Por Lia Bianchini, especial para O Cafezinho
Uma das principais vozes da esquerda na luta contra o golpe no Congresso Nacional, atualmente em seu sexto mandato como deputada federal, Jandira Feghali (PCdoB) se lança, neste ano, à disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro.
Entre uma reunião e outra, a deputada recebeu O Cafezinho em seu gabinete no Rio de Janeiro para uma conversa sobre eleições municipais, cenário político nacional e estadual, mídia e novas perspectivas para a política institucional.
O Cafezinho: A primeira notícia oficial sobre a decisão do PCdoB em lançar sua pré-candidatura à prefeitura do Rio saiu em abril, dois dias depois da votação da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados. Eu queria que você explicasse como foi o processo de decisão pela sua candidatura e se o voto de Pedro Paulo (PMDB) favorável ao impeachment foi, de fato, tão importante assim.
Jandira Feghali: Então, a história não é bem essa. A conferência municipal e estadual do partido de 2015, em outubro de 2015, já havia decidido pelo lançamento de uma candidatura própria. O que nós aguardamos pra decidir foi que nome lançaríamos. Apesar de meu nome ser um pouco natural de se esperar que fosse indicado à candidatura, essa definição não estava dada, pelo papel nacional que eu estava cumprindo e pela análise do contexto que nós precisávamos fazer no processo de escolha dessa candidatura. Mas essa decisão foi em outubro de 2015. O que existiu, de fato, novo depois da votação do impeachment foi o deslocamento do PT. Já havia dentro do PT a defesa de apoio à uma candidatura do PCdoB (no caso, o meu nome), mas existia da parte do PT uma preocupação de, ao romper com o PMDB, piorar a situação da votação do impeachment na Câmara. E, na verdade, o que houve foi, apesar de o PT ter mantido uma posição, vamos dizer assim, mediada com o PMDB, ainda sem uma definição clara, eles traíram a Dilma, o Lula, todo mundo no processo do impeachment. Essa definição do PMDB foi o início da derrota da Dilma na Câmara. Essa decisão do PMDB do Rio foi que arrastou o processo para o que nós vivemos logo em seguida, foi o primeiro disparo da derrota da Dilma dentro da Câmara dos Deputados. Então, o que houve depois do impeachment foi o deslocamento do PT, porque nós já tínhamos nos deslocado da aliança com o PMDB desde outubro de 2015.
O Cafezinho: O PCdoB foi aliado ao PMDB em eleições passadas. Você acha que, para a população, já está nítido que essa aliança foi rompida ou a memória dela ainda é presente?
JF: Olha, a gente não mediu isso em pesquisa. Mas também não temos porque negar a aliança anterior. Esse preço nacional que a gente vem pagando aqui desde 2010, é de uma aliança que as pessoas entenderam naquele momento. A gente precisava eleger Lula, precisava eleger Dilma e esse é um preço nacional que se pagou aqui. Mas a gente vem se deslocando da política do estado e da cidade. Você veja: nós não tivemos ninguém no governo Cabral, como não temos ninguém no governo Pezão, não tínhamos ninguém no secretariado do Cabral. O que o PCdoB dirigia era instituto de pesquisa, não tinha nenhuma interferência na política do governo Cabral e nunca tivemos ninguém no governo Pezão. Então, a gente já estava completamente deslocado do PMDB estadual e, no Rio de Janeiro, a gente já discutia há muito tempo a nossa diferença de concepção de cidade da política que vinha sendo desenvolvida no município. Tanto que nesse acúmulo de debates, nós acabamos, em 2015, num momento de decisão do nosso partido, decidindo por romper a aliança e lançar uma candidatura do PCdoB. Então, isso já é acúmulo de uma análise que a gente vinha fazendo das diferenças que foram se colocando. O golpe só consolidou essa posição, mas já não havia no PCdoB nenhuma perspectiva de aliança com o PMDB.
O Cafezinho: Eu entrevistei o Osório há pouco tempo e, há alguns meses, o Jefferson Moura, vereador da Rede. Em um dado momento da entrevista com o Osório, eu coloco o PSDB como um partido de direita e ele fez questão de negar esse posicionamento político. O Jefferson Moura, por sua vez, fez questão de explicar que a Rede não é um partido de esquerda. A política brasileira não é pautada pela ideologia ou mascarar o discurso ideológico é uma forma de atrair eleitorado?
JF: Eu acho que esse mascaramento é muito ruim. Até porque o que define hoje direita e esquerda é quem, na verdade, consegue desenvolver para a maioria e para a sociedade os avanços na sua vida (de igualdade de acesso a bens e serviços, da possibilidade de busca da própria emancipação, seu protagonismo histórico). Então, é óbvio que quando você olha para o capitalismo moderno brasileiro (e eu ainda acho que a luta de classes existe e que esse confronto de exploração do trabalho não vai ser mudado com eleição apenas) quer dizer, o PSDB hoje representa a expressão mais aguda do capitalismo moderno, que é a concentração de renda, a desnacionalização da economia e a restrição de direitos. Então, se isso não é direita, o que é a direita? Você pode até imaginar que, numa agenda desse tipo, talvez haja, diferentemente, uma outra direita, com marcas claras do fascismo, como é Bolsonaro e companhia, que não é a mesma coisa. Mas eles se articulam no Congresso, se articularam no golpe, se articularam na rua. Nos movimentos de rua, o PSDB estava articulado com o Bolsonaro, com o DEM, com essa turma toda. Então, não adianta mascarar.
Por outro lado, acho que o Jefferson não mascara, não. Ele diz o que de fato é a Rede: uma força política que surge de forma partidária e que, de fato, não se coloca claramente no campo da esquerda. Então, aí é como eles se colocam. Tem gente de esquerda lá dentro, mas a força como um todo, pela sua heterogeneidade, pelas suas propostas, pelo seu comando, não se coloca no campo da esquerda.
Agora, o PSDB negar-se num campo conservador e à direita é que é um mascaramento ideológico. E, desse ponto de vista, é o pragmatismo eleitoral que dirige esse discurso.
O Cafezinho: Um dos principais articuladores do golpe foi a mídia hegemônica. Essa mesma mídia já fez ataques à sua figura, pouco tempo depois da oficialização de sua candidatura à prefeitura do Rio. A mídia, no Brasil, é mais um partido do que um veículo de comunicação e informação?
JF: É, eu acho que não se faz mais jornalismo, né?! O que se faz é política e política de desconstrução da esquerda. Quer dizer, a Rede Globo e outras emissoras, mas principalmente a Globo, têm uma história já de apoio aos golpes e não só dentro do Brasil. É uma posição ideológica, a mídia se articula para sustentar agendas conservadoras e de direita e, inclusive, de interesses internacionais no processo, ela se move pelos seus interesses próprios de isenção de impostos, de atração de recursos públicos para sua sustentação e se move numa articulação de ativista político. Isso não é jornalismo.
Agora, a imprensa ser parcial não é nenhuma surpresa. O que nós precisamos é que todas as parcialidades tenham direito de aparecer e isso, hoje, é o que não existe. Há uma desigualdade, inclusive financeira e de estrutura pra uma mídia desse porte, que consegue atingir grande parte dos lares brasileiros, sustentada com isenções tributárias. Existe uma outra mídia plural e diversa, cujo financiamento é nenhum ou muito pouco. Isso é o que está incorreto. Eu acho que governo de esquerda tem que pagar essa dívida com a sociedade: regular esse monopólio da comunicação e permitir a pluralidade de opiniões. Uma regulação econômica e com o financiamento de outras possibilidades que o Brasil tem e que não são poucas, vai desde a rádio comunitária, passando pelas plataformas digitais e jornais de bairro, ou seja, há inúmeras possibilidades de financiar as diversas opiniões e a gente ainda não vê isso acontecer no Brasil.
Mudou um pouco o perfil, por exemplo, da publicidade oficial do governo federal, mas ela ainda é predominantemente pra esses veículos hegemônicos. Acho que nos estados e municípios isso também não muda muito. Então, na minha opinião, um governo de esquerda precisa, seja ele municipal, estadual, federal, ter um olhar muito claro para a democratização da comunicação.
O Cafezinho: Aqui no Rio tem se falado muito sobre a necessidade de unificação das chapas de esquerda. Você chegou a fazer uma reunião com o Marcelo Freixo e o Alessandro Molon para discutir essa possibilidade. O que inviabilizou a unificação das chapas?
JF: Na verdade, essa luta política, essa consciência democrática que acordou, tem um incrível legado: além de as pessoas terem de novo se emocionado com a política e terem ido à luta com uma resistência incrível, rica, criativa, que envolveu não apenas partidos, mas coletivos de cultura, de mulheres, a juventude está dando um show com os movimentos de ocupação…toda luta que vem se fazendo de resistência nas suas mais variadas formas, tem um legado que foi a unidade desses movimentos sociais, que, às vezes, nem conversavam e que passaram a conversar, a articular juntos dentro de um único fio condutor, que é a questão democrática. Então, é natural que esta unidade se coloque no processo eleitoral, que seja exigida pela sociedade uma unidade também nas eleições.
Foi em respeito a isso e valorizando esse legado que nós puxamos aquela reunião com Freixo e Molon, na perspectiva de se construir processos que pudessem dar unidade ainda no primeiro turno. Foi uma primeira reunião, obviamente ninguém ia retirar a candidatura ali, mas nitidamente se percebe uma dificuldade de deslocamento dessas candidaturas.
O Molon, em função de exigências de crescimento da Rede e da própria Marina, que tem perspectivas eleitorais nacionais; e o PSOL, porque tem uma história de marcar suas posições, mesmo que isoladamente. Então é muito difícil esse deslocamento.
Foi uma reunião, inclusive, de bom nível, em que nós tratamos de manter um acordo de boa convivência nesse primeiro turno e o processo vai dizer se une ou não no primeiro turno. Mas, na minha opinião, o eleitor de esquerda vai fazer sua opção no primeiro turno. Se a gente não unir as candidaturas, o eleitor vai fazer isso, ele vai votar em quem estiver na frente, pra colocar alguém de esquerda no segundo turno. Eu acho que é viável nessa eleição a esquerda estar no segundo turno, apesar da força das candidaturas conservadoras (um com uma base muito forte nas igrejas, outro com a máquina), mas, eu acho que o deslocamento é possível.
Nós assumimos de fazer a defesa de que todos participem dos debates de televisão, mesmo que a lei não obrigue (é facultativo). Desde a votação na Câmara e é bom esclarecer isso aqui: na Câmara, nós votamos pela emenda feita pelo PSOL de que se garantisse a presença de quem tivesse um deputado e nós votamos e disputamos essa emenda, mas perdemos para aquela maioria que existia naquele momento na Câmara. Então nós vamos defender a participação de todos e já acordamos que, no segundo turno, seja quem for, os outros apoiam. Esse acordo existiu.
O que eu lamento é que, depois disso dirigentes e vereadores do PSOL estejam diariamente me agredindo em suas redes sociais. Acho que isso não corresponde à reunião que nós fizemos e mostra nitidamente a dificuldade que o PSOL tem em pensar numa unidade nesse campo. Então, acho que esse comportamento dificulta muito uma mudança de posição do PSOL. Isso é muito difícil. Espero que, pelo menos no segundo turno, isso não prevaleça, que esse apoio possa se dar a quem chegue lá.
O Cafezinho: Vamos falar um pouco sobre a questão de gênero. Recentemente, o Brasil se chocou com um caso de estupro coletivo no Rio; a Luiza Brunet denunciou o marido por agredi-la; o próprio candidato do PMDB à prefeitura, Pedro Paulo, é acusado de agredir a ex-esposa. Nesse cenário violento e machista em que as mulheres estão inseridas, qual é a importância da disputa na política institucional?
JF: Eu acho que lugar de mulher é na política. No caso dessa pré-candidatura (e a candidatura que vai ser homologada mais à frente), eu sou a única mulher que está na disputa e uma mulher de esquerda, feminista, que tem história no movimento de mulheres. Eu, que fui relatora da Lei Maria da Penha, acho que a questão da violência contra a mulher será importante não só na discussão da campanha, mas na gestão da prefeitura.
Então, eu parto do olhar da posição de mulher e percebo que a questão de gênero é transversal a todas as políticas públicas e nós vamos precisar colocar no centro do nosso debate a questão cultural. Quando eu falo cultural, não é só arte, eventos, eu digo a cultura comportamental. A minha visão de cidade tem como centro a questão cultural: enfrentar a cultura do estupro, a cultura do preconceito, a cultura da desintegração, da apartação social, a cultura da desigualdade. Tudo aquilo que nos separa (seja mobilidade urbana, oportunidades de trabalho, educação, a integração entre as pessoas – zona norte, sul, leste, oeste). Nós temos que enfrentar tudo que nos aparta, essa cultura de apartação tem que ser enfrentada numa gestão de esquerda. E tudo que aparta e distancia gera muita dificuldade de entender o outro, de entender a diferença, de respeitar a diferença. Nós temos que enfrentar essas culturas de preconceito e ódio (que é o que vivemos hoje) fazendo a cultura da solidariedade, da integração e fazendo políticas públicas pra isso.
O Cafezinho: Recentemente, foi divulgada uma pesquisa CNI/Ibope que mostrava que 39% da população brasileira consideram o governo Temer ruim ou péssimo e que 53% discordam da maneira como o presidente interino governa. Ainda que sejam números bastante ruins, foram melhores do que a última pesquisa CNI/Ibope do governo Dilma (divulgada em março deste ano, em que 69% consideravam seu governo ruim ou péssimo e 82% não aprovavam sua maneira de governar). A política institucional brasileira faliu?
JF: Muito. Toda ela. Eu acho que no âmbito nacional nós vamos ter que rediscutir o sistema político brasileiro. Por isso é que nós estamos defendendo já há uns dois meses o plebiscito. Acho que no momento em que se faz uma ruptura democrática, em que existe um governo ungido por um golpe, um governo sem voto e um orçamento sem povo, que é o que ele está fazendo, um governo que aponta uma agenda de absoluta restrição a todas as conquistas trabalhistas, previdenciárias, de direitos civis, direitos humanos, uma agenda de desnacionalização da economia, de entrega de ativos como o nosso subsolo…essa é uma agenda que vai ter reação, óbvio. E a nossa preocupação é que, no momento em que a sociedade reage, exatamente, que a repressão seja mais dura e mais aguda.
Então, nós vamos viver momentos de grandes instabilidades, já estamos vivendo e vamos viver mais ainda se esse impeachment for confirmado. Nós precisamos lutar pra que seja devolvida ao eleitor a decisão do que eles querem. A emenda constitucional das eleições diretas exige quórum qualificado e existe briga jurídica em torno da constitucionalidade dela ou não. Mas o plebiscito não. Não briga com a constituição e devolve à sociedade o direito de decidir sobre o que fazer. Então, para além disso, de antecipar as eleições, que é um outro processo, precisa ter, de fato, uma reforma política verdadeira, que não seja restritiva, que não impeça os partidos de existirem, mas que seja uma outra forma de compreender a vida partidária no Brasil e, consequentemente, o processo eleitoral. E, ao mesmo tempo, criar mecanismos de maior participação direta da sociedade.
Agora você veja que juntando essa pergunta com a pergunta anterior, os movimentos ativistas que pedem a democracia direta cresceram muito no mundo e o resultado final desses movimentos são as mulheres. São movimentos que estão ungindo as mulheres para o comando político do processo (e é minha expectativa no Rio de Janeiro também seja assim). Existe uma exigência muito grande de que haja representação, mas que a democracia também se faça de forma direta.
Então, eu entendo que nós precisamos mexer no sistema político brasileiro, precisamos fazer uma reforma política mais profunda, nós já conseguimos vencer a luta do financiamento empresarial, mas, para além disso, tem muito mais coisas que precisamos fazer, que valorize de fato as legendas que tem representação, que a democracia prevaleça no processo e que os mecanismos de participação direta sejam muito mais fortes e mais frequentes.
O Cafezinho: E você acha que isso é possível a curto prazo?
JF: Olha, eu acho que, com esse Congresso que nós temos, é impossível. Um Congresso muito, mas muito conservador. E não só conservador, ele tem um grau de desqualificação do debate muito grande. Porque, se ele é conservador mas tem um debate de alto nível ideológico e político, você discute, debate. O problema é que boa parte daquela turma a gente chama de “vereadores federais”, que são pessoas que estão no Congresso, mas debatem a política pontualmente, só pensando em se reeleger, em qual é a ponte vai fazer com o município, qual posto vai abrir. Então, nesse sentido, eu vejo que este Congresso não tem capacidade para fazer. Eu acho que se esse movimento de rua, que nós conseguimos colocar, ficar antenado com o processo político que está em curso e conseguir mudar essa correlação, eu acho que nós poderemos ter uma realidade política nacional que nos permita alcançar mais avanços.
O Cafezinho: As Olimpíadas têm pautado um debate forte na sociedade entre a cidade negócio versus a cidade para as pessoas que nela habitam. Como você enxerga esse debate? O Rio, hoje, não é uma cidade voltada para seu morador?
JF: O Rio de Janeiro vem sofrendo muito por algo que é não ser olhado como uma cidade da qual as pessoas têm direito. A cidade foi apropriada por uma visão dos privilégios versus direitos e eu acho que os privilégios venceram a possibilidade dos direitos. Essa contraposição, eu acho que é verdadeira hoje em dia. A gente tem a análise de que essa gestão do Rio de Janeiro foi a que fez mais remoções entre todos os governos anteriores juntos, o que é muito ruim do ponto de vista do direito à habitação e ao território. Além disso, ao mesmo tempo, criou como um braço do desenvolvimento a especulação imobiliária (o metro quadrado mais caro do Brasil é o Rio de Janeiro). E as regiões onde estão tendo as obras, o legado não será, por exemplo, de habitação popular, mas sim de uma apropriação pelo mercado, o que é muito ruim. Quer dizer, o legado que fica é muito restrito em relação à grande maioria da população da cidade.
E é uma cidade só para fora, é chamada cidade global. Ela não olha nem para a região metropolitana, nem para o Brasil, ela só olha para fora, como é sua imagem lá fora, como se a RioTur fosse a prefeitura, é algo só para estrangeiros.
Você veja: a decisão do preço da passagem do metrô e do BRT para os Jogos Olímpicos de R$ 25 exclui o carioca das Olimpíadas, exclui o trabalhador de usar esse transporte que foi feito para as Olimpíadas. Em Londres, por exemplo, o transporte foi gratuito durante as Olimpíadas. Aqui nós estamos elevando o preço em quase dez vezes. Então, isso vai restringir o uso do próprio carioca para ir aos jogos ou ao trabalho, porque a vida continua, começam as Olimpíadas, mas a vida existe normalmente. É uma exclusão dos cariocas, principalmente da área popular, mas também de uma parte da classe média, do chamado legado olímpico.
É um absurdo, uma visão de cidade que priorizou os privilégios ao invés dos direitos. É uma cidade que não trabalhou para induzir suas cadeias de produção, incentivar as oportunidades de trabalho, para fazer uma escola que tenha maior adesão dos jovens e das crianças, é uma gestão que não consulta, que não democratiza, todas as decisões são tomadas de forma absolutamente autoritária em relação ao direito do povo dizer qual é a prioridade dele em seu bairro. Ninguém é consultado nessa cidade, as decisões são tomadas e ponto. Não há nenhuma permeabilidade entre gestão e sociedade. Então, nós precisamos virar esse jogo, inverter as prioridades e fazer com que seja uma cidade democrática, acessível, segura e uma cidade onde o poder público controle o mercado e não o contrário. Não pode, por exemplo, a Fetranspor ser a comandante do transporte público, o poder público é que tem que controlar e garantir a universalidade da mobilidade urbana.
O Cafezinho: Não só a prefeitura, mas o governo do estado também é gerido pelo PMDB. Em suas falas públicas sobre a crise no estado, antes de seu afastamento, Pezão creditava a crise financeira à queda do preço de barril de petróleo. No seu ponto de vista, essa é uma avaliação correta?
JF: Não. A crise do petróleo é um fator, porque o Rio depende muito do petróleo, mas os próprios royalties do Rio de Janeiro tinham grande parte destinada à previdência, ao caixa de previdência do estado. Acho que aqui nós sofremos não só de falta de planejamento, mas do uso do dinheiro público para não prioridades. Então, eu acho que aqui, como dizem, o buraco é mais embaixo. É muito fácil culpar só a crise do petróleo. Em termos nacionais isso tem um peso enorme, porque o Brasil exporta commodities e o petróleo é uma. Mas, no estado do Rio de Janeiro, apesar de o petróleo ter impacto (quando se refreia a indústria do petróleo há impacto em outras cadeias de produção), eu acho que aqui é falta de planejamento, falta de atuação nos indutores do serviço de indústria, falta uma visão metropolitana do processo, é desvio de recursos. Eu acho que o PMDB no estado e na prefeitura são opções muito questionadas pelo povo e, por isso, eleitoralmente fragilizadas.
O Cafezinho: Pra finalizar, na sua opinião, qual será o maior desafio a ser enfrentado pela próxima gestão da prefeitura?
JF: Primeiro, assim, nós estamos analisando os dados e eu acho que economicamente o Rio também estagnou. Então, o desafio de uma nova prefeitura primeiramente é fazer uma gestão democrática. O fio condutor de todos os programas e de toda a gestão tem que ser uma visão democrática de cidade. Onde as construções sejam feitas com uma participação real. E eu não estou falando isso panfletariamente, não, é uma visão de fato. A cidade tem que participar de seu processo de construção. Então, acho que esse é o primeiro desafio: fazer dessa prefeitura algo democrático, que as pessoas percebam que elas pertence a essa cidade, que elas possam decidir suas prioridades junto à gestão e que se possa executar políticas que sirvam à maioria, invertendo as prioridades que até agora têm sido dadas.
Segundo, eu acho que há políticas universais que precisam ser enfrentadas: a política de saúde, que ainda é muito restrita; uma política educacional (existe hoje uma política de educação que chama de horário integral algo que vai até às 14h e que a escola não é o centro de articulação de uma comunidade dentro de uma cidade complexa como essa). Essas políticas universais precisam de fato acontecer, incluindo mobilidade urbana, que tem que estar articulada com planejamento urbano, desenvolvimento econômico, e colocar no centro da concepção dessa gestão aquilo que eu te disse antes: a questão cultural, a cultura da integração e da solidariedade e não a cultura da apartação. Isso, pra mim, é central.
Mas, para além de tudo isso, como mulher, eu te diria que o grande desafio é conseguir mostrar a cara das mulheres em todas as políticas: se a cidade é segura, tem que ser segura para as mulheres, se eu existe oportunidade de trabalho, as mulheres têm que conseguir trabalhar, precisa existir creche em horário estendido até a noite para que aquela mãe que trabalha até às 19h possa deixar seu filho na creche. A ótica da gestão tem que partir também da visão de que cultura e gênero sejam transversais a toda a política de governo.
O prefeito do Rio não é um sindico. É claro que ele tem que administrar desde o lixo na rua até as questões mais complexas na cidade. Mas ele tem que ser um líder político (ou uma líder política), porque ele tem que liderar o processo da cidade, mas também um processo metropolitano, porque um enorme percentual da região metropolitana vem para o Rio trabalhar, ser atendido na saúde e usa o transporte. Ele tem que ser um líder político também olhando para o Brasil, então, eu acho que mais do que ser apenas um “gestor paroquial”, o prefeito da cidade tem que ser um líder político que consiga articular políticas, fazer políticas integradas em cada território, mas também olhar a metrópole e o Brasil.