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Por Luis Edmundo Araujo, editor de esporte do Cafezinho
Na disputa dos últimos anos pelo posto de melhor jogador do mundo havia, sempre houve por parte da nossa grande imprensa corporativa uma certa tendência, a preferência às vezes sutil, outras nem tanto, pelo argentino Lionel Messi, silencioso, avesso a declarações polêmicas, na dele, genial dentro do campo e, agora, condenado na Espanha por sonegação milionária, e em euros, o que para a mídia nacional, convenhamos, nem costuma ser tratado como um crime tão grave assim. De Cristiano Ronaldo víamos as caras, as bocas, um pouco das grandes jogadas, arrancadas, golaços e a ajeitada no cabelo, a mirada no telão e mais toda a gama de trejeitos que ele continuará a fazer após a conquista da Eurocopa, inédita para Portugal. Por isso a surpresa com a referência clara do capitão da seleção portuguesa, com o agradecimento direto dele aos imigrantes em meio à multidão em festa, o que em tempos de craques e ex-craques omissos ou dissimuladamente golpistas, com raras exceções aqui e lá fora, já é um alento.
A Eurocopa não começou bem para Cristiano Ronaldo, que passou em branco nas duas primeiras rodadas, exagerou na vaidade na estreia ao ignorar o capitão adversário, mexendo com os brios de toda a Islândia, e ainda perdeu um pênalti no segundo jogo, contra a Áustria. Só na terceira partida, no empate de 3 a 3 contra a Hungria, o atacante português pode se tornar, enfim, o único jogador da história a marcar em quatro edições seguidas da Eurocopa, desde 2004, e com um golaço de letra, depois outro pra ajudar a garantir a classificação portuguesa às oitavas-de-final sem uma vitória sequer, mas também sem derrotas, ora pois.
Na semifinal ele bateu outro recorde ao abrir o placar na cabeçada fulminante, tornando-se, com 9 gols em quatro edições, o maior artilheiro de todas as Eurocopas. Também caboverdiano, nascido na Amadora, em Lisboa, Nani, que já tinha feito os gols de empate no 1 a 1 com a Islândia e contra a Hungria, fez o segundo contra País de Gales, que sacramentou a ida à final em que Cristiano Ronaldo ganhou ares do rei sumido em África e eternamente desejado pelos portugueses, Dom Sebastião, com um quê de El Cid, primeiro no drama de sua contusão, na tentativa desesperada de voltar e no choro final, na maca, que emocionou portugueses e franceses no estádio, e a quem mais tenha visto a cena pela tevê, e depois no renascimento fora do campo, mancando e incentivando seus companheiros até o choro dessa vez de alegria, com o apito final e o título ganho na prorrogação graças ao gol de Éder, nascido em Guiné-Bissau.
Cristiano Ronaldo tem também suas origens africanas, ainda que um pouco mais distantes que a maioria de seus companheiros. Sua bisavó paterna, Isabel Rocha, era natural de Cabo Verde, e além dos gols do bisneto dela, todos os outros de Portugal na conquista da Eurocopa foram de imigrantes nascidos ou originários de outro país, de outro continente ou etnia, como os milhões que, na crise migratória atual, viraram refugiados, morrem afogados, são chutados e insultados enquanto fogem do extermínio, da miséria, da fome e das guerras. Pode até ter sido jogada de marketing, como alguns acreditam, ainda mais após Cristiano Ronaldo se recusar a trocar de camisa contra a seleção de Israel e depois aceitar participar de um comercial fazendo exatamente o gesto negado. Mas só de tocar no assunto tão diretamente, em tempos de manifestações racistas, elitistas, sem a menor vergonha pelo mundo afora e por aqui também, o atacante português merece elogios.
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