Por Pedro Breier, correspondente policial do Cafezinho
O STF tomou, nos últimos dias, duas decisões animadoras para quem luta por um sistema prisional digno e contra a hipertrofia do Estado policial. No último dia 23 a corte definiu que tráfico cometido por réu primário e sem ligação com organização criminosa não é crime hediondo. Ontem, dia 29, o tribunal determinou que o condenado poderá cumprir pena em casa se não houver vaga em presídio.
Apesar de ter um histórico de respeito à visão garantista da Constituição, especialmente na primeira década do século 21, nos últimos anos o STF vinha mudando seu entendimento em julgamentos importantes, como o do mensalão, no qual a presunção de inocência foi solenemente ignorada em nome de uma aplicação esdrúxula da teoria do domínio do fato. A decisão, tomada em fevereiro deste ano, no sentido de permitir que condenados por crimes possam começar a cumprir a pena após a decisão de segunda instância foi mais um indício da mudança de rumo do STF, tendo sido considerada por criminalistas como o enterro do garantismo no Brasil. As decisões dos últimos dias 23 e 29 rompem essa tendência de endurecimento penal.
A decisão de não considerar crime hediondo o tráfico cometido por réu sem antecedentes criminais pode fazer com que 40% dos mais de 600.000 apenados do Brasil tenham direito à progressão da pena. 27% dos presos no Brasil respondem por tráfico, sendo que se considerarmos somente as mulheres presas esse número sobe para 64%, segundo relatório divulgado em 2014 pelo Ministério da Justiça.
Muitas dessas pessoas são presas desarmadas e sem a prova material do tráfico: dependendo da interpretação do delegado, basta a posse de uma certa quantidade de droga e de dinheiro para o cidadão ser considerado traficante. Após o “flagrante” o próximo passo normalmente é a pessoa ser jogada em uma das celas superlotadas dos deploráveis presídios brasileiros, especialmente se for negro e/ou pobre, absoluta maioria da população carcerária em nosso país. No presídio o novato é cooptado facilmente pelos grupos criminosos e a ressocialização já se torna quase impossível. Quantos meninos e meninas das periferias ainda terão a vida destruída por conta da estupidez do nosso sistema penal? Para a sociedade o efeito também é devastador, uma vez que o clichê de que os presídios são escolas do crime não é apenas retórica, mas realidade patente.
O discurso conservador de que o endurecimento do sistema penal é melhor para a sociedade ofende a lógica mais básica, portanto. O juiz Marcelo Semer deixa isso claro em artigo publicado no seu blog:
A ideia recorrente de que prisão deve ser transformada em um profundo sofrimento e mal-estar (como se atualmente fosse “um hotel cinco estrelas”) só aprofunda a precarização da situação carcerária.
A imensa omissão do Estado na conservação dos direitos dos presos é o grande estimulador dos comandos internos, por meio dos quais líderes subjugam os mais frac/os e vendem vantagens e proteções.
A prisionalização excessiva de jovens primários por crimes menos graves fornece, enfim, um enorme exército de mão de obra para vitaminar as facções. O crime organizado agradece.
Em algum momento vamos compreender que a repressão desmedida não favorece a redução da criminalidade, só a aumenta. Que não seja tarde demais.
Que essas decisões sejam um sinal de que o STF voltou a ser um garantidor dos direitos fundamentais previstos na Constituição. Para que possamos ver cada vez mais casos como o que viralizou ontem, do preso que pôde estudar graças à progressão do regime fechado para o semiaberto e convidou a juíza que concedeu a progressão para participar da banca na apresentação do seu TCC. Ressocializar é o caminho.