O Golpe no Brasil, além de outras coisas, é justificado por aqueles que gostariam de viver sob um sistema parlamentar. Tanto é que a frase “pelo conjunto da obra” se tornou quase unanimidade entre os defensores do chamado impeachment. De fato, fosse um sistema parlamentar, a simples falta de confiança no “conjunto da obra” seria suficiente para derrubar o governo.
Interessante, portanto, é comparar a situação brasileira com a “crise do parlamentarismo” vivida no Reino Unido, onde temos a oportunidade de presenciar duas situações opostas, ambas consequências do sistema político.
A primeira, tem a ver com o governo: o Primeiro-Ministro perdeu o referendo que achava que ia ganhar e imediatamente renunciou. Se não tivesse renunciado, certamente teria surgido um grupo de Conservadores propondo o voto de desconfiança contra ele. Porém, com renúncia ou sem renúncia, o resultado seria o mesmo: a troca na liderança do partido, na qual os outros partidos não interferem, apesar de que o líder eleito será a pessoa que governará o país – o/a Primeira-Ministra, que formará o novo governo. Não há necessidade de eleições gerais.
Uma das razões pela não interferência é que não há mudança de partido e, teoricamente, nem de direção, já que, em linhas gerais, o Programa de Governo anunciado pelos Conservadores nas eleições de 2015 deverá ser mantido.
Isso é muito diferente do que presenciamos no Brasil, onde a Constituição deveria valer justamente para nos proteger das instabilidades que advém de um sistema como o parlamentarismo. O atual governo brasileiro é interino, e só isso já deveria ser suficiente para que não fizesse mudanças não-emergenciais durante o período de interinidade.
Caso estivéssemos realmente assistindo a um impeachment por crime de responsabilidade, o presidente interino deveria aguardar o resultado antes de formar um governo autônomo. Mas mesmo se vivêssemos sob um parlamentarismo, como do tipo Britânico, seria esperado que o novo governo seguisse o Programa que, em teoria, o elegeu. Isso porque uma mudança radical no Programa de Governo requer o consentimento expresso pelas urnas. No Reino Unido, mesmo com a manutenção do mesmo Partido e do Programa de Governo, há aqueles que vêm a necessidade de novas eleições, dado as implicações do referendo para o país.
A Constituição Brasileira, em teoria, também não acataria uma mudança tamanha de políticas. Não estava previsto que a divergência do Vice-Presidente – no evento de um impeachment da Presidente – mudasse toda a orientação política, filosófica, cultural e econômica do governo – não esqueçamos também que Temer concorreu às eleições sob a mesma plataforma que Dilma. Mesmo assim a Constituição esperava que o vice apoiasse a presidente, diferentemente do que acontecia antes, quando o presidente e o seu vice não eram eleitos juntos.
Porém, para aqueles que acham que se libertariam das amarras do presidencialismo, é importante reconhecer que nem mesmo no parlamentarismo, pelo menos na versão britânica, poderíamos chamar o que estamos presenciando no Brasil de legítimo.
Os acontecimentos na Grâ-Bretanha também nos dão a oportunidade de vislumbrar o que acontece quando um líder vai contra uma moção de desconfiança, demonstrada pelo impasse no Partido dos Trabalhadores. A grande maioria dos parlamentares Trabalhistas votaram pela renúncia do líder, Jeremy Corbyn. Renúncia essa apoiada por boa parte dos Trabalhistas do Parlamento Europeu e vários dos mais importantes nomes do Partido. Porém, ele continua tendo o respaldo da base, dos militantes e da maioria das lideranças sindicais, por isso, não renunciou e o partido vive o que talvez seja a sua pior crise.
A saída seria a reeleição formal do líder, tal como os Conservadores estão fazendo, mas no momento Corbyn é invencível e a eleição só reforçaria a sua liderança, o que não interessa aos parlamentares do Partido.
Se os Trabalhistas estivessem no governo, o líder do Partido seria o Primeiro-Ministro, e o impasse teria grandes implicações para o governo (apesar de que a hipótese de tamanha crise seria improvável). E se assim fosse, os parlamentares planejariam uma revolta, o Primeiro-Ministro receberia o respaldo da maioria dos membros de seu Partido, dos movimentos de esquerda, dos sindicatos, e de uma minoria significativa do público, a mídia pediria a sua cabeça… onde será que já vimos isso?
O importante, entretanto, é que os recentes desdobramentos da política britânica abrem uma série de questões sobre o que é legítimo e democrático. A mudança do líder de um partido que envolve a troca do Primeiro-Ministro não deveria ser razão suficiente para novas eleições? Certamente, há um déficit democrático. Como fica a questão de um líder parlamentar que é rejeitado pelos seus pares e com quem não conseguem trabalhar, mas que é amado pela base?
Um dos motivos pela rebelião dos parlamentares é a opinião do eleitorado. Os Parlamentares ousam ir contra a base do Partido, porque o mandato deles vem diretamente dos eleitores, apesar de serem previamente selecionados pelo Partido local. Portanto se acham representantes não só da base Trabalhista, mas do público em geral. Muitos acreditam que a ida do Partido mais à esquerda está afugentando estes eleitores.
Como fica a questão da representatividade? Um líder deve representar quem? O Partido ou o eleitorado em geral? Quem tem mais direito de decidir o futuro deste líder, os parlamentares, que, teoricamente, representam o público? Ou os membros do partido, donos da ideologia e do programa de governo?
Estes são alguns dos dilemas que o parlamentarismo britânico traz à tona atualmente. Porém, apesar de tantas possibilidades e incertezas, o que não estaria mesmo previsto, seria a mudança total: do Chefe de Estado, do Programa de Governo, dos ministérios, da política econômica, sem que isso fosse referendado pela população.
Julia Spatuzzi Felmanas é filósofa e mestre em políticas públicas