eddie Prévost, Cornelius Cardew, John Tilbury, e, é claro, um dos grandes expoentes do jazz europeu: o alemão Peter Brötzmann. O músico se apresenta esta semana com o trio Full Blast em três capitais brasileiras: em Salvador (13/07 no Teatro ICBA, Goethe Institut), São Paulo (16/07 no II FIME — Festival Internacional de Música Experimental) e Rio de Janeiro (17/07 na Audio Rebel).

Em sua longa trajetória, Brötzmann construiu uma obra no cruzamento entre vertentes da estética e da política. Participante desconfiado do movimento Fluxus, espécie de contramovimento difuso e transnacional que se postava contra a comercialização da arte, Brötzmann surgiu no cenário mundial primeiramente como um artista visual, cujo trabalho se desenvolveu a partir de múltiplas técnicas como colagens, aquarelas, xilogravuras, em parte utilizadas para ilustrar seus álbuns. A partir de um concerto de Sidney Bechet, realizado em Wuppertal nos anos 60, decidiu-se pela música. Desde então, vem renovando seu trabalho por mais de 40 anos, incluindo colaborações e gravações que alçaram o jazz europeu a um outro patamar, rompendo regras e estabelecendo outros parâmetros sonoros e estruturais. Seu estilo selvagem, talhado a partir de timbres ásperos, sinuoso e, acima de tudo, potente, pode ser reconhecido nos mais de cem discos editados junto a inúmeros parceiros como Bill Laswell, Sonny Sharrock, Ronald Shannon Jackson, Rashied Ali, William Parker, entre outros nomes importantes que vieram a definir o jazz contemporâneo. “Nunca foi meu objetivo quebrar as regras de propósito — simplesmente aconteceu. No campo da arte quebrar regras ou a destruir o que já existe para construir algo novo é um processo bastante comum ”, afirma o improvisador alemão em entrevista por email.

Porém, sim, Brötzmann quebrou algumas regras em sua carreira, criando uma obra saturada de espontaneidade e energia, que não raramente se manifestou de forma eminentemente política. Acompanhando o fervor das multidões que varreram o mundo em 1968, algumas expressões sonoras criaram o ambiente propício para a intensificação do caos e do clima de reviravolta política, social e cultural que marcaram esse momento. Imaginavam abalar, através da música, as placas tectônicas da velha ordem, subvertendo os fundamentos do capital em uma gana revolucionária tramada na cabeça de estudantes, trabalhadores, artistas e intelectuais. É uma época em que se nota em muitos artistas a crença de que, impelindo a música a um patamar de experimentação irreversível, levariam com ela, os costumes, crenças e formas de vida do Velho Mundo. Para Brötzmann, este contexto pode ser visto de forma contrastante com a música de hoje: “Não é possível entender o desenvolvimento da música improvisada nos anos de 1960 e 70 fora do contexto político daquele momento. Me parece que para as gerações mais jovens não há um contexto político, é tudo sobre questões formais e estéticas (embora eu consiga pensar que existem, sim, vários contextos políticos).”

Nos anos 60, seu segundo disco Machine Gun, marcou época, ainda que de forma relativamente localizada em relação a outros artistas que dialogaram com as transformações características do momento político. Assinado por Peter Brötzmann Octet, Machine Gun contava somente com músicos europeus: Buschi Niebergall e Peter Kowald nos contrabaixos acústicos; Han Bennink e Sven-Åke Johansson nas baterias; Fred Van Hove no piano, Evan Parker e Willem Breuker no saxofone tenor e Peter Brötzmann no sax barítono, tenor e na produção. O octeto se mostrou único na habilidade de reproduzir uma sonoridade caótica e cacofônica, trabalhando com altos volumes, mas com um senso de estrutura bem fundamentando. Na sequência, discos como Nipples, gravado no ano seguinte, traziam todos os músicos que, junto a Brötzmann, levariam adiante algumas das experiências esboçadas em Machine Gun: Derek Bailey e, novamente, Parker, Van Hohe e Bennink — este último, líder do Instant Composers Pool, um coletivo de músicos que veio mais tarde a se tornar uma orquestra.

O século XX foi marcado por rupturas que, de alguma forma, ancoravam-se em visões de um futuro melhor — mesmo que este futuro eventualmente pudesse ser pior para os “outros”… A partir desta relatividade das perspectivas de futuro dos dias de hoje, pergunto a Brötzmann se ainda há espaço para o pensamento de vanguarda? E qual seria o papel de uma estética vanguardista? “Tivemos de aprender que a música não é ‘a força de cura do universo’ (eu aprendi muito rapidamente). O que podemos fazer é tentar chegar em uma única alma. No palco você pode se abrir de verdade, não há o que esconder, não há espaço para especulações. Você se entrega por completo, e, fazendo isso, é capaz de abrir a cabeça de outras pessoas.”

Seus projetos mais recentes incluem a colaboração com ICI Ensemble, Heather Leigh e Paal Nilssen-Love, entre outros. Mas é com o trio Full Blast, que Brötzmann aportará em território brasileiro. Acompanhado pelo baixista Marino Pliakas e o baterista Michael Wertmüller, o Full Blast costumava lançar-se em sessões de improvisação radicalmente livre. Em 2016, porém, o trio editou seu quinto trabalho, o surpreendente RISC, investindo em dinâmicas de volume e ruídos combinados em estruturas de composição repletas de mudanças de atmosfera e instrumentação. “Michael e Marino desenvolveram a estrutura de RISC, eu só tive que reagir e contribuir com minhas melodias e sons para as estruturas gerais. Em geral, posso dizer que estamos sempre em busca de novas possibilidades e desafios — e neste disco isso é muito óbvio.”

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Pergunto ao baixista Marino Pliakas acerca da estrutura e do modo de apresentação de RISC e sua resposta demonstra o grau de elaboração do trabalho. O disco contém sete faixas e é dividido em dois momentos. No primeiro, as faixas ”Cafe Ingrid”, “Garnison Lane” e “Schwarzspanier Street”: absolutamente improvisadas, tocadas da mesma forma que normalmente o trio toca no palco e nos discos anteriores. No segundo momento, um conceito diferente: as faixas “Doss House”, “TTD”, “Try Kraka” e “Roguery” são executadas junto a algumas estruturas eletrônicas pré-gravadas, desenvolvidas pelo amigo do grupo, Gerd Rische, falecido em 2015, ex-diretor do estúdio eletrônico da Academia das Artes de Berlim. Estes sons constituíram as matérias-primas com as quais o trio travaria relações específicas — tocando simultaneamente, “contra” ou utilizando-as como “referência” — como se trabalhassem a partir de um pedra bruta. Alguma gravação adicional foi realizada após as gravações, mas, em geral, houve apenas um tratamento de pós-produção realizado pelo baterista Michael Wertmüller. “Nosso desafio foi reunir estas peças de jazz improvisado com outras quatro partes, ou mesmo composições pré-gravadas. Uma estratégia nova para o nosso trio, mesmo para o Brötzmann. Trata-se de influências recíprocas entre o free jazz tocado e bases eletrônicas complexas.”

Quais seriam as características mais específicas no trabalho do Full Blast? Brötzmann revela uma das bases de seu trabalho: “Se você seguir minha pequena carreira poderá perceber que os bateristas foram e ainda são uma das partes mais importantes pro trabalho. Michael (que conheço desde que era um homem bem jovem) é um baterista extraordinário, com brilhantismo técnico, mas — mais importante — com uma ‘pegada’ (punch) que sai de suas entranhas. E eu gosto e preciso disso. Já Marino desenvolveu um caminho e uma voz própria neste instrumento tão difícil (baixo), com um alto grau de variação. Os dois juntos estendem um tapete vermelho para que um ‘tocador de trombeta’ possa ir onde quiser.”

A política permanece como uma referência no trabalho de Peter Brötzmann, ainda que de forma diferente daquela empregada nos anos 60: “Em nossos tempos, é difícil se manter otimista. Sabemos que o capitalismo mata qualquer tipo de vida social em longo prazo. Precisamos de uma nova forma de pensar seguida por uma nova maneira de agir. Mas o ‘fator humano’ tem ambos os lados, brilhantes e obscuros.” Sobre envelhecer, Brötzmann mencionou em uma entrevista para a revista Wire que estava “mais interessado em pequenas coisas, pequenos segredos.” Perguntei quais seriam essas “coisas” e “segredos”, particularmente em relação à música e improvisação. A resposta foi lacônica, porém muito instrutiva: “Eu não vou te dizer, senão não seria mais um segredo.”

Peter Brötzmann "Wuppertal" (xilogravura, 2005)

Peter Brötzmann “Wuppertal” (xilogravura, 2005)


*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).

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