Por Bernardo Oliveira*, editor de música do Cafezinho.
Foto: Fernando Eduardo
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Numa dessas noites, contagiado pelas libações da antemanhã (sinônimo cínico para a madrugada dos bebuns), percorria os vídeos do Youtube buscando desvendar os mistérios de Guardiola no período glorioso em que foi técnico do Barcelona. Nunca fui um advogado do Tiki-taka, ainda que parte desta antipatia tenha se originado do ressentimento, da incompreensão que se abateu sobre nós diante da incongruência entre o passado glorioso e a degeneração do futebol brasileiro. E, no entanto, em entrevistas e até mesmo em sua biografia, Guardiola cita a seleção brasileira como inspiração, particularmente aquela comandada por Telê Santana. Não estou certo quanto à veracidade dessa informação, mas o fato é que parti para uma comparação entre as progressões triangulares do Barcelona de Messi e Iniesta com o esquema de Telê na Copa de 82 e fiquei profundamente surpreso com a semelhança. Aquela seleção jogava em tríades móveis, tal como o time de Guardiola, que teria aperfeiçoado o esquema não só do ponto de vista técnico, mas também aproveitando-se do material humano excepcional que tinha em mãos.
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Ora, por que a triangulação? Porque auxilia a progressão, conduz o time em direção ao gol de maneira mais rápida e eficaz possível dentro de um esquema de jogo coletivo. O futebol, porém, não se resume a uma “matemática severa”: é preciso usar dos meios disponíveis para, literalmente, driblar o acaso e transformar a multiplicidade de triangulações em um movimento único, coeso. A música de João Gilberto procede de maneira análoga: para atingir as modulações que escutamos, por exemplo, na versão definitiva de “Retrato em Branco e Preto” — gravada ao vivo e editada no disco Live at the 19th Montreux Jazz Festival (WEA, 1986) — ele não se aprisiona à tríade harmonia, melodia e ritmo, mas, a partir dela, produz deslocamentos internos na própria estrutura da canção. Os elementos que fornecem as bases para a tríade musical em uma relação de reconhecimento — a melodia respaldando-se na harmonia, o ritmo organizando e embalando a melodia — são utilizados por João Gilberto de forma livre, com o claro intuito de recriar, remodelar a canção. A tríade progressiva possibilita uma espécie particular de sintonia dinâmica entre a melodia, a harmonia e o ritmo.
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Articulando-se em tríades, o Metá Metá chega a MM3, seu terceiro disco, em um movimento contínuo de propagação e simbiose. O grupo não abre mão das prerrogativas da canção brasileira: a melodia fluindo harmonicamente sobre os acordes, o balanço, o lirismo, a ênfase no canto, no ritmo. Não se furta também a explorar o rock e suas vertentes mais ruidosas, como o metal e o punk. O jazz não se limita à liberação do improviso, mas também por uma certa disposição do trio em testar continuamente estruturas e sonoridades, em diálogo não com o bebop, mas com Sun Ra e o free jazz. Há, porém, um quarto elemento, e ainda um quinto, um sexto, que derivam das sínteses, das reconfigurações que ocorrem necessariamente em contato com novas experiências. As escalas oscilantes da África Oriental, do Mali, do Marrocos. As sonoridades mornas da África banta, de Angola, Moçambique. Os signos das cosmologias afrodiaspóricas, a partir das quais Kiko Dinucci inaugura um novo estágio na utilização do Iorubá na canção brasileira. Outra tríade que se encerra e que se abre em triangulações infinitas, modulando conforme o ambiente e a canção.
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No primeiro disco do trio, lançado em 2011, a canção era soberana, ainda que remodelada por violões preparados e um repertório que fornecia as condições de possibilidade para a atualização vigorosa de alguns clichês da MPB. Na sequência, com Metal Metal (um título irônico, por vezes infame), o ingresso de dois elementos fundamentais: o baterista Sérgio Machado e o contrabaixista Marcelo Cabral. O repertório do grupo se torna mais encorpado, o caráter ruidoso e jazzístico se amplia, assim como a utilização de efeitos. Surgem canções mais pesadas como “Oyá” e “Rainha das Cabeças”. Entre o primeiro e o segundo disco, vale destacar um momento particularmente liberador: a versão de “Laroiê Exu” gravada em um show no Esporte Clube Lira Contemporânea, na qual Kiko Dinucci radicaliza a utilização percussiva do violão preparado, Thiago França explora não somente as escalas, arpejos e intervalos, como também os ruídos, enquanto Juçara solta a voz com uma disposição destoante daquela empregada no primeiro disco. Formou-se uma nova tríade, síntese que fez o trio avançar de forma difusa, para todos os lados. As parcerias entre os membros do trio-quinteto se intensificaram. A dinâmica triádica produziu uma coesão aberta, de modo a permitir que Sérgio Machado, Siba e Rodrigo Campos contribuíssem decisivamente nas composições.
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A tríade formada, libera o trio para tornar-se quinteto, como de fato funciona a tríade de Guardiola — sempre um ou dois jogadores na sobra para que a fluência da triangulação não se comprometa diante do acaso e das forças externas. Metal Metal foi gravado e o grupo seguiu em turnê, reforçando a sintonia, elevando a tensão, ampliando as prerrogativas libertárias do jazz e da música africana. Contendo gravações de canções tocadas apenas nos shows (entre elas, “Me perco nesse tempo”, clássico das Mercenárias), Meta Metá EP é editado em 2015, indicando que o trio-quinteto partiu para novas triangulações, cuja característica contraditória é a de permanecerem abertas, assimilando não só as experiências do percurso, como também apostando na potência do conjunto, da vidência comum aos artistas que trabalham com o acaso e o improviso em processos coletivos.
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Sobre esses elementos simultaneamente coesos e abertos, o trio-quinteto se transfigura em uma criatura de muitas cabeças, sem nunca deixar de se constituir como uma tríade primordial: Metá-Metá. Segundo Reginaldo Prandi em sua Mitologia dos Orixás, o infeliz Logun Edé beneficiou-se dos cuidados de Oxalá, que, piedoso de sua infelicidade, lhe proveu sabedoria e compreensão. Porque era ganancioso e sequioso de bajulação, Logun Edé traiu Oxalá e foi castigado da seguinte forma: “Oxalá então determinou que Logun Edé fosse homem durante um período, e no outro fosse mulher. Nunca haveria a possibilidade dele ser completo, e teria a sina de sempre começar tudo novamente.” [1] A questão, assim, não se resume à tríade, aos “três amigos”, mas a uma certa abertura, uma incompletude plena, desprovidas de travas e recalques. Metá Metá é também um vetor de hibridização e abertura para o deslocamento contínuo: é homem e mulher, mas está para além das classificações usuais para “homem” e “mulher”; é devir-mulher, devir-animal, devir-vespa, devir-martelo, como escreveria outro Orixá de muitas cabeças. O poder de Metá-Metá seria o de “hibridizar características”:
O que vai caracterizar os orixás metás, não é, como se poderia pensar, a homossexualidade. Os mitos contam que muitos deuses aborós ou iabás tiveram relações sexuais com orixás do mesmo sexo. Ser metá tem a ver com o fato de o deus hibridizar características, comumente classificadas em categorias sociais diferentes, dentre elas (mas não só) as de gênero. Assim, os metás transformam-se de, e/ou são a um só tempo, animal-humano (Logun e Oxumaré); vegetal-humano (Ossaim); pênis-vagina (Oxumaré); iabá-aboró (Logun e Oxumaré); fenômeno natural-animal (Oxumaré); peixe-mamífero (Logun) etc. [2]
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Este caráter obsessivamente desenraizador, relativamente independente de toda e qualquer estabilidade identitária, apoia-se, contraditoriamente sobre um equilíbrio dinâmico. Podemos atribuir este equilíbrio ao poder da amizade, captado magistralmente por Rodrigo Campos em duas letras emblemáticas. Em “Três Amigos”, a faixa de abertura, Campos ensaia um primeiro ritual, um “carnaval onírico”. Topamos com uma lógica poética intransitiva, que parte dos “três amigos” e das múltiplas forças, por vezes antagônicas, que rondam esta amizade:
“Tem um carmim, um fim, um dó
Tem um agogô, um pus, um som
Tem, de funeral, de bem viver
Tem, de cheiro meu, de cheiro bom”
Em outra letra, Campos postula “A imagem do amor” e arremata: não é pra qualquer um. A indeterminação das imagens, a descrição dos símbolos e presságios que circundamsobre um ritual imaginário. As sonoridades afro-orientais, em estranha conexão com a cavalgada heavy-metal que embala o refrão, ampliam o aspecto dramático da letra, ressaltada pelo melisma oriental empregado por Juçara Marçal:
“A imagem do amor
Não é pra qualquer um
Fere os olhos desleais
Impele os imortais”
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A tríade progressiva, como em João Gilberto, é uma forma liberadora de organização dos fenômenos sonoros e musicais: a tríade mantém-se inteira (os três amigos, as três fontes, as três modulações), mesmo abrindo-se para o improviso e para forças internas e externas (sonoridades, estruturas, composições, dicções, frequências rebeldes). Neste sentido, o que se pode dizer da evolução do “trio de cinco cabeças”? Que resultou em composições enérgicas, tensionadas por escalas orientais e interlúdios inesperados. Que destaca um banda que atingiu um alto grau de coesão e poder expressivo. Que, ao incluir Sérgio Machado e Marcelo Cabral, e por trabalhar com eles por tanto tempo, desenvolveram uma cumplicidade sólida e consistente. Que esta cumplicidade vem gerando uma simbiose sonora em que Machado e Cabral adicionam características fundamentais ao som do trio. Que, em resposta a essa interação, Juçara Marçal vem modificando seu modo de cantar, enquanto Dinucci e França liberam seus instrumentos para captar sons (ainda) estrangeiros em relação ao corpo da canção popular.
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De uma forma geral, trata-se do disco mais pesado, cru e direto do Metá Metá. Cada faixa exprime um golpe, uma direção, mas em um mesmo e único sentido: adiante. “Três amigos” opera o prelúdio da pancadaria, anunciando a chegada: tem de funeral e de bem viver, tem para todo mundo, mas, sobretudo, “tem”. O riff de sax, o refrão grindcore, as intervenções pontuais e ruidosas da guitarra, o interlúdio surrealista e “felino” no clima pós-punk de “Angoulême” constituem alguns dos detalhes mais estranhos do disco.
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A brisa do Mali, a bateria desconstruindo toda e qualquer regularidade, a comunhão caótica entre sax, guitarra e acordes de baixo em “A Imagem do Amor” — reparem que, após o refrão, quando o ritmo fica mais “solto”, o mais comum seria entrar a guitarra distorcida, mas eles substituem por inserções do sax e improvisos da bateria. “Mano Légua” é um samba-oração, uma prece a Exu, o sentinela do lugar, que também opera por expurgo sonoro. A pegada doce e certeira de “Osanyin”, mais uma composição de Dinucci que, como afirmei acima, inventa uma forma até então desconhecida de composição brasileira escrita diretamente em Iorubá. “Toque Certeiro” é música de festa que exala Recife, inaugurando uma parceria até então inédita: letra de Siba e música de Kiko Dinucci. Em “Angolana”, o tema arabo-andaluso, a tensão controlada pela própria instrumentação que privilegia o poema: “me diz de onde é que vem a sede de cantar, a seiva da canção…”
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Quando o Metá Metá subiu ao palco do Circo Voador em setembro de 2015, apresentaram “Corpo Vão” à plateia como um prenúncio de MM3. Minha primeira impressão foi a presença dos sons africanos orientais, o ethio-punk do The Ex, e demais referências à junção do punk e da música africana. Hoje, tenho a nítida impressão de que se trata de uma outra jogada, um balanço que ainda não tinha escutado, um suingue sobre o qual flutuam as sílabas estendidas: “Escuridão, oco voraz, vai engolir o mundo, regurgitar.”
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A tríade é drible que transfigura práticas, força plástica, metamorfose. Em MM3, o Metá Metá é o martelo que destrói certezas e abre os caminhos, a tríade que coleta o que é positivo e transfigura as dores. As tríades de Telê Santana, o drible triangular coletivo que Guardiola aplica em seus adversários, a finta com que João Gilberto ultrapassa a estabilidade da forma cancional, a esquiva a todo e qualquer enquadramento de ordem estético-moral. Finalizando o álbum, uma interpretação pungente e eletrizante de “Oba Koso”, domínio público do candomblé de Keto, Nagô e Iorubá, tocada pela primeira vez pelo grupo durante o evento Palavra Cruzada, em outubro de 2015, junto à artista plástica Edith Derdyk. A letra implora: Maa ina ina, Oba Koso (“não mande o fogo sobre nós, rei de Koso!”). Seria mais um artifício do trio em direção à ambiguidade? O respeito ao poder do Orixá caminharia ao lado de uma identificação sonora com o poder de suas mãos, seus gestos impiedosos, sua potência própria?
Notas:
[1] Para uma problematização da “lógica da hibridização”, conferir: RIOS, Luís Felipe. “O paradoxo dos prazeres: trabalho, homossexualidade e estilos de ser homem no candomblé queto fluminense”. Etnográfica, vol. 16 (1) | 2012, 53-74. Link: https://etnografica.revues.org/1382
[2] RIOS, Luís Felipe. “Loce Loce Metá Rê-lê!: posições de gênero-erotismo entre homens com práticas homossexuais adeptos do candomblé do Recife. Polis e Psique, Vol. 1, Número Temático, 2011, 212-231. Link: http://seer.ufrgs.br/PolisePsique/article/view/31540
*Professor da Faculdade de Educação/UFRJ, autor de “Tom Zé — Estudando o Samba” (Editora Cobogó, 2014).
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