Por Pedro Breier, correspondente policial do Cafezinho
A batalha sangrenta entre a dupla mídia e Ministério Público – mais entrosada que Bebeto e Romário na copa de 94 – e os políticos continua. No mais novo round Renan Calheiros resolveu desengavetar e acelerar a tramitação de um projeto de 2009 que prevê punições a crimes de abuso de autoridades, de agentes da administração pública e membros do Judiciário, Ministério Público e Legislativo. A velha imprensa já deu o contragolpe, logicamente alinhado à sua estratégia de considerar qualquer debate sobre o tema como tentativa de parar investigações. Na capa do Estadão de hoje está a manchete garrafal: “Renan desengaveta projeto que pode dificultar Lava Jato”.
Analisemos o projeto sem paixões. É desejável termos meios de punir agentes públicos que abusem de suas prerrogativas? A resposta é obviamente positiva. Nas democracias modernas o poder, ao menos em tese, emana do povo, que o exerce através de seus representantes eleitos. Os eleitos integrantes do poder legislativo fazem as leis que regem a vida em sociedade. Funcionários públicos são servidores da população. Devem, por isso, atuar sempre de acordo com as leis aprovadas pelos representantes do povo. Inclusive há uma distinção no direito entre o que significa o princípio da legalidade para o cidadão comum e para o membro da administração pública. Enquanto que para o cidadão o princípio significa que ele pode fazer tudo o que não está proibido por lei, para o agente da administração pública é o contrário, ele somente pode fazer o que está previsto em lei; só pode atuar como e no que a lei permitir.
Se isso vale para qualquer funcionário público, quanto mais para os que detém o monopólio da força: Ministério Público, Justiça e polícia. Quando estes começam a violar a lei temos o embrião de um Estado autoritário. É o que vemos ocorrer nos últimos anos no Brasil, especialmente na operação Lava Jato. Prisões preventivas sem os requisitos previstos em lei com o evidente objetivo de forçar os presos a delatarem, ou seja, tortura de Estado, vazamentos ilegais sob medida para gerar manchetes e angariar apoio às investigações na população, instalação de escutas clandestinas em celas de presos: a lista de ilegalidades cometidas pelos heróis da luta contra o crime é longa.
Enquanto o alvo era apenas o PT os interessados no desgaste do governo aplaudiam entusiasticamente. Mas quando se permite que forças do Estado passem por cima da lei contra determinado alvo a tendência natural é que essas forças fiquem hipertrofiadas e passem a investir contra outros alvos, especialmente os que tentarem botar um freio nos abusos. A frase do aterrorizado Jucá durante a conversa com Sérgio Machado demonstra que a ficha caiu: “(eles querem) acabar com a classe política para ressurgir, construir uma nova casta, pura (…)”.
Diante dos sucessivos escândalos envolvendo políticos pode parecer uma ideia tentadora acabar com a classe política para construir uma nova casta. Mas deixar essa missão na mão de funcionários públicos não eleitos que podem denunciar, processar e prender pessoas definitivamente não é uma boa ideia. Só mais democracia pode aperfeiçoar a democracia. Melhorar a política dando carta branca aos órgãos de repressão é uma ilusão que apenas gerou regimes autoritários ao longo da história. Medidas para diminuir a influência do dinheiro nas eleições, por exemplo, são muito mais eficazes e democráticas.
Leis que coíbam os abusos de autoridade certamente fortalecem a democracia, portanto. Uma pena que esse debate chegue completamente deturpado à população em virtude dos interesses políticos das famílias donas dos grandes meios de comunicação. Pena também que políticos em tese progressistas caiam na armadilha da mídia e MP. Randolfe Rodrigues, da Rede, disse que “Esse projeto é um acinte, é uma agressão às investigações que estão em curso na Operação Lava-Jato”. Sobre as agressões da Operação Lava-Jato às leis, nenhuma palavra. É urgente que a sociedade tenha a noção do perigo de se permitir que a face punitiva do Estado passe por cima da lei. A próxima condução coercitiva ilegal pode ser na casa de qualquer um.